Em novembro de 2016, quando chegou ao Brasil com a compra da carioca Concremat, a gigante chinesa China Construction Communications Company (CCCC) prometia projetos ambiciosos para o país.
O que é CCCC?
A China Communications Construction Company é uma empresa estatal chinesa e uma das maiores empresas de infra-estrutura do mundo, tendo construído estradas, ferrovias, aeroportos, portos, pontes e túneis dentro e fora da China, incluindo notáveis projetos da Iniciativa Cinturão e Rota.
Logo nos primeiros anos a empresa anunciou uma série de iniciativas em larga escala: um megaporto em São Luís, no Maranhão, com capacidade para dez milhões de toneladas de grãos por ano; com a mineradora Vale, finalizaria uma ferrovia no Pará ligando pontos de extração de minério de ferro na Amazônia aos principais portos do Brasil. E, com a também chinesa China Railway 20 Bureau Group (CR20), numa parceria público privada com o governo da Bahia, faria uma ponte de 12,4 quilômetros entre Salvador e Itaparica, que seria a maior obra sobre água na América Latina.
A sensação geral do mercado — e também de muitos líderes políticos — era de que, em pouco tempo, a CCCC ajudaria a catapultar a agenda de infraestrutura no Brasil. Uma das maiores construtoras do mundo, conhecida por muitos marcos da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, da sigla em inglês para Belt and Road Iniciative), a CCCC tinha recursos e histórico para colocar em prática essa ambição.
Meia década depois, no entanto, nenhum de seus grandes projetos saiu do papel.
No ano passado, a CCCC anunciou sua saída do megaprojeto de São Luís. A conclusão da venda de sua participação — por R$ 720 milhões à brasileira Cosan — foi finalizada em fevereiro deste ano. As outras duas grandes obras anunciadas tampouco avançaram, e a CCCC, uma vez apontada como player de destaque em potenciais leilões, sequer apresentou propostas nas últimas grandes licitações realizadas no país.
É um movimento curioso, sobretudo num momento em que o Brasil volta a atrair a atenção de investidores internacionais. “Ainda que a gente esteja numa conjuntura difícil, num cenário de pós-pandemia e que os investimentos estejam retraídos, vemos um processo de recuperação”, diz Alessandra Ribeiro, sócia e diretora para área de macroeconomia e análise setorial da Tendências Consultoria. “Esse passo da empresa chinesa, de saída de um grande projeto, parece isolado e vai na contramão do que observamos de maneira mais geral”.
Mudança de cenário na China e no Brasil
Ainda não está claro se o movimento da CCCC é apenas uma hesitação — comum em períodos pré-eleitorais como o que se vive no Brasil — ou se representa um recuo, que coloca em evidência não apenas os grandes desafios de se investir no país, mas também o momento atual da China.
Quando lançou seu plano da BRI em 2013, de construir um grande corredor logístico com ferrovias, portos e aeroportos a fim de impulsionar as relações comerciais e o transporte de mercadorias e commodities ao redor do mundo, a China acumulava anos de crescimento de dois dígitos. O país tinha um objetivo claro e recursos para financiar suas empresas mundo afora. A América Latina, e o Brasil em especial, se beneficiaram desse contexto.
Agora o cenário é um pouco diferente. Pressionada por demandas domésticas pós-pandemia e por uma perspectiva de PIB tímida para seus padrões (de 3% em 2022), a China vem retraindo os aportes feitos ao redor do mundo — um declínio de 5.5% no investimento estrangeiro direto chinês no ano passado em comparação a 2020, segundo a UNCTAD, agência da ONU para o Comércio e o Desenvolvimento. O país também passou a hierarquizar projetos, voltando sua atenção a grandes obras na Ásia e na África.
De controle estatal, a CCCC parece uma das entidades chinesas a seguir esse novo roteiro. Na América Latina, apenas um projeto mereceu destaque em seus mais recentes relatórios financeiros: o Trem Maia, no México.
Há ainda outros fatores que podem estar influenciando o movimento da CCCC no Brasil, como a legislação trabalhista, a complexa estrutura tributária e “alguns desafios culturais” listados pela CCCC em um amplo comunicado de 2019, publicado originalmente pelo Ministério do Comércio da China, e republicado pela Xinhua, a mídia estatal.
Em junho de 2021, em uma das poucas declarações à imprensa no Brasil, o então diretor-executivo da CCCC no país, Helder Dantas, disse ao Valor Econômico que era difícil explicar aos chineses o excesso de burocracia por aqui, que estava difícil conseguir financiamento e que questões fundiárias estariam atrasando a obra do porto no Maranhão.
Pedras no caminho da CCCC
De todos os projetos da CCCC no país, o porto no Maranhão mostrou-se particularmente desafiador. Localizado nas proximidades da capital São Luís, em área de florestas e manguezais, o empreendimento foi desenhado para ocupar uma área onde está a Comunidade do Cajueiro, um vilarejo com famílias de pescadores e extrativistas cujas origens remontam ao século 19.
O imbróglio ali é de longa data e anterior à chegada na CCCC, mas a postura reticente do consórcio sobre as demandas locais acabou por agravar a situação. “Não houve respeito à comunidade por parte das empresas que estavam envolvidas”, diz Haroldo Paiva de Brito, promotor de Justiça de Conflitos Agrários do Ministério Público do Estado do Maranhão.
Também na área da Ferrovia Paraense, foram registrados problemas entre a CCCC e a população local, com questionamento sobre os riscos de um empreendimento de tamanho porte em uma região de biodiversidade tão sensível, onde estão comunidades quilombolas e vilas indígenas. Até agora não há definição sobre a execução do projeto.
Para a ponte de Itaparica, na Bahia, em agosto deste ano, o Ministério Público Estadual recomendou a realização de estudos técnicos para a instalação da ponte, dado o impacto nas áreas de preservação de Salvador, Itaparica e Vera Cruz. A nova previsão é que a obra comece em 2023.
Ação e reação da política internacional
Os aspectos políticos no Brasil — com maior peso sobre a postura geralmente beligerante do atual governo de Jair Bolsonaro aos chineses — também podem ter relação com a atual postura da CCCC.
Desde que assumiu, em janeiro de 2019, Bolsonaro tentou mostrar uma aproximação com os EUA — e com a administração Trump — justamente num momento em que a guerra comercial entre EUA e China estava mais acirrada. Foi algo mais retórico que efetivo, mas que acabou arranhando a imagem da boa diplomacia brasileira e impactando as relações que o Brasil sempre manteve com o país asiático.
Nessa troca de farpas, um dos casos de maior repercussão aconteceu em março de 2020, quando o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, atribuiu à China a culpa pelo coronavírus em um tuíte. A mensagem foi rebatida pelo então embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, por meio de outros tuítes, com sua embaixada emitindo um comunicado oficial.
Para o agronegócio, a postura do governo tem impacto menor. Mas quando se trata de grandes obras de infraestrutura que demandam volumes vultosos de investimentos e aprovações, não é possível desvincular as coisas
Presidente da Câmara de Comércio e Indústria da China (CCIBC), Charles Tang foi um dos que foi a público para alertar sobre os riscos desse atrito. Segundo ele, comentários contrários à China podem gerar mais burocracia e travar projetos. “Sem acusações, haveria mais negócios fechados”, afirmou em maio de 2021 ao UOL.
A China segue como o maior parceiro comercial do Brasil. Os chineses são também um dos principais investidores estrangeiros nos setores de infraestrutura e tecnologia no país. Mas é inegável que as relações foram afetadas pelos episódios.
“Para o agronegócio ou mesmo o comércio exterior, a postura do governo tem impacto menor. Mas quando se trata de grandes obras de infraestrutura que demandam volumes vultosos de investimentos, licenças e aprovações, não é possível desvincular as coisas”, disse Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.
Para ele, a postura isolacionista defendida pelo atual governo não apenas destoa do histórico pacifista da diplomacia brasileira, como coloca o Brasil em posição subalterna no cenário internacional. “Não é à toa que há muita expectativa sobre as eleições de outubro. Existe uma demanda grande dos próprios países do G7 de que o Brasil volte a ser o interlocutor importante que vinha sendo em toda a região da América do Sul”, afirmou Brites.
O histórico dos dois candidatos para este segundo turno das eleições presidenciais no dia 30 de outubro — o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — não deixa muita margem para surpresas no campo da política internacional.
Se de um lado a hostilidade de Bolsonaro à China se fez evidente, de outro há um quadro mais aberto ao diálogo e também aos investimentos chineses. Em entrevista recente ao Diálogo Chino, o ex-ministro de Relações Exteriores do governo do PT e principal conselheiro da pauta internacional de Lula, Celso Amorim, corroborou a ideia de que, se o petista for eleito, a China terá um espaço importante em sua política internacional: “Vamos tomar as relações de onde deixamos nos governos Lula e Dilma, com muito boa parceria, com muito boa coordenação”, afirmou.
De forma mais branda e sem citar nominalmente o atual governo ou seu principal adversário petista, Tang, da CCIBC, voltou a afirmar, agora ao Diálogo Chino, que “a indefinição política em período pré-eleitoral acaba colocando muitos projetos em modo de espera”.
“Não tenho dúvida, no entanto, que em 2023 as coisas serão aceleradas, especialmente se o governo tiver pela China o mesmo ‘carinho’ que a China sempre demonstrou pelo Brasil”, disse Tang.
Procurada, a CCCC não atendeu aos pedidos de entrevista para esta reportagem.
Colaboração de reportagem de Yedan Li.