Na região de Mutún, no Pantanal boliviano, encontra-se um dos maiores depósitos de minério de ferro do mundo. São cerca de 40 bilhões de toneladas de ferro — pouco mais de 20% das reservas globais — em uma área montanhosa de 75 quilômetros quadrados (km²), onde também há dez milhões de toneladas de manganês.
Por muitas décadas, esse recurso inexplorado servia de esperança ao desenvolvimento da Bolívia. Mas a situação hoje preocupa comunidades vizinhas e ambientalistas.
A ideia de construir uma usina siderúrgica na área foi concebida há 60 anos, segundo Jorge Alvarado Rivas, presidente da estatal Empresa Siderúrgica del Mutún (ESM), em entrevista ao Dialogue Earth. Mas o processo de licitação só foi concretizado em 2006.
Após um ano de negociações, a empresa indiana Jindal Steel and Power Ltd ganhou uma concessão de 40 anos para explorar e converter o ferro em aço. Ela prometeu investir US$ 2,1 bilhões no projeto, mas se retirou do país em 2012, alegando ter recebido uma série de multas do governo do então presidente Evo Morales por suposta quebra de contrato.
Embora essa tenha sido a razão oficial para a saída da Jindal, havia outros fatores por trás, segundo María Renée Barrancos, bióloga que trabalhava na secretaria ambiental do município de Puerto Quijarro na época. Ela diz que a empresa queria usar a água da lagoa Cáceres, no Pantanal, para lavar o minério, mas houve resistência.
“Eles disseram que havia um fluxo suficiente para usar cinco milhões de litros cúbicos de água por hora e que, em compensação, construiriam estações de tratamento de água para os municípios”, diz Barrancos, referindo-se às cidades de Puerto Suárez e Puerto Quijarro. Mas a população local e a secretaria discordaram.
Na época, a lagoa tinha oito quilômetros de comprimento e seis de largura, com uma profundidade de cinco metros. Em 2021, o município de Puerto Suárez alertou para a crise hídrica na lagoa, que levou à redução de 76% de sua área em três décadas.
Ao sair do país, a Jindal alegou que não conseguiria cumprir seu contrato devido à falta de água e gás natural para sua indústria. Tentando evitar um resultado semelhante com outra empresa, o governo boliviano garantiu esse fornecimento quando um novo contrato foi assinado pela ESM em 2016, dessa vez com a estatal chinesa Sinosteel Corporation.
Alvarado, da ESM, confirmou em março que, oito anos após o acordo com a Sinosteel, a construção do complexo de sete usinas estava 87% concluída. Ele disse que as obras foram paralisadas entre 2019 e 2020 devido a conflitos políticos no país e, posteriormente, pela pandemia de Covid-19. Mas ele estima que a sexta unidade será concluída até agosto, e a conclusão definitiva ocorrerá em fevereiro de 2025.
Conforme os termos do contrato, a Sinosteel deve construir o complexo, colocá-lo em funcionamento e operá-lo por um ano. Depois disso, a empresa boliviana assumirá o controle, diz Alvarado, acrescentando que uma equipe de profissionais bolivianos está sendo treinada na China para administrar o projeto.
Ele diz que, para concluir a construção e iniciar as operações do complexo, serão assegurados US$ 546 milhões de três fontes: cerca de US$ 400 milhões do China Eximbank — banco chinês que concede crédito a setores produtivos; US$ 80 milhões do fundo soberano boliviano Fundo para a Revolução Industrial Produtiva; e US$ 70 milhões do Tesouro Nacional.
Um aqueduto do rio Paraguai até a usina de Mutún está sendo construído para abastecer o complexo com água. A estrutura passará pelo Parque Nacional Otuquis, área protegida no Pantanal que abriga grande biodiversidade.
Haverá ainda um gasoduto que, até o ano passado, estava 70% concluído. A estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos vai garantir seu fornecimento de gás natural.
A Bolívia vai inaugurar ainda sua primeira usina estatal para converter o minério de ferro de Mutún em itens usados na construção civil. Anualmente, diz Alvarado, ela produzirá 200 mil das quase 450 mil toneladas de aço necessárias para abastecer o mercado interno.
“Com esse complexo siderúrgico, estamos avançando na industrialização do país”, comemora Alvarado. “Também está sendo planejado um segundo complexo siderúrgico com capacidade para produzir 500 mil toneladas anuais”.
Alvarado explica que as duas usinas terão uma capacidade combinada de 700 mil toneladas, evitando a importação de aço de países como Brasil, Peru, Argentina e China. As 200 mil toneladas excedentes serão exportadas, suprindo o mercado interno e externo.
Indústria em meio à biodiversidade
O Pantanal boliviano, localizado na fronteira sudeste da Bolívia com o Brasil, faz parte do Grande Pantanal, bioma frágil que se estende pelos dois países e por uma pequena parte do Paraguai. Com cerca de 200 mil km² — quase metade do solo paraguaio —, trata-se da a maior área úmida contínua do mundo.
Na Bolívia, o Pantanal se estende por 32 mil km² e abrange quatro municípios do departamento de Santa Cruz, incluindo Puerto Suárez, onde estão as reservas de Mutún. Devido à sua grande biodiversidade, em 2001, o Pantanal boliviano foi declarado um sítio Ramsar — ou seja, zona úmida de importância internacional.
O Grande Pantanal é composto por lagos, lagoas, pântanos, rios, savanas inundadas e pelo menos três tipos de florestas. Marlene Quintanilla, diretora de pesquisa da organização Fundação Amigos da Natureza (FAN), explica que o bioma é chamado de “fábrica de água” pelo seu papel regulador das chuvas. Ela explica ainda que ele ajuda a controlar a temperatura terrestre: “Ele evita eventos extremos de seca e atenua o aquecimento global”.
A Bolívia não tem saída para o mar, então se baseia no rio Paraguai, que corta o Pantanal, para escoar a soja e outros produtos rumo à exportação. Porém, os níveis de água do bioma vêm caindo: de 1980 a 2020, houve uma redução de 23%, segundo Quintanilla.
A água do Pantanal também sustenta a produção de soja e cimento locais. Por isso, as secas também devem impactar os negócios bolivianos, alerta a pesquisadora da FAN.
O desmatamento e os incêndios florestais, cada vez mais recorrentes e intensos, têm sido as principais causas para essa tendência, observa Quintanilla.
Impactos socioambientais
Desde 2014, o biólogo Juan Carlos Urgel tem visitado o Parque Nacional Otuquis para estudar a área. Ele alerta para a construção de pelo menos uma estrada dentro de Otuquis e que, na área de Mutún, corpos d’água foram desviados, inclusive do rio Paraguai.
Enquanto Alvarado garante que isso não tenha impactado a área protegida, Urgel diz ter observado o contrário. “Eram zonas úmidas e agora secaram”, diz.
Quem vai sofrer somos nós, nossa flora e nossa faunaAna María Tomichá, indígena de comunidade próxima ao Parque Nacional Otuquis
Em julho do ano passado, após denúncias semelhantes, uma comissão de autoridades públicas inspecionou as instalações do complexo industrial. Suas conclusões estão em um documento de 24 páginas, ao qual o Dialogue Earth teve acesso. Ele afirma que a Sinosteel subcontratou empresas chinesas e já estava explorando o minério de ferro.
Uma dessas empresas subcontratadas “seria responsável pela operação da usina de lavagem [do minério] e usaria a água do rio San Juan”, observou o relatório. Ele alerta ainda que a água para o complexo industrial está sendo bombeada de um riacho local.
O relatório também observou que estradas foram abertas no Parque Nacional Otuquis para transportar materiais usados na construção do aqueduto, além de máquinas para a limpeza e o nivelamento da área. Essa operação “gera um grande impacto no ecossistema da área protegida”, afirmou o documento. A comissão também constatou resíduos, como metal, filtros, latas de tinta e garrafas plásticas, deixados nessa área rica em biodiversidade.
A deputada María René Álvarez solicitou ao Ministério do Meio Ambiente e Recursos Hídricos uma explicação sobre essas descobertas. Ela disse que as respostas que recebeu destacaram que a Autoridade Ambiental Nacional Competente “não emitiu nenhuma licença ambiental para a atividade de exploração mineral” e que somente a água retirada do rio Paraguai foi autorizada para processos industriais.
Ambas as respostas contradizem as atividades no complexo observadas pela comissão.
A comissão recomendou que os veículos respeitassem o limite de velocidade de até 50 km/h em Otuquis, para evitar colisões com animais durante a construção do aqueduto. No entanto, guardas florestais da reserva dizem ter dificuldade de fiscalizar a orientação. Ao Dialogue Earth, eles contaram que os caminhões entram no parque no fim do dia, quando os animais saem em busca comida e água, aumentando as chances de atropelamento.
Até poucos anos atrás, moradores do Pantanal apoiavam o projeto, estimulados pela esperança de mais empregos. Mas esse é “um sonho que está morrendo, porque eles percebem que não são eles os empregados”, diz a bióloga María Renée Barrancos.
Ana María Tomichá, indígena que vive na comunidade Motacusito Nuevo, nas proximidades de Otuquis, confirma que pouquíssimos moradores da zona foram contratados, “porque eles querem pessoas com experiência, e muitos aqui não têm currículo”.
Além disso, o ruído dos caminhões é contínuo. “Muitos desses projetos não cumprem a lei. Pelo contrário, as leis servem para protegê-los e quem vai sofrer somos nós, nossa flora e nossa fauna”, diz Tomichá. “Todos sofrerão os impactos”.
O Dialogue Earth entrou em contato com a Sinosteel para pedir a posição sobre o relatório da comissão, mas não recebeu resposta até a publicação da reportagem.