Nas primeiras horas do domingo 26 de abril, em plena quarentena devido à Covid-19, começou um incêndio gigantesco que consumiu por vários dias os tanques e tubulações do Complexo Operacional Morichal, na Faixa Petrolífera Orinoco, no sudeste da Venezuela. A empresa mista Sinovensa opera lá há 13 anos, com capital chinês e venezuelano.
Para que aquela faísca de solda que caiu em áreas verdes se transformasse em um incêndio florestal “de proporções inimagináveis”, como classificou Eudis Girot, diretor executivo da Federação Unitária de Trabalhadores Petroleiros, vários fatores se combinaram: a falta de manutenção das pastagens nas proximidades, os poucos recursos disponíveis aos bombeiros da usina e os frequentes derramamentos de petróleo que nunca foram limpos, disseram à Reuters seis trabalhadores petroleiros.
Todos eles evidenciam o declínio de um dos projetos de investimento mais emblemáticos do governo venezuelano, que começou com o governo de Hugo Chávez e, em seguida, continuou com o seu sucessor, Nicolás Maduro. O declínio deste projeto é acompanhado, também, pela queda das expectativas colocadas na relação econômica com a China.
O começo do sonho do petróleo com a China
Nos primeiros anos de seu governo, em suas longas viagens pela Europa e Ásia no final dos anos 90 em busca de novos investidores e da diversificação das relações comerciais da Venezuela, Hugo Chávez promovia a orimulsão, uma tecnologia local que permitia a conversão de petróleo ultrapesado em um combustível ideal para as usinas termelétricas a um preço mais baixo que o do carvão.
Esse esforço levou à assinatura dos primeiros acordos petroleiros com a China em 1999, e a uma série de promessas de crescimento econômico. Na primeira visita de Chávez a Beijing, foram assinados um memorando para a criação de um comitê misto de energia e um tratado para a proteção de investimentos, o primeiro crédito para exportações do Banco de Desenvolvimento da China foi concedido e foi celebrado um acordo para a construção de casas.
Duas décadas depois, em sua maioria, esses projetos nunca foram concluídos ou iniciados. A única exceção parecia a Sinovensa, considerada uma das “empresas salvadoras” por produzir hoje cerca de 105 mil barris de petróleo por dia, em meio a uma produção venezuelana muito reduzida, que em abril mal chegava a 700 mil barris por dia. Em outras palavras, um sétimo da produção de petróleo do país depende da companhia.
Esse epíteto de “empresa salvadora” vem do relatório “Nem os chineses aguentaram a (má) gestão petroleira do chavismo”, publicado em 26 de abril pela organização anticorrupção Transparência Venezuela, que analisa os acordos entre China e Venezuela que naufragaram em um abismo de corrupção. Para a Transparência, havia apenas duas exceções: a Petroboscán no estado de Zulia e a Sinovensa.
A promessa da orimulsão
Tudo começou com a mistura de óleo e água. A estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) fundou a empresa Bitúmenes del Orinoco (Bitor) em 1988 para a produção de orimulsão, uma tecnologia que produzia uma mistura carburante obtida a partir de 70% de petróleo e 30% de água.
A Venezuela vendia esse combustível obtido da Faixa Petrolífera Orinoco, localizada ao norte do caudaloso rio, para usinas de energia elétrica no Japão, Canadá e Itália. Os engenheiros e cientistas venezuelanos consideravam essa invenção como a joia da coroa do petróleo do país.
Com a chegada dos primeiros acordos assinados por Chávez com a China, foi fundada em 2001 a Orifuels Sinoven, uma joint venture entre a Bitor, a estatal China National Petroleum Corporation (CNPC) e a sua filial Petrochina Fuel. A empresa obteve uma área de 11 quilômetros quadrados para perfurar 75 poços que permitiriam a extração de 90 mil barris de petróleo por dia no Campo Morichal. Por meio de um oleoduto de 330 quilômetros, chegaria até o Complexo Industrial Petroquímico José Antonio Anzoátegui (Jose), no leste da Venezuela, para o seu transporte para a China.
O segundo módulo da planta de orimulsão de Jose começou a ser construído em 2003 com a intenção de produzir 125 mil barris de combustível por dia, obtidos pela adição de água a 90 mil barris de petróleo bruto. Dessa forma, a China garantia a totalidade da orimulsão para a sua geração de eletricidade, enquanto a Venezuela obteria receitas de 2,2 bilhões de dólares nos primeiros 20 anos da concessão.
Em 2006, a orimulsão foi abandonada na Venezuela por ser um "mau negócio", conforme anunciado pelo então ministro da Energia e Petróleo, Rafael Ramírez. O argumento oficial era que a mistura de petróleo extrapesado com outros mais leves proporcionava uma avaliação no mercado muito maior do que a praticada. O anúncio foi feito depois que vazou que a tecnologia havia sido vendida para a China, que, por seu uso, deveria seguir pagando royalties.
Diante do fracasso, a estatal chinesa CNPC concordou em fazer uma parceria com a Corporação Venezuelana de Petróleo (CVP), em uma nova empresa chamada Petrolera SinoVenezolana (Sinovensa), na qual os venezuelanos detinham 64,25% das ações.
Graças a alguns decretos presidenciais, a Sinovensa podia continuar explorando os poços de petróleo designados e decidiu investir em uma planta de aprimoramento de petróleo extrapesado que aumentaria a sua qualidade, ao reduzir sua viscosidade e acidez. Esse petróleo bruto aprimorado torna possível a produção de gasolina e diesel, facilita o transporte através de oleodutos e produz menos corrosão nas refinarias. A mistura de petróleos produzida na Faixa Petrolífera, chamada Merey 16, é muito solicitada nas refinarias asiáticas.
Esse acordo também não terminou bem. Desde setembro de 2019, a Venezuela não envia os 350 mil barris diários de petróleo com os quais se comprometeu para pagar os 50 bilhões de dólares em dívidas, a Faixa Petrolífera Orinoco tem quatro refinarias paralisadas e o incêndio ameaça tirar de serviço a última existente.
Não foi o único efeito. Para evitar as sanções que o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Ofac) dos Estados Unidos estabeleceu contra o governo venezuelano, desde setembro de 2019 a CNPC interrompeu a sua produção no país. Isso incluía tanto as operações da Sinovensa como as de sua subsidiária de engenharia, a Huanqiu Contracting & Engineering Corporation (HCG), que também acusava não ter recebido o pagamento pela Sinovensa de mais de 50 milhões dólares.
Dívida tremenda
Em 2013, o Banco de Desenvolvimento da China (BDC) se comprometeu a enviar 4 bilhões de dólares com uma taxa variável entre 1% e 8,5%, mais uma taxa fixa de 5,8%, para a expansão da usina de refino de petróleo de Jose, operada pela Sinovensa, com o objetivo de elevar a produção diária de 105 para 230 mil barris por dia. A obra seria realizada pela Huanqiu Contracting & Engineering Corporation (HCQ).
Segundo o Relatório da dívida de 2016 da PDVSA, o último disponível em seu site, que também não voltou a publicar suas demonstrações financeiras nem estatísticas econômicas, a companhia petrolífera estatal venezuelana recebeu 699 milhões de dólares em 2015, e outros 1,3 bilhões de dólares em 2016 para a Sinovensa, empréstimos que deveria terminar de pagar em 2023.
No final de 2018, a PDVSA concordou em reduzir sua participação na Sinovensa de 64,25% para 54,35% para honrar parte do financiamento. O valor da transação é desconhecido. Na época, a vice-presidente Delcy Rodríguez viajou a Pequim para a XVI Reunião da Comissão Mista de Alto Nível China-Venezuela, para pedir a aceleração de um novo empréstimo de 5 bilhões de dólares. O presidente da empresa estatal chinesa em nível global, Zhang Jianjua, voou para Caracas uma semana depois para concluir a venda de 9,9% das ações.
Tanto Rodríguez quanto o presidente da PDVSA, general Manuel Quevedo, disseram que o fornecimento de petróleo da Venezuela à China estava garantido porque a Sinovensa tinha "aumentado a sua produção" de 70 mil para 110 mil barris por dia. Eles omitiam que o projeto de uma década antes era aumentar para 230 mil barris.
Zhang e o general Quevedo inspecionaram o progresso da planta da refinaria de petróleo e ligaram parte da maquinaria. "Este é um cenário digno da cooperação entre China e Venezuela, que impulsiona os acordos firmados no país asiático em benefício de nossos povos", afirmou Zhang. O presidente da Sinovensa, Alberto Bockh, acrescentou que o trabalho "constitui um marco no sistema de expansão para aumentar a produção e a confiabilidade".
O objetivo era aumentar as exportações totais de petróleo para a China para 1 milhão de barris por dia, ao elevar a produção da Sinovensa para os 165 mil barris prometidos.
Mas nem essa inspeção, nem as visitas do presidente e vice-presidente da CNPC America em julho e abril de 2019, conseguiram aumentar a produção ou acelerar as obras de expansão para as quais tanto dinheiro havia sido destinado.
Sinovensa: Corrupção e prisão
Um mês após a última visita do dirigente chinês, o presidente da Sinovensa, Alberto Bockh, foi detido pela Direção de Contra-Inteligência Militar junto com vários gerentes. Eles foram acusados de crimes de peculato doloso intencional, de conluio de funcionários com contratados, de combinação de procedimentos licitatórios ou falsa alegação e de associação para cometer crimes por desvio de fundos e falsas contratações na Faixa Petrolífera Orinoco.
Segundo o relatório da Transparência Venezuela, dos 25 bilhões de dólares emprestados pela China para projetos conjuntos, cerca de 15 bilhões de dólares haviam sido desviados, muitas vezes para financiar a importação de bolsas Clap, a bolsa-alimentação venezuelana. O fato de que os recursos acabaram destinados ao programa do governo de fornecer alimentos subsidiados às famílias venezuelanas mais necessitadas, que também foi fonte de corrupção, como refletido nas 27 reportagens do site de jornalismo investigativo Armando.Info, levou à desconfiança dos chineses e à sua supervisão direta dos projetos.
Em abril de 2019, Bockh se reuniu com Chen Jintao, fundador da Orifuel Sinoven e vice-presidente executivo para a América da CNPC. O executivo venezuelano admitiu em uma inspeção conjunta que os desvios haviam causado atraso na produção, mas que, graças a uma nova vigilância do Exército venezuelano, esses eventos haviam diminuído.
As denúncias dos sindicalistas mostravam uma realidade diferente: não apenas os desvios continuavam, mas eram perpetrados pelos militares. Isso foi relatado por Iván Freites, secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores de Petróleo e Gás, que explicou que a maioria dos trabalhadores havia pedido demissão. "Eles nem têm água potável, não há comida nos refeitórios, não têm transporte, saem de suas casas e deixam suas famílias sem comida", disse ele ao jornal El Nacional. As fotografias mostraram um estado deplorável de máquinas, equipamentos e instalações.
Os efeitos do incêndio devastador
Em 27 de abril, quando, de acordo com o sindicalista Eudis Girot, uma faísca de solda caiu sobre o pasto não cortado em torno do Complexo Morichal, ocorreu o grande incêndio que forçou os trabalhadores a deixarem o local.
Segundo o sindicalista, as chamas destruíram quatro quilômetros de tubulações e vários tanques de armazenamento, causando uma falha elétrica generalizada e paralisando o transporte de petróleo da Faixa Petrolífera Orinoco. Não apenas os poços de petróleo interromperam suas atividades, mas também as usinas onde o petróleo bruto é separado da areia e do sal.
Os tanques, incapazes de bombear o petróleo extraído para a fábrica, transbordaram por quatro dias, um incidente grave que Girot descreve como frequente. De acordo com a sua denúncia, a falta de investimentos e manutenção, bem como a pressão dos gerentes para produzir petróleo, levaram a derramamentos frequentes. O episódio inteiro, ele alertou, prejudicou uma parte significativa da produção de petróleo do país, ao interromper o serviço da Sinovensa, responsável por cerca de 70 mil barris por dia.
Em 4 de maio, a agência Reuters não apenas confirmou os diferentes incêndios florestais que afetaram os poços de petróleo de Chevron, Repsol e Sinovensa, mas também constatou que a produção nacional continua caindo após esses incidentes.
Nem o governo venezuelano nem o governo chinês disseram uma palavra sobre a crise que está atingindo seu mais ambicioso projeto conjunto.