Os primeiros habitantes do município de Apuí, no sul do Amazonas, chegaram à região na década de 1970. Eram famílias do Sul e do Sudeste do Brasil, que migraram para ocupar terras e trabalhar como agricultores.
Tentaram plantar café, como o faziam em seus estados de origem, mas o grão não se adaptou bem ao bioma amazônico. A baixa produtividade e a falta de recursos para investir em outras soluções forçaram os produtores a se voltar a outras atividades, como a pecuária extensiva, que leva à derrubada da floresta nativa para a formação de pasto.
316
é o número de iniciativas de PSA no Brasil em 2019
Apuí sofreu um intenso processo de desmatamento nas últimas décadas. Tentando controlar a situação, em 2012 o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) desenvolveu no local um projeto de produção de café em sistema agroflorestal. A prática de baixo impacto ambiental combina a plantação de culturas como a do grão com a de espécies nativas, simulando o funcionamento de uma floresta.
Como evitam o desmatamento de suas propriedades, os agricultores recebem uma compensação conhecida como o Pagamento por Serviço Ambiental (PSA). O mecanismo, que surgiu na década de 1990, prevê recompensar — financeiramente ou em serviços — produtores, comunidades e donos de terras que conservem a vegetação nativa. Em Apuí, os cafeicultores recebem assessoria técnica gratuita para manter o modelo agroflorestal.
Os benefícios já são aparentes: em oito anos, as 34 famílias beneficiadas tiveram um aumento de 166% na produtividade e de 300% na renda familiar, ao passo que 52 hectares de terra degradada — equivalente a 63 campos de futebol — foram recuperados.
“Por ser orgânico e oriundo de sistema agroflorestal, o produtor consegue vender o café por um valor acima da média”, diz Victoria Bastos, coordenadora do Programa de Mudanças Climáticas no Idesam.
Instrumentos financeiros como o PSA vêm gerando interesse em um momento em que países buscam soluções para atingir as metas de redução de emissões de CO2 acordadas internacionalmente. A necessidade de formular mecanismos eficientes para conter a devastação ambiental é uma das prioridades das conferências da ONU para a Biodiversidade (COP15-CBD), cuja primeira fase está programada para outubro em Kunming, e da Cúpula Climática (COP26), em novembro em Glasgow.
Na última década, o Brasil assumiu compromissos de conservação ambiental ambiciosos. Prometeu, por exemplo, restaurar 12 milhões de hectares degradados de vegetação nativa até 2030 e de acabar com o desmatamento ilegal na Amazônia até o mesmo ano. Mas o país caminha na direção oposta, com o aumento do desmatamento no bioma desde 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência.
O PSA desponta como um instrumento para ajudar a reverter a tendência e recolocar o Brasil no caminho do cumprimento das metas climáticas de Paris. Em janeiro deste ano, o Congresso aprovou o marco regulatório do PSA, que deve acelerar sua implementação.
“Com a lei, passa a existir um arcabouço legal federal para sustentar e dar segurança jurídica ao empenho de recursos em futuros programas públicos de PSA. E a lei, embora federal, pode e deve estimular mais projetos e programas no âmbito subnacional e privado”, diz Ricardo Viani, professor e pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Protagonismo da América Latina
Países da América Latina têm tido protagonismo no setor, sobretudo a Costa Rica, que desde 1997 possui um sistema estatal de pagamento por serviços ambientais. Precursor no modelo, o programa costarriquenho atingiu resultados significativos – entre 1997 e 2019, preservou uma área de 1,3 milhão de hectares (oito vezes e meia a cidade de São Paulo) – e serviu de inspiração para outros países.
No Brasil, o instrumento desenvolveu-se espontaneamente, como explica Natália Jodas, autora de um livro sobre o tema e professora de Direito do Instituto Tecnológico de Aeronáutica.
“Como até este ano não havia uma lei federal com diretrizes e objetivos gerais, os projetos acabaram surgindo de forma diversificada, com cada experiência sendo bastante única e valorizando os aspectos regionais e locais. Diversas iniciativas foram criadas por municípios, governos estaduais ou mesmo por agentes privados”, afirma Jodas.
Você sabia?
O Brasil prometeu restaurar 12 milhões de hectares de florestas degradadas até 2030 e acabar com o desmatamento ilegal na Amazônia até o mesmo ano.
Em 2019, o Brasil contabilizava 316 iniciativas de PSA, de acordo com levantamento feito por Jodas com base em dados da ONG Forest Trends.
Há, inclusive, projetos ligados ao principal produto de exportação do Brasil, a soja – segunda atividade produtiva que mais contribuiu para o desmatamento na América do Sul entre 2001 e 2019, atrás da pecuária bovina.
É o caso do PSA Soja Brasil, projeto-piloto desenvolvido no sul do Maranhão pela rede internacional Tropical Forest Alliance (TFA), cujo objetivo é recompensar financeiramente os produtores de soja que consigam reduzir suas pegadas de carbono e o enorme impacto do cultivo sobre os cursos hídricos, bem como conservar a biodiversidade da região.
A iniciativa engloba 52 fazendas de médio e grande porte abrangendo um total de 450 mil hectares e segue a seguinte lógica: o produtor investe na melhoria do solo, e os ganhos ambientais desse investimento são medidos através de uma metodologia de precificação; assim, o produtor recebe, anualmente, um pagamento em dinheiro proporcional a seus resultados.
Temos agora que dar escala, entender e replicar essas iniciativas bem-sucedidas
Ao mesmo tempo que reduz a pegada de carbono do produtor, a melhora do solo aumenta a produtividade da plantação, explica Fabíola Zerbini, diretora da TFA América Latina: “Dependendo da quantidade de área não desmatada excedente que o produtor tiver, e da sua produtividade, ele irá receber mais. É uma política de estímulo a melhores práticas ambientais e de produção. No final, a grande hipótese que se quer comprovar é que uma coisa está vinculada a outra”.
Ricardo Viani, da UFSCar, lembra que a maior parte da área cultivada hoje no Brasil destina-se a plantações em larga escala, como a de soja. “Se a gente quiser pensar em provisão de serviços ecossistêmicos em área rural, a gente tem que incluir essas cadeias também. Projetos de PSA podem trazer ganhos ambientais independentemente do setor em questão, desde que sejam bem pensados e planejados”, afirma.
O PSA ajuda a preservar a floresta?
Até pouco tempo, havia confusão no Brasil sobre o que era considerado pagamento por serviço ambiental, inclusive para os profissionais responsáveis por implementá-los. O marco regulatório deu mais clareza e trouxe definições importantes ao tema.
“O PSA não necessariamente beneficia produtores que conservam a floresta; pode ser também um pagamento para a comunidade que vive em área de conservação e não produz na área, mas a protege”, esclarece Victoria Bastos, do Idesam.
É agora considerado PSA o pagamento direto a produtores que evitem o desmatamento de suas propriedades; que oferecem melhorias sociais; e o pagamento por certificados de redução de emissão de gases efeito estufa; títulos verdes; entre outros.
A lei ainda cria um cadastro nacional de PSA, no qual divulga os contratos e o andamento de todas as iniciativas no país.
“O cadastro é muito relevante, pois vai dar transparência, publicidade e acesso à informação acerca desse instrumento”, diz Natália Jodas. “A gente tem uma escassez muito grande de dados sobre esse tipo de projeto aqui no Brasil”.
A China será uma grande promotora do alinhamento da agenda ambiental na perspectiva do não desmatamento e redução da pegada hídrica
Entretanto, alguns aspectos precisam melhorar na legislação. Jodas pontua que um dos grandes gargalos dos projetos de PSA é sua sustentabilidade financeira. Muitos projetos que estimulam a preservação das florestas e águas foram encerrados por falta de verbas.
“Faltou criar um fundo nacional de pagamentos por serviços ambientais”, diz Jodas.
O PSA é uma boa estratégia para preservar as florestas, mas não pode ser pensado isoladamente, pontua Ricardo Viani, da UFSCar. “É um instrumento econômico geralmente complementar a outros já existentes, como leis e exigências legais de conservação e restauração. Ambos devem andar juntos”, explica.
Um ponto polêmico é que o marco regulatório permite o pagamento pela preservação de áreas que já são protegidas por lei e cujo desmatamento é ilegal. “No âmbito do Direito, sempre existiu um questionamento sobre se a gente poderia pagar para o cumprimento de um dever legal que já é obrigatório”, diz Jodas.
Com a maior área de florestas tropicais e a maior biodiversidade do mundo, o Brasil pode servir como um laboratório para outras nações. “Há projetos que já mostraram a viabilidade do PSA no país e seus aprendizados ecoaram mundo afora. Temos agora que dar escala, entender e replicar essas iniciativas bem-sucedidas”, diz Viani.
Zerbini, da TRF, acrescenta que a COP15, em Kunming, é uma oportunidade para a China apresentar seu progresso na área. Como sede do evento, o país tem potencial para acelerar a agenda de PSA no mundo. “Acho que a China será uma grande promotora do alinhamento da agenda ambiental na perspectiva do não desmatamento e redução da pegada hídrica”, diz.