Todo inverno, desde que tem memória, Claudia Hernández observa a cidade de Puerto Montt, no sul do Chile, coberta por uma espessa camada de fumaça. Quando era criança, seus pais acendiam o calefator, um aquecedor a lenha, que diariamente combatia o frio de fora da casa. Não havia madeira suficiente para mantê-la acesa à noite inteira e, para se manter aquecida, a família dormia sob uma pilha de cobertores.
Hoje, aos 56 anos, Hernández tem sua própria casa com lareira. Ao contrário de seus pais, no entanto, ela sente o cheiro de fumaça nos uniformes de seus filhos quando voltam da escola e em suas próprias roupas sempre que chega do trabalho. Embora use lenha seca, ela diz que nem todos têm esse luxo, e alguns recorrem à lenha úmida — mais barata, mas com combustão incompleta e mais poluente.
“Usamos lenha a vida toda. Para nós, o aquecimento a lenha é muito mais rico — você sente o calor e uma sensação térmica melhor”, diz ela.
A história de Hernández não é exceção no Chile: a lenha é a fonte de energia mais utilizada nos lares chilenos. De acordo com dados do Ministério de Energia do país, 72% dos lares entre as regiões de O’Higgins, na zona central, e Aysén, no sul, usam lenha para se aquecer e cozinhar. Estima-se que o consumo anual seja de 12 milhões de metros cúbicos (ou 9 milhões de toneladas), volume suficiente para encher 18 vezes o Estádio Nacional do Chile, em Santiago.
No entanto, à medida que o país tenta acelerar sua transição energética rumo às fontes renováveis, há crescentes dúvidas se as residências chilenas serão equipadas com combustíveis menos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
“Uma transição justa deve se concentrar naqueles que têm mais dificuldade de fazer a transição por conta própria — geralmente famílias de baixa renda, mas elas não são as únicas”, diz o engenheiro ambiental e economista Adolfo Uribe.
Com a queda das temperaturas no início do inverno deste ano, a região metropolitana de Santiago decretou alerta ambiental por nove dias no fim de maio, devido às más condições do ar, com a redução da ventilação. O uso de aquecedores a lenha foi proibido na capital, embora ainda sejam amplamente utilizados em residências.
Esses incidentes estão se tornando cada vez mais frequentes no país. Nos últimos anos, pelo menos uma cidade do Chile emitiu um alerta sobre a má qualidade do ar em 96% dos dias de inverno. Esses números se traduzem em uma grave questão de saúde pública: pela fumaça, muita gente fica doente e até morre.
Aquecimento a lenha: risco à saúde
“As pessoas cresceram com a casa cheia de fumaça e cheiro de lenha, e isso significa que estiveram expostas a poluentes”, explica Nicolás Huneeus, pesquisador do Centro de Ciências Climáticas e Resiliência (CR2), em Santiago. “Mas nunca lhes disseram que isso fazia mal à saúde e, por isso, é difícil começar a explicar isso agora”.
O Ministério do Meio Ambiente explica que a lenha é a principal fonte de material particulado fino do país (MP 2.5) — responsável por 86% dessas emissões. E o uso indiscriminado dessa fonte de calor pode ter graves consequências.
O material particulado penetra profundamente nos pulmões e no sistema respiratório, causando doenças cardiovasculares e respiratórias. De acordo com um estudo publicado em março pela Lancet Countdown South America, o Chile é o país com o maior número de mortes atribuíveis à poluição do ar na América do Sul.
O médico Manuel Oyarzún, coordenador da Comissão de Poluição Ambiental da Sociedade Chilena de Doenças Respiratórias, explica que o aumento de dez microgramas por metro cúbico (µg/m3) de MP 2.5 na qualidade do ar está associado a um maior risco de doenças cardiovasculares, acidente vascular cerebral e morte.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a exposição anual à poluição do ar não ultrapasse esse patamar. Porém, o padrão de exposição anual do Chile pode chegar ao dobro disso. Estima-se que 4.590 mortes poderiam ser evitadas todos os anos se a recomendação da OMS fosse cumprida no país.
“A população tem o direito de conhecer os riscos ambientais aos quais está exposta e, por outro lado, nosso país deve ter planos de mitigação da poluição ambiental que reconheçam as realidades locais”, defende Oyarzún.
Mudanças com lei sobre biocombustíveis
Abandonar a lenha não é fácil no Chile. Huneeus, do CR2, avalia que o país ainda tem algumas barreiras técnicas, socioculturais e econômicas pela frente: “É claro que as pessoas não usam lenha apenas porque sempre usaram — elas usam porque é muito mais barata”.
Conforme o pesquisador, um dos principais desafios é o grande mercado informal de lenha, reduzindo o interesse das pessoas por comprar um produto de qualidade. Após anos de disputas políticas, a Lei de Biocombustíveis Sólidos foi aprovada no final de 2022, com a intenção de regulamentar a qualidade da lenha e outros combustíveis derivados da madeira.
“É uma lei que favorece a todos, incluindo produtores e consumidores, porque nos ajuda a comprar um produto de qualidade e mais eficiente”, diz Claudia Lopetegui, secretária regional do Ministério de Energia em Los Ríos, sul do país.
O uso de lenha seca, com 25% de umidade, gera nove vezes menos emissões de material particulado em comparação com a lenha com 35% de umidade. Além disso, a lenha seca fornece de 12% a 14% mais calor do que a lenha úmida.
Apesar do avanço legal, a regulamentação e certificação dos produtores de lenha ainda é um processo em andamento. Na cidade de Valdivia, no sul do Chile, por exemplo, a lenha seca representa apenas 6% do que é vendido no mercado, embora a lei exija que isso chegue a pelo menos 80% em dois anos.
De acordo com dados do Ministério da Agricultura, a produção de lenha é feita por 18 mil fazendas no país, o que pode exigir um longo trabalho de certificação.
Lopetegui explica que a lei só entraria em vigor quando forem aprovadas as regulamentações específicas — o que deve ocorrer ao final de 2024, conforme suas estimativas. Se os cálculos estiverem corretos, isso significa que a lei poderia começar a ser aplicada no início de 2026.
“Ao dificultar o uso de lenha de baixa qualidade, a regulamentação deve aumentar a demanda por combustíveis mais limpos, pressionando produtores”, avalia Adolfo Uribe.
Oportunidades à vista
Uma análise do CR2 mostrou que a maior redução de poluição por material particulado pode ocorrer em um cenário com políticas regionais para a substituição da lenha por pellets de madeira, feito de resíduos de biomassa, como a serragem, e melhorias no isolamento térmico das residências.
Desde 2009, o Chile implementa medidas de descontaminação para garantir subsídios às famílias que queiram trocar seu aquecedor ou fogão a lenha por um com pellets, menos poluente. Porém, a escassez e o elevado preço desse produto nos últimos anos fez com que muitos não se animassem a fazer a troca.
“Estamos trabalhando com os lenhadores e os fabricantes de pellets, mas também é necessário um plano de ação do Ministério [de Energia] para garantir que essa situação não se repita”, diz Lopetegui.
Ela acrescenta que o governo e os produtores já assinaram um acordo para que os pellets não sejam exportados, garantindo a manutenção do abastecimento interno.
Para Uribe, o plano de substituição dos equipamentos a lenha é uma boa opção para a transição energética nos lares chilenos, desde que haja garantia de abastecimento: as evidências, diz ele, indicam que o uso de pellets é mais caro do que a lenha, mas se o preço dos pellets for comparado ao da lenha certificada, a diferença será bem menor.
Para que essa transição seja justa, a energia renovável é outra oportunidade a ser considerada, acrescenta Uribe. Apesar dos desafios, o Chile hoje tem uma matriz energética cada vez mais limpa e diversificada.
“Uma maneira de aproveitar a expansão das energias renováveis é considerar seus benefícios”, diz Luis Gonzales, do Centro Latino-Americano de Políticas Econômicas e Sociais. “Por exemplo, na construção de moradias sociais e nas licitações do setor privado, é possível introduzir [requisitos para se construir] unidades que atendam aos critérios de eficiência energética e considerem a possibilidade de ter consumo solar nos mesmos projetos”.
De acordo com Gonzales, essa medida aliviaria a demanda por moradias, reduziria o custo da energia para as famílias e contribuiria para a geração distribuída, desafio tecnológico e regulatório que as economias devem considerar para obter mais produtividade.
A estratégia energética de longo prazo do Chile, de acordo com seus compromissos climáticos, atribui um papel importante à eletrificação do aquecimento, mas isso é muito difícil diante dos altos custos da eletricidadeAdolfo Uribe, engenheiro ambiental e economista
Gonzales e Uribe concordam que a regulamentação e a adoção tecnológica em tempo hábil desempenham um papel importante na transição energética doméstica. A eletrificação dos lares, segundo eles, também é fundamental para enfrentar a crise climática.
“A estratégia energética de longo prazo do Chile, de acordo com seus compromissos climáticos, atribui um papel importante à eletrificação do aquecimento, mas isso é muito difícil diante dos altos custos da eletricidade”, acrescenta Uribe.
Os projetos de hidrogênio verde e lítio promovidos pelo país podem contribuir para mudanças neste cenário. Porém, com políticas de expansão ainda focadas nas exportações, a oportunidade de desenvolvimento local de tecnologias de armazenamento — que poderia beneficiar usuários de toda a cadeia de consumo de energia, inclusive as residências — pode ser perdida.
Esta reportagem foi produzida com o apoio da Climate Tracker América Latina. Esta versão traduzida e editada foi publicada com autorização.