No meio da selva amazônica da região norte do Brasil, equipamentos para escavação fabricados na China raspam o fundo de uma gigantesca mina de minério de ferro. É aqui, no município de Canaã dos Carajás, localizado na Serra dos Carajás, no estado do Pará, a 1.600 quilômetros (km) do estado do Rio de Janeiro, que estão engenheiros chineses acompanhando de perto uma frota de empilhadeiras, retomadoras e outros equipamentos de grande porte nas adjacências de uma usina de beneficiamento de minério.
No local são produzidas 90 milhões de toneladas do metal por ano. Um trem com 330 vagões (a maioria de fabricação chinesa) aguarda ser carregado antes de seguir viagem por mais de 950 km até o Porto da Madeira, na cidade de São Luís do Maranhão. Lá, cargas de 400 mil toneladas de minério de ferro serão embarcadas em um navio cargueiro (também fabricado na China) que navegará por 40 dias até chegar aos portos chineses de Dalian, Caofeidian, Rizhao e Qingdao, entre outros. Uma vez lá, as fábricas chinesas transformarão o material em guindastes, equipamentos de perfuração e smartphones, muitos dos quais farão a viagem de volta para o Brasil, especificamente para o setor de construção, energia e varejo.
As relações econômicas com a China proporcionaram lucros para gigantes da mineração brasileira – como a Vale, maior produtora de minério de ferro do mundo –, seus acionistas e prestadores de serviços. Também levou a uma balança comercial positiva com seu principal parceiro comercial. Mas, assim como acontece em muitos países da América Latina, a maior parte do comércio realizado entre China e Brasil tem como foco as matérias-primas.
Esta realidade não mudou apesar de o presidente chinês Xi Jinping ter promovido a ampliação do quadro de cooperação, conhecido como “1+3+6”, para a região, conforme delineado na Cúpula dos BRICS de 2014, realizada nas cidades brasileiras de Fortaleza e Brasília. O número “1” refere-se ao acordo de cooperação da China com a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), bloco do hemisfério ocidental composto por 33 países-membros – excluindo os Estados Unidos e o Canadá – que foi ratificado no primeiro encontro do Fórum China-CELAC em Pequim, em 2015. O quadro de cooperação identifica três “motores do desenvolvimento” (comércio, finanças e cooperação financeira) e destaca seis setores industriais prioritários: energia e recursos, infraestrutura, agricultura, produção, ciência e tecnologia, e tecnologia da informação.
O foco comercial nas matérias-primas evidenciou a baixa superação dos parceiros latino-americanos como o Brasil – mas também Venezuela, Argentina e Equador – frente aos recentes choques nos preços das commodities; assim como o ímpeto de exportar mais minério de ferro, cobre, soja e petróleo para compensar o déficit que levou essas economias a perderem importância na cadeia de valor. A China reconhece que isso é um grande problema. O Ministério das Relações Exteriores da China recentemente elaborou um documento de estratégia para a América Latina que foi lançado pelo Presidente Xi na Cúpula da APEC em Lima, Peru, em novembro. O documento ressaltou a necessidade de desenvolverem a capacidade de produção, ou modernização industrial, em conjunto com os parceiros latino-americanos. No entanto, as operações que atendem o mercado chinês, como a mina S11D em Canaã dos Carajás, continuam sendo muito mais valorizadas do que os outros projetos que vem sendo desenvolvidos nos setores de valor agregado ou de produção.
A mineração em grande escala do minério de ferro também tem efeitos negativos no meio ambiente e nas comunidades rurais: são abertos buracos enormes no solo amazônico que jamais fecharão completamente; os rios são assoreados e contaminados; cavernas e lagos naturais são destruídos; espécies da fauna endêmica da região como Monogereion carajensis Parapiqueria cavalcantei e Ipomoea cavalcantei, além de outras, estão em iminente perigo de desaparecer; e surgem conflitos agrários. Para piorar, o governo brasileiro está revogando leis que protegem a biodiversidade e os povos indígenas contra os grandes projetos extrativos e de infraestrutura, em uma tentativa de aumentar a produção econômica. No início deste ano, o governo do Brasil reduziu em 1,2 milhão de hectares uma unidade de conservação no Pará para permitir a construção de uma ferrovia, abrindo novas possibilidades para operações de mineração. O abrangente e impopular programa de austeridade do governo incluiu um corte de 43% nas verbas destinadas à proteção ambiental. Alfredo Sirkis, secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, concedeu uma entrevista ao think tank Observatório do Clima e afirmou que os cortes no orçamento teriam um impacto profundo no desmatamento e, consequentemente, na capacidade de o país conseguir cumprir as metas de combate às mudanças climáticas assumidas no Acordo de Paris.
Pará: suprindo a demanda chinesa por minério de ferro
No final de dezembro de 2016, entrou em operação o projeto S11D da mineradora brasileira Vale, avaliado em US$ 14,3 milhões. Esta é a maior mina de ferro a céu aberto do planeta. Para sua construção foram necessárias 244 mil toneladas de concreto, o que equivale a aproximadamente quatro vezes o concreto utilizado na construção do novo estádio do Maracanã no Rio de Janeiro. O objetivo principal do gigantesco projeto é atender a demanda chinesa e ele inclui a ampliação de uma estrada de ferro e a expansão do porto de Ponta da Madeira. Durante uma visita ao local em janeiro, o Diálogo Chino/ChinaFile verificou que cerca de 80% de todo o maquinário sendo utilizado no projeto é de origem chinesa. Foram solicitados por e-mail os nomes dos seus compradores e a Vale se recusou a divulgar essa informação, porém segundo os resultados trimestrais mais recentes da empresa, seus principais clientes são chineses. Em 2016, a China respondeu por 57,6% de todas as vendas da Vale.
Leonardo Neves, líder sênior de meio ambiente, socioeconômica e gestão fundiária para o projeto S11D da Vale, declarou que os representantes da mineradora viajaram para a China atrás de parceiros para o projeto, que foi concebido em 2003.
Aproximadamente 35% de toda a exportação do Pará tem a China como destino. O minério de ferro que é extraído dentro das fronteiras do estado, cuja área tem cinco vezes o tamanho do Reino Unido, compõe 80% de todas as exportações para o país asiático. Com o aumento da produção no S11D – a Vale espera exportar 90 milhões de toneladas até 2020 – o Pará se tornará o maior estado produtor de minério de ferro do Brasil.
A mina S11D situa-se em um ecossistema de floresta tropical com vegetação de canga, ou savana metalófila. O local fica sobre uma formação rochosa consolidada que consiste basicamente de ferro, sendo que os ricos depósitos do metal formam a base de um ecossistema que é também muito vulnerável. “Um ecossistema desse tipo no meio da floresta cria um cenário evolutivo propício ao surgimento de espécies endêmicas, cavernas e lagoas, que precisam ser preservadas”, explica Frederico Martins, chefe da Floresta Nacional de Carajás, onde está localizado o projeto. “Pelo menos 40 espécies botânicas são encontradas somente neste local. Se a mineração for desenvolvida na savana, pode acontecer de eliminarmos todo um ecossistema”, acrescenta Martins, que é também analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), o órgão federal responsável pelo monitoramento ambiental da área.
O estabelecimento do projeto S11D destruiu 44 cavernas de forma irreversível, afirmou Martins, bem como desmatou aproximadamente 2.500 hectares de vegetação nativa para abrir a mina a céu aberto. Para compensar os danos, o ICMBIO negociou com a Vale a criação de uma nova unidade de conservação, batizada de Parque Nacional Campos Ferruginosos. Atualmente, a mineradora está em processo de aquisição das terras para o parque. Dentro dessa área, a Vale será obrigada a proteger até duas vezes o número de cavernas afetadas pelo seu projeto.
De acordo com Martins, a Vale faz uma contribuição anual de aproximadamente US$ 4 milhões para ajudar o ICMBIO a contratar cerca de 100 guardas florestais para cuidar das áreas protegidas e evitar incursões ilegais relacionadas à atividade de mineração. Neves relatou que “desde a criação dessas unidades, a Vale vem trabalhando para proteger as florestas contra o desmatamento e a extração ilegal de ouro”.
A licença de operação do projeto S11D foi concedida pelo IBAMA depois que o ICMBIO e a Vale chegaram a um acordo sobre a proteção das florestas. A licença obriga a mineradora a manter uma distância de pelo menos 500 metros das lagoas do Violão e do Amendoim, que ficam ao lado da mina. Outros projetos da empresa, como as minas que ficam ao norte da cadeia de Carajás, conhecidas como N4 e N5, já destruíram lagoas semelhantes, contou Martins, acrescentando que o ICMBIO ainda não esclareceu como as duas lagoas serão preservadas, mas prometeu monitorar de forma intensa a fase operacional do projeto.
A criação de um novo parque em Carajás também exige que a Vale negocie diretamente com os proprietários e colonos que ocupam as terras que estarão dentro dos limites da área protegida. As negociações acontecerão em meio a disputas sobre a legitimidade da posse das terras, frequentes ações policiais de despejo e o reassentamento de fazendeiros nas terras contestadas.
O proprietário rural José Raimundo Garcez Anjos vem travando uma batalha na justiça para provar que a Vale adquiriu terras ilegalmente dos fazendeiros que tinham recebido títulos de propriedade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), depois que cerca de 400 famílias foram removidas da área por tropas de choque da polícia e pelas forças de segurança nacional, em fevereiro de 2016.
“Há um caos fundiário na Amazônia, ninguém sabe quem é o dono das terras. Isso é um grande problema que precisamos resolver”, disse José Benatti, diretor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em conflitos fundiários. “As empresas podem até não ser, elas mesmas, violentas, mas criam uma pressão sobre o mercado fundiário que acaba fazendo o proprietário vender o título”. Benatti explica que terceiros adquirentes muitas vezes fazem ameaças para adquirir os títulos, que são posteriormente vendidos para grandes empresas.
“Estávamos plantando arroz, feijão [e] mandioca há pelo menos nove meses. Aí a Vale enviou um mandado dizendo que tínhamos 24 horas para sair. Perdemos tudo”, afirma Garcez Anjos. Em outros locais, como a Vila Mozartinópolis, também no município de Canaã dos Carajás, a Vale teve sucesso nas negociações com os proprietários e trabalhadores rurais. Aproximadamente 50 famílias que viviam em pequenas casas na vila foram realocadas em casas com água e energia e receberam cinco alqueires de terra cada.
Impactos sociais e econômicos
Milhares de pessoas migraram para Canaã dos Carajás quando teve início a construção do projeto S11D, em 2013. A população da cidade dobrou de tamanho, passando de pouco mais de 30.000 para 60.000 habitantes, de acordo com os dados da prefeitura local. A demanda por serviços públicos de saúde e educação cresceu e a Vale se viu obrigada a construir escolas e um hospital na cidade em parceria com autoridades locais, obedecendo aos termos do processo de licenciamento socioambiental. Quando a fase de construção da mina chegou ao fim, muitas pessoas se viram sem emprego e o número de desempregados em Canaã subiu muito. Cerca de 15.000 trabalhadores estiveram direta ou indiretamente envolvidos na fase de construção do projeto; na fase operacional, apenas cerca de 2.600 funcionários serão contratados.
“Estou há quatro meses tentando encontrar outro emprego”, disse Joelson de Lima, que trabalhou no projeto. A Vale e a prefeitura local decidiram lidar com o problema pagando as despesas de viagem para que os trabalhadores trazidos para as fases iniciais do projeto pudessem voltar para os seus lares de origem.
Os moradores urbanos que foram entrevistados para esta matéria também relataram um aumento da violência na região, o que é atribuído às altas taxas de desemprego e à proliferação de bordeis.
“A mineração voraz é muito predatória para o ecossistema, mas também é predatória para a economia da nação. No longo prazo, é um desastre”, disse Martins, acrescentando, de modo um tanto retórico: “Vamos precisar destruir e vender tudo para a China a preço de banana em troca de smartphones chineses? É isso que o governo brasileiro quer?”.
Em sua mais recente viagem à América Latina, o presidente chinês Xi Jinping reforçou a necessidade de trabalhar com os parceiros latino-americanos para reduzir a dependência econômica deles na exportação de produtos primários. Em resposta, os governos da China e do Brasil lançaram, no mês passado, um “fundo de cooperação conjunta”, avaliado em US$ 20 bilhões. A iniciativa visa reduzir os desequilíbrios na relação comercial entre os dois países, uma vez que o Brasil é exportador de matérias-primas e importador de produtos de valor agregado. Li Jinzhang, embaixador da China para o Brasil, esteve no lançamento do fundo em São Paulo e disse que “o Brasil é um país prioritário para a estratégia chinesa de expansão da capacidade produtiva e temos uma parceria estratégica abrangente. O Fundo Brasil-China garante o mecanismo financeiro para expandir a nossa cooperação”.
Esta matéria foi feita em parceria com a ChinaFile, uma revista online da organização sem fins lucrativos Asia Society’s Center on U.S.-China Relations