“Se eu tivesse ficado em Nuevo Mundo até terminar o ensino médio, teria sido apenas mais um morador”, contou Teddy Sebastián Ríos, de 24 anos. Hoje, ele é o primeiro economista formado entre os Matsigenka, um dos 51 povos indígenas da Amazônia peruana.
Ríos falou ao telefone de sua casa em Cusco, cidade andina localizada a 250 quilômetros de sua comunidade natal. Ele disse que essa conversa provavelmente seria impossível em Nuevo Mundo, onde não há sinal telefônico nem de internet.
Paradoxalmente, Nuevo Mundo está localizada em Megantoni, um dos distritos peruanos que mais obteve royalties pela extração de gás natural do vasto campo de Camisea, que abriga 90% das reservas do país. Em junho, foi celebrado o aniversário de 20 anos do início das operações, que compreendem dois blocos operados pela norueguesa Pluspetrol em parceria com petrolíferas de Argélia, Argentina, Coreia do Sul, Espanha e Estados Unidos.
Megantoni recebe, em média, US$ 65 milhões ao ano com a extração de gás. Porém, essas receitas não se refletem necessariamente na melhoria da qualidade de vida de seus sete mil habitantes. O distrito não tem sistema de esgoto ou água potável, e a energia elétrica chegou apenas em 2019. Já o primeiro centro de saúde só foi inaugurado em 2021. As instituições de ensino do distrito têm enfrentado dificuldades devido à falta de funcionários, sendo que uma das escolas de Nuevo Mundo tem apenas sete professores. Ríos teve que sair de casa ainda muito jovem para buscar oportunidades às quais os Matsigenka normalmente não têm acesso.
Outro paradoxo aqui é que nenhuma casa na região de Cusco está conectada à rede de gás; apenas sete das 25 regiões do Peru têm conexões residenciais de gás.
Apesar da distribuição desigual, o gás de Camisea ainda é responsável por mais de 42% da geração de eletricidade no país, conforme dados de 2023. A energia hidrelétrica, maior fonte de energia elétrica no Peru, corresponde aos outros 48%, embora sua contribuição flutue sazonalmente devido aos períodos de estiagem.
Nos últimos anos, secas severas revelaram uma enorme fragilidade no setor. Além disso, as reservas comprovadas de gás só devem durar outros 20 anos, levantando questões sobre a adoção de fontes renováveis e o papel do gás como combustível de transição. Para moradores próximos ao campo de Camisea, no entanto, o acesso à energia, o desenvolvimento local e o uso correto dos royalties petrolíferos são temas mais urgentes.
Falha na distribuição elétrica
Entre 2017 e 2023, o orçamento geral dos distritos na província de La Convención foi de mais de US$ 2,6 bilhões, segundo uma análise do Dialogue Earth com base nos dados do Ministério de Economia e Finanças. Desse montante, US$ 1,6 bilhão vieram do chamado “cânone” — fundo formado por metade dos impostos e royalties pagos por empresas de setores extrativistas, como a exploração de gás.
Megantoni recebeu a maior fatia do cânone nesse período: US$ 455 milhões. Ainda assim, esse dinheiro não parece ter sido destinado efetivamente ao desenvolvimento do distrito. Dados do Ministério da Saúde revelam que, no primeiro semestre de 2023, quase dois terços das crianças com menos de 3 anos em Megantoni sofriam de anemia; e duas a cada cinco crianças com menos de 5 anos sofriam de desnutrição crônica. Segundo o Ministério de Desenvolvimento e Inclusão Social do país, 97% das famílias não têm pelo menos um dos seguintes serviços básicos: água potável, esgoto, eletricidade e telefone.
Epifanio Baca, economista e pesquisador do Grupo Proposta Cidadã, especializado em monitoramento de recursos públicos, disse que esses distritos são afetados por problemas de ineficiência de gestão pública e corrupção.
Em média, os 18 distritos de La Convención executaram 73,8% de seus respectivos orçamentos nos últimos sete anos, conforme dados oficiais analisados pelo Dialogue Earth. Em outras palavras, eles deixaram de gastar US$ 705 milhões em toda a província.
Megantoni foi um dos distritos que mais teve dificuldades para usar o dinheiro, com uma taxa média anual de execução orçamentária de apenas 68,7%, o que significa que US$ 201 milhões não foram gastos. Enquanto isso, em Echarati, outro distrito rico em gás, os últimos cinco prefeitos foram presos por denúncias de corrupção.
“O governo central também tem sua parcela de responsabilidade”, destacou Baca, “principalmente o Ministério de Economia e Finanças, que, de forma displicente, transfere uma enorme quantidade de recursos para distritos que não estão preparados para lidar com tanto dinheiro”.
O governo peruano é obrigado a distribuir o cânone entre os governos regionais e locais atravessados pelos campos de gás. Mas, de acordo com Baca, isso tem sido feito sem planejamento dos investimentos em infraestrutura, limitando os possíveis benefícios das comunidades.
“É o que ocorre de forma dramática em Megantoni, município recém-criado [em 2016]. Uma unidade estatal desse porte, num local distante nas profundezas da floresta, não tem como gerir esses recursos de forma eficiente”, acrescentou Baca.
A lei ‘canônica’ só permite que os distritos gastem esses fundos em investimentos e não nos custos de administração do distrito, como a contratação de médicos e professores ou a prestação de serviços. Para Baca, isso deixa nas mãos do governo central a resolução de problemas graves, como a insegurança alimentar, que demandam recursos operacionais.
O Ministério de Economia e Finanças do Peru não respondeu às tentativas de contato do Dialogue Earth a respeito dessas questões.
Apesar da ineficiência estatal, o dinheiro continua chegando a Megantoni. Além do financiamento canônico, a extração de gás está impulsionando a economia local. O Nuevo Mundo, por exemplo, recebe milhões de dólares da petrolífera espanhola Repsol, parceira do consórcio Camisea, para alugar terras comunitárias. Isso permite que a Repsol opere o Lote 57, bloco de gás adjacente aos campos de Camisea. Foi graças a um desses fundos comunitários que o economista Teddy Sebastián Ríos, citado no início da reportagem, conseguiu financiar seus estudos universitários.
Promessas não cumpridas
Além dos royalties petrolíferos, as operações de Camisea têm gerado impacto sobre as empresas locais. Fernando Jiménez Ugarte, professor de engenharia especializado em hidrocarbonetos na Pontifícia Universidade Católica do Peru, disse que as indústrias da região economizaram ao trocar a geração de energia a diesel pelo gás. Com a ajuda de incentivos do governo, o setor de eletricidade também reduziu seus custos ao adotar as termelétricas alimentadas a gás, diesel e derivados — embora isso também tenha contribuído para o aumento das emissões.
Por outro lado, o setor do gás no Peru ainda tem uma enorme dívida social. As promessas de gás para todos estiveram nos discursos dos últimos oito presidentes, mas poucos foram realmente beneficiados. A distribuição desigual de gás favorece principalmente as regiões costeiras do país, mas não chega ao interior peruano. Em agosto de 2023, mais de 1,2 milhão de residências, empresas e instituições sociais eram abastecidas por gás natural, muitas como resultado do Fundo de Inclusão de Energia Social (Fise) criado em 2012. No entanto, mais de 92% dessas conexões estavam concentradas nas regiões de Lima e Callao. Em Cusco, onde estão localizadas as reservas de gás, nenhuma residência foi conectada pelo Fise à rede de gás.
As áreas com alta demanda, como as indústrias, geralmente ficam próximas às grandes cidades, favorecendo a distribuição de gás residencial nas proximidades. Por mais de 15 anos, governos prometeram o desenvolvimento de novas indústrias petroquímicas, cuja demanda poderia viabilizar a expansão de rede de gás, inclusive para a produção de fertilizantes usados na agricultura familiar. No entanto, muito pouco foi concretizado.
Em abril de 2023, quatro meses após o início de seu mandato, a presidente Dina Boluarte anunciou planos para construir mil quilômetros de redes de gás em 11 regiões. Três meses depois, ela disse que uma nova usina petroquímica seria construída no sul do país. Apesar das promessas de que mais detalhes do projeto seriam revelados até o fim do ano passado, até agora não houve avanços nesse sentido.
Em 2009, o então presidente Alan García (2006-2011) anunciou que a construção de várias petroquímicas seria iniciada em até dois anos. Em novembro daquele ano, a cidade portuária de Matarani, no sul da região de Arequipa, foi escolhida para receber as novas indústrias. Além disso, foram propostos os projetos das usinas petroquímicas de Pisco e Marcona, ambas no sul da região de Ica. Nenhum desses projetos foi concluído.
Em 2014, no governo de Ollanta Humala (2011-2016), a construção do Gasoduto Sul Peruano foi concedida à então Odebrecht (atualmente Novonor). Orçado em US$ 7 bilhões, o projeto previa 1,1 mil quilômetros de gasoduto entre Cusco e o departamento de Moquegua, no sul do país. Porém, as obras foram paralisadas em 2017 após o envolvimento da Odebrecht em um dos maiores escândalos de corrupção da América Latina. A manutenção dos gasodutos ociosos custa pelo menos US$ 40 milhões por ano ao Estado peruano.
Depois de Humala, o governo de Martín Vizcarra (2018-2020) tentou reavivar o projeto e incorporar novas regiões ao sistema, enquanto o presidente Pedro Castillo (2021-2022) prometeu que a construção começaria em 2025. O governo Boluarte não comentou sobre o futuro do projeto.
O Dialogue Earth entrou em contato com o Ministério de Energia e Minas para entender o status atual desses projetos, mas não recebeu resposta até a publicação da reportagem.
Preocupações e transições
Algumas das comunidades indígenas que vivem perto de Camisea disseram que não foram consultadas previamente sobre os projetos petroquímicos. A consulta prévia, mecanismo criado para proteger os direitos fundamentais das comunidades diante de grandes projetos de exploração, existe no Peru desde 1995, após o país ter assinado a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Apesar disso, o dispositivo só foi incluído na legislação peruana em 2011.
Henry Carhuatocto, advogado e diretor-executivo do Instituto de Defesa Legal do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, corroborou as denúncias das comunidades. Em relação aos blocos explorados pelo consórcio Camisea, ele afirmou que “não houve consulta sobre os contratos de concessão, os estudos de impacto ambiental ou as modificações dessas pesquisas”.
A consulta livre, prévia e informada permite que as pessoas aprovem ou rejeitem projetos de exploração que possam afetá-las. Originalmente, foi criada para preservar os interesses dos povos indígenas, mas hoje serve para todos os tipos de comunidades. Esse direito está consagrado na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção sobre Diversidade Biológica e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Uma reserva de gás ainda não explorada também tem gerado polêmica. Em 2005, o Bloco 58 foi concedido à Petrobras e depois transferido para a China National Petroleum Corporation (CNPC) em 2013. Um ano depois, a CNPC apresentou um novo estudo de impacto ambiental ao Ministério do Meio Ambiente. Como isso ocorreu após a lei de consulta prévia do Peru entrar em vigor, acreditava-se que haveria um processo de diálogo entre a empresa e as comunidades indígenas próximas. No entanto, conforme um relatório de 2020 da organização Direito, Meio Ambiente e Recursos Naturais, a CNPC “evitou essa possibilidade”.
À medida que as conversas globais sobre a transição energética ganham tração, o papel do gás natural permanece controverso, tanto no Peru quanto em outras partes do mundo. O setor e muitos países produtores têm apresentado o gás natural como um “combustível de transição” no processo de adoção de fontes mais limpas, como a eólica, a solar e a hidrelétrica — a terminologia controversa também apareceu no acordo final da cúpula climática da ONU no ano passado.
Os impactos econômicos de curto prazo nos países que dependem do gás para gerar energia e receitas continuam sendo uma questão defendida por alguns analistas. Fernando Jiménez Ugarte, da Pontifícia Universidade Católica do Peru, defendeu o uso do gás “porque, caso contrário, ele permanecerá nos campos”. Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento de 2021, no entanto, estimou que cerca de 70% das reservas comprovadas de gás natural na América Latina precisarão permanecer no solo para que a região cumpra suas metas climáticas no âmbito do Acordo de Paris enquanto reconhece os desafios econômicos para os países dependentes de gás.
Embora também cause divergência, outra possibilidade seria expandir a energia hidrelétrica para limpar a matriz elétrica peruana. “Nosso país usa apenas 6% da água para produzir energia hidrelétrica. Há capacidade comprovada para gerar 15 vezes mais, mas não a usamos”, afirmou Jiménez Ugarte.
Estudos também apontaram o alto potencial do Peru para a produção solar e eólica, mas o país está atrasado em relação aos seus vizinhos no desenvolvimento dessas fontes alternativas. A energia solar, em particular, tem sido destacada como uma solução para o acesso à energia em áreas remotas da Amazônia, incluindo, potencialmente, lugares como Megantoni e outros distritos de La Convención.