Se existe uma marca nas relações internacionais do Uruguai dos últimos anos, foi seu indisfarçável desejo de se aproximar comercialmente da China. O ímpeto foi posto em evidência com a presidência pro tempore, ou temporária, do Uruguai no Mercosul, bloco que divide com Brasil, Argentina e Paraguai.
A relação teve um bom momento na recente reunião Mercosul-China em Montevidéu, estimulada pelo Uruguai depois de mais de dez anos sem encontros entre o bloco regional e o país asiático.
O eixo central do encontro foi a discussão de um acordo comercial, pretendido pelo presidente uruguaio Tabaré Vázquez, mas não encarado com bons olhos por seus parceiros regionais, em função do impacto que poderia ter em suas economias.
Desde sua posse em 2015, Vázquez vem demonstrando interesse em uma aliança com a China por meio do Mercosul, ou um acordo bilateral entre os dois países. Atualmente, a última alternativa não é autorizada pelas regras do bloco, que permite somente alianças regionais.
“O Uruguai colocou o tema em discussão, já que não estamos avançando com a agenda que a China quer na América Latina, que são os acordos de livre comércio”, sustentou Ignacio Bartesaghi, diretor da Faculdade de Ciências Empresariais da Universidade Católica do Uruguai.
A China publicou, em 2016, um documento base sobre sua política na América Latina e Caribe, onde expressa a vontade de “explorar o potencial comercial bilateral” e menciona, especificamente, a subscrição de tratados de livre comércio (TLC) com os países da região, para estabelecer relações comerciais estáveis.
O plano da China, entretanto, só se materializou parcialmente, ao firmar o TLC com Chile, Peru e Costa Rica. Também foram mantidos acordos de menor importância com o resto dos países latino-americanos, porém estes são limitados, em alguns casos, pelas rígidas normas do Mercosul.
Países produtores de alimentos, como o Uruguai, precisam de tratados com os países asiáticos, como a China
“Os interesses da política comercial dos países do Mercosul são radicalmente distintos. Não têm os mesmos incentivos por acordos”, afirmou Marcel Vaillant, professor de Comércio Internacional na Universidade da República do Uruguai. “Países produtores de alimentos, como o Uruguai, precisam de tratados com os países asiáticos, como a China, já que seus rivais exportam para a Ásia em condições preferenciais”.
Na Argentina, o presidente Mauricio Macri não demonstrou firmeza na relação com a China e, inclusive, mandou revisar todos os convênios firmados por seus antecessores. Ao mesmo tempo, no Brasil, o recém-eleito Jair Bolsonaro criticou investimentos do país asiático e avançou um discurso anti-China.
Esta conjuntura contribuiu para que o Uruguai não chegasse a um acordo pelo Mercosul e para a limitação de suas possibilidades no futuro, segundo acreditam analistas. Talvez uma colaboração bilateral pudesse ter mais sorte, especialmente a partir da pretensão comum aVázquez, Macri e Bolsonaro de flexibilizar os princípios do bloco.
“O Mercosul vive um impasse já há bastante tempo, e suas conquistas foram limitadas, o que explica a urgência do Uruguai”, disse Sergio Cesarin, coordenador do Centro de Estudos sobre Ásia do Pacifico e Índia da Universidade Nacional Três de Fevereiro (UNTREF). “A China já deixou de pensar em uma aliança com o bloco e sinaliza uma relação bilateral com os países da região”.
Vontade versus realidade
No final de outubro, os secretários-gerais da Chancelaria do Mercosul receberam em Montevidéu seu correspondente chinês, Qin Gang, que viajou com a intenção de prosseguir com o entendimento comercial, objetivo compartilhado com o Uruguai como organizador da reunião do bloco.
Como o compromisso foi a poucos dias das eleições no Brasil, os progressos foram limitados. Os presentes realizaram uma análise do intercâmbio regional com os chineses e suas potencialidades, comprometendo-se a analisar as possibilidades de cooperação econômica entre eles e o conjunto de países sul-americanos.
“O Uruguai escolheu alavancar o diálogo Mercosul-China, mas não existem possibilidades de evolução real, porque a agenda está bilateralizada. O Mercosul por si só não pode concluir outras negociações complexas em curso e o Uruguai quer agregar a isso um TLC com a China”, confirmou Bartesaghi.
Na pauta da reunião, ficou estabelecido que os países decidiram “manter o mecanismo de diálogo e pretendem dar-lhe continuidade, para construir uma agenda positiva com o objetivo de promover a cooperação em áreas de mútuo interesse, que beneficie o comércio e os respectivos investimentos”.
O Ministério de Relações Exteriores do Uruguai emitiu um comunicado no qual considerou a reunião como “um evento transcendente em si mesmo, já que na presidência temporária uruguaia foi possível reunir este mecanismo de diálogo, depois de 14 anos de inatividade”.
Relações comerciais
Em outubro de 2016, o presidente da China, Xi Jinping, e do Uruguai, Vázquez, selaram um compromisso de associação estratégica entre os dois países. Desde então, foram muitos os avanços e as aproximações em diferentes áreas, em nível bilateral.
O Chanceler do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa, firmou em agosto, na China, um memorando de entendimentopara incorporar seu país à iniciativa da Nova Rota da Seda da China. Com isso, o Uruguai passou a ser o primeiro país do Mercosul a fazer parte desta iniciativa chinesa.
A produção uruguaia paga, anualmente, 130 milhões de dólares de tributos de importação na China, e a produção do Mercosul, 1,5 bilhão, mais do que países competidores nesse mercado, assegurou Nin Novoa, ao advogar a necessidade de um acordo de acesso preferencial entre as partes.
“O Uruguai estimula esses acordos por ser um exportador de produtos primários, muitos dos quais comprados pelos chineses. E é o que mais lhe interessa na relação bilateral na região”, atestou Marcelo Elizondo, especialista em comércio internacional e diretor da empresa de consultoria DNI.
Em setembro do ano passado o país asiático foi, assim como em todo o ano, o principal destino das exportações uruguaias, que chegaram a 119 milhões de dólares e representaram 23% do total exportado. A China é também o principal destino da carne bovina e da soja uruguaias.
Nesse ranking de destinos de exportação, a China ocupou o primeiro lugar no ano passado, com vendas que alcançaram 2,5 bilhões de dólares (incluindo as Zonas Francas). Entre 2012 e 2017, as exportações para este mercado aumentaram, em média, 12% ao ano.
“A China sabe que, operando diplomaticamente através do Uruguai, tem maior protagonismo que através da Argentina e do Brasil. São economias diversificadas industrialmente, e a China é um player global competitivo, e há setores industriais que estão preocupados com ela”, disse Cesarin.
O saldo comercial do Uruguai com a China foi positivo no primeiro semestre de 2018. Mesmo com a queda das exportações de bens, que caíram 9%, as importações cresceram 2% em relação ao primeiro semestre de 2017 e o saldo comercial continua sendo favorável ao país sul-americano, como ocorreu no primeiro semestre de 2017.
O total de exportações atingiu 840 milhões de dólares durante os primeiros seis meses do ano. Carne, sementes e frutos oleaginosos, além da madeira, foram os três principais produtos exportados. As exportações uruguaias de carne representaram 47% do total.
Ao mesmo tempo, as importações foram de 804 milhões de dólares no primeiro semestre do ano. Veículos automotores, produtos químicos orgânicos e o plástico e seus derivados foram os principais produtos adquiridos, representando 65% do total importado.