Natureza

Diretor da WWF: ‘Toda a economia e a sociedade estão implorando para avançar na direção certa’

Em entrevista exclusiva ao Diálogo Chino, Marco Lambertini cobra metas quantitativas para cúpulas da biodiversidade e do clima
<p>Para Marco Lambertini, diretor geral da WWF, é preciso encontrar uma resposta às crises de perda de biodiversidade e mudanças climáticas que concilie o desenvolvimento econômico (Imagem: Richard Stonehouse / WWF)</p>

Para Marco Lambertini, diretor geral da WWF, é preciso encontrar uma resposta às crises de perda de biodiversidade e mudanças climáticas que concilie o desenvolvimento econômico (Imagem: Richard Stonehouse / WWF)

O mundo enfrenta simultaneamente crises de perda de biodiversidade e mudanças climáticas, que estão profundamente ligadas e exigem passos ambiciosos para serem enfrentadas. Isto é especialmente relevante para a América Latina, que tem visto perdas de biodiversidade mais significativas do que qualquer outra região e está bastante propensa a sofrer eventos climáticos extremos, que devem aumentar em frequência e intensidade.

Buscando enfrentar esses desafios, os governos se reunirão nos próximos meses na primeira parte da Conferência de Biodiversidade, a COP15, e na Conferência sobre as Mudanças Climáticas, a COP26. As discussões iniciais já ocorreram na recente Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), que incluiu uma conferência paralela sobre sistemas alimentares.

Em entrevista exclusiva ao Diálogo Chino, o diretor geral da WWF, Marco Lambertini, abordou a importância de incluir soluções baseadas na natureza nos planos de descarbonização dos países. O mundo tem que garantir uma Natureza Positiva até 2030, uma meta que ele espera que os governos incluam na nova estratégia global da biodiversidade a ser discutida na COP15.

Diálogo Chino: Na AGNU, os países desenvolvidos fizeram grandes anúncios climáticos, como a promessa da China de acabar com o financiamento público ao carvão. Mas ainda há um longo caminho pela frente, já que os países em desenvolvimento pedem mais ambição climática. Como a COP26 pode fazer a diferença?

Marco Lambertini: Temos visto compromissos e ações crescentes em direção à neutralidade de carbono até 2050. Toda a economia e a sociedade estão implorando para avançar na direção certa, mas não [está ocorrendo] suficientemente rápido. Vários países estão agindo, mas precisamos ver mais. Aumentar a ambição é o mais importante para se obter um efeito de bola de neve com outros países. Tenho esperança de que a COP26 produza avanços significativos, mas provavelmente não será suficiente. Um verdadeiro avanço seria trazer a bordo os países que ainda estão atrasados na ação climática.

Quais são as questões-chave que você gostaria que fossem abordadas na próxima COP26?

A conexão entre a natureza e o clima tem de assumir um papel central. As soluções baseadas na natureza são uma ferramenta fundamental para mitigar até 30% das emissões globais. A perda de natureza está exacerbando as mudanças climáticas, sendo os incêndios florestais os mais óbvios [sinais]. Gostaríamos que as soluções baseadas na natureza fossem abraçadas mais formalmente como parte dos planos de neutralidade para 2050.

Poucos governos estabeleceram uma conexão clara entre alimentação, saúde humana e saúde planetária

A ONU também realizou recentemente a Cúpula dos Sistemas Alimentares. Embora haja um acordo de que o sistema alimentar global está fragilizado, as partes interessadas estão divididas sobre como reformá-lo. Será que a cúpula fez alguma diferença?

A cúpula reuniu todas as diferentes vozes em torno da produção e consumo de alimentos, por isso não foi surpreendente ter opiniões divergentes sobre o caminho a seguir. Mesmo assim, ela foi significativa e serviu para abrir as discussões sobre os sistemas alimentares. Houve um reconhecimento de que os sistemas alimentares estão falhos, com grandes problemas como a fome, a desigualdade e dificuldade de acesso aos alimentos. Eles [sistemas alimentares] também estão falhando com o clima, pois são o principal motor das mudanças climáticas e da perda da natureza.

A cúpula aconteceu quando a ONU estava prestes a sediar as conversações sobre clima e biodiversidade. Há uma oportunidade de capitalizar os resultados da cúpula sobre a alimentação, para inspirar tanto as discussões de metas na ONU quanto às ações relacionadas com o sistema alimentar. O que é decepcionante é que esta foi uma cúpula, e não um evento de tomada de decisões — não foram muitas as decisões que saíram dela. Poucos governos estabeleceram uma conexão clara entre alimentação, saúde humana e saúde planetária. Temos que construir em cima disso e continuar a conversa, desenvolvendo metas comuns a serem buscadas por governos, empresas e consumidores.

O Secretário-Geral da ONU António Guterres se dirige aos delegados em um evento pré-cúpula para a recente Cúpula de Sistemas Alimentares
O Secretário-Geral da ONU António Guterres se dirige aos delegados em um evento pré-cúpula para a recente Cúpula de Sistemas Alimentares (Imagem: Xinhua / Alamy)

Esta semana os governos vão realizar a primeira parte das conversações sobre a biodiversidade da COP15, que vai continuar no próximo ano na China. Um rascunho de acordo já foi compartilhado para substituir as metas de Aichi. Quais são suas expectativas para as próximas negociações?

Há alguns desenvolvimentos positivos no rascunho em comparação com as metas de Aichi. Há uma vontade de definir metas quantitativas mensuráveis no novo quadro da biodiversidade, o que é significativo considerando que a única meta de Aichi cumprida foi a que tinha um numeral anexado a ela [áreas protegidas]. As metas quantitativas focam a atenção e aumentam a responsabilidade. Se não for mensurável, não é possível fazê-lo. O novo rascunho tem muito mais metas quantitativas, e isso é um bom sinal.

Ainda assim, falta uma meta global para a natureza, um destino claro para todos esses esforços que estamos planejando fazer. Temos um destino claro para o clima: a descarbonização até 2050. Você pode traçar caminhos e um plano com base nisso. Não temos algo assim sobre a natureza no esboço atual, por isso sugerimos um objetivo global mais acentuado para uma “Natureza Positiva até 2030” — o que significa que temos de ter mais natureza até ao final da década [do que em 2020], medido em termos de espécies e ecossistemas. Os governos têm que se comprometer com mais peixes, florestas, polinizadores e biodiversidade em geral. Tem que ser uma nova bússola para a natureza.

Ainda há tempo para introduzir estas modificações no rascunho?

A China será a presidente da COP da Biodiversidade e impulsionará as negociações. Há ainda vários meses para corrigir as várias lacunas atualmente na pauta, sendo a primeira delas a falta de um objetivo global para a natureza. Isto tem que estar no acordo. Então também precisamos de mais clareza sobre as metas de produção e consumo. Isto inclui metas em agroecologia, agricultura regenerativa, pesca sustentável e infraestrutura sustentável, algo muito relevante para a China com a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, em inglês). A China desenvolveu um BRI verde e está dando passos nessa direção. Temos de tornar verdes os setores econômicos principais que influenciam a perda da natureza.

É um dos melhores momentos da história para os países abraçarem as trocas de dívida por natureza

Há também a questão das finanças. Trata-se do financiamento dos esforços diretos de conservação, com uma lacuna de US$ 80 a 100 bilhões por ano para apoiar países em desenvolvimento a proteger 30% de suas terras e oceanos. Isto tem que ser acompanhado por um redirecionamento de todos os subsídios prejudiciais gastos com a agricultura, pesca e silvicultura. Este é o dinheiro que tem de ser redirecionado, como está acontecendo agora com os subsídios aos combustíveis fósseis, que vão para as energias renováveis. Temos de ver o mesmo nestes outros setores para que a natureza seja positiva.

Os governos latino-americanos pediram uma troca de dívida por natureza ou dívida por clima em meio à pandemia de Covid-19. Este mecanismo pode ser ampliado em uma região com um alto nível de endividamento e um importante capital natural atualmente em perigo?

É uma ferramenta muito importante que tem de ser considerada. É um dos melhores momentos da história para os países abraçarem as trocas de dívida por natureza. A crise da Covid-19 tem aumentado as dívidas soberanas em toda parte, especialmente nos países em desenvolvimento. Nós apoiamos a ideia de multiplicar esses esquemas. Não haverá trocas suficientes, por isso tem de ser realizada ao lado de outras ferramentas, como o redirecionamento de subsídios e títulos verdes soberanos. Estes podem ser utilizados pelos governos para investir em transição para sociedades positivas em relação à natureza.

Somos claros sobre o problema e sabemos as consequências que ele está causando à nossa economia e sociedade. A única resposta é embarcar em uma transição que não signifique “parar de desenvolver”. Trata-se de aumentar a riqueza de uma forma diferente. Uma combinação de inovação, tecnologia e mudança de comportamento individual poderia proporcionar isso. Isso está acontecendo na energia, mas também precisamos ver isso na alimentação, na agricultura, na pesca e na forma como utilizamos nossos recursos. O mundo tem que concordar sobre o destino e o plano para realizar essa transição, não deixando ninguém para trás.

A América Latina é uma superpotência da biodiversidade e depende do seu capital natural para o seu desenvolvimento econômico. Mas a biodiversidade da região está gravemente ameaçada, como destacou o Relatório Planeta Vivo da WWF. Como pode a América Latina conservar melhor a sua biodiversidade e ao mesmo tempo conseguir uma recuperação verde da pandemia de Covid-19?

O valor econômico da biodiversidade é enorme. Temos de redescobrir e prestar contas de forma adequada sobre o valor da biodiversidade. Quase metade da força de trabalho no mundo depende de sistemas naturais, como o turismo e a agricultura. Temos que preservar esse capital natural que tanto gera para a economia e restaurar o que podemos. Quanto mais tivermos, mais ele apoiará nossas economias. Fazer isso significa interromper a perda de biodiversidade, protegendo mais do que resta no planeta, e evitar a destruição e conversão das florestas, o que também significa mudar a forma como produzimos alimentos — particularmente na América Latina, já que isso está provocando o desmatamento.