Clima

Opinião: Brasil e China podem liderar a cooperação climática Sul-Sul

Parceria sólida focada em ações climáticas poderia contribuir para a reformulação da arquitetura de financiamento internacional, escrevem analistas
<p>Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em reunião com Li Xi, membro do Comitê Permanente do Politburo da China, em setembro de 2023. Analistas afirmam que uma relação forte entre os dois países poderia impulsionar negociações internacionais sobre o clima (Imagem: Fábio Pozzebom / Agência Brasil)</p>

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em reunião com Li Xi, membro do Comitê Permanente do Politburo da China, em setembro de 2023. Analistas afirmam que uma relação forte entre os dois países poderia impulsionar negociações internacionais sobre o clima (Imagem: Fábio Pozzebom / Agência Brasil)

O mês de agosto marcou o 50º aniversário das relações diplomáticas entre o Brasil e a China — dois países fundamentais para os esforços globais contra o caos climático. A celebração dessa importante data se deu em um contexto de estreitamento dos laços entre Brasília e Beijing, além do fortalecimento da cooperação climática.

À medida que o mundo enfrenta os crescentes impactos das mudanças climáticas, a necessidade de uma cooperação global ambiciosa nunca foi tão urgente. Nos próximos 15 meses, a maneira como esses dois gigantes do clima colocarem em prática suas ambições em relação à crise climática pode ser transformadora. 

Uma parceria climática abrangente entre a China e o Brasil — englobando investimento, comércio, cooperação técnica e capacitação, com foco em transições econômicas verdes — poderia servir como um poderoso modelo para a cooperação climática Sul-Sul. Isso poderia ajudar a destravar o financiamento climático e impulsionar as negociações internacionais sobre o clima, aumentando as chances globais de se atingir as metas do Acordo de Paris.

Financiamento internacional a partir do Sul Global

O Brasil e a China estão na vanguarda das economias emergentes: seus impressionantes avanços de desenvolvimento nas últimas décadas remodelaram a economia mundial, redefiniram a lógica global da descarbonização e mudaram a geopolítica.

Além de anunciar compromissos ousados e tomar medidas ambiciosas em relação ao clima, ambos os países exercem um papel de liderança e integração com o Sul Global no cenário mundial, dando um forte apoio à reforma dos sistemas financeiros multilaterais e internacionais para incluir as vozes do Sul Global.

Grafite nas ruas alagadas do Centro Histórico de Porto Alegre com a frase ‘Poderia me dar dignidade?’
Grafite nas ruas alagadas do Centro Histórico de Porto Alegre com a frase ‘Poderia me dar dignidade?’, em maio de 2024. Conforme um novo relatório, apenas 16% do financiamento climático global foi distribuído para países pobres e em desenvolvimento entre 2021 e 2022 (Imagem: Maí Yandara / Mídia NINJA, CC BY NC)

As duas nações também têm defendido a participação de novas instituições pelas quais a cooperação climática Sul-Sul poderia ser rapidamente ampliada: o Novo Banco de Desenvolvimento (também conhecido como Banco dos Brics), com sede em Xangai e encabeçado pela ex-presidente Dilma Rousseff; o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura; o Fórum de Boao para a Ásia, focado em cooperação econômica; o Fundo de Cooperação Climática Sul-Sul da China (SSCCF); e a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), programa de investimento em infraestrutura da China que já chegou a cerca de 150 países — o governo brasileiro estuda, inclusive, a possibilidade de aderir ao projeto. Com avanços significativos no aumento dos investimentos através do SSCCF e um movimento para tornar a BRI mais verde, podemos esperar muito mais dessas instituições.

O financiamento climático internacional, no entanto, não acompanhou essas mudanças tectônicas. As economias emergentes e em desenvolvimento foram responsáveis por mais de dois terços do crescimento do PIB global e por 95% do aumento das emissões de gases de efeito estufa na última década. Ainda assim, o financiamento climático internacional continua concentrado nos países mais ricos, com apenas 16% destinados aos mercados emergentes, às economias em desenvolvimento e aos 45 países menos desenvolvidos entre 2021 e 2022, conforme o último relatório Global Landscape of Climate Finance

O insuficiente financiamento climático não atende às necessidades mais urgentes: nesses dois anos, apenas 5% do financiamento foi destinado à adaptação e só 3% chegou aos países menos desenvolvidos e mais vulneráveis ao clima. Já o financiamento climático Sul-Sul em 2023 representou menos de 2% do total — embora esse número provavelmente esteja subestimado, já que esse tipo de financiamento não é consistentemente registrado.

As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em maio expuseram as graves deficiências no financiamento climático, mas destacaram uma oportunidade de reformular as respostas internacionais. O desastre evidenciou a necessidade de melhorar a capacidade local para prever e lidar com eventos extremos relacionados ao clima e de soluções baseadas na natureza para o aumento de resiliência — dois pontos críticos ignorados pelo atual financiamento climático. 

Com cerca de 90% dos 497 municípios do estado afetados e mais de meio milhão de pessoas desalojadas, a recuperação das cidades gaúchas exige recursos que ultrapassam a capacidade dos governos estadual e federal. A reconstrução sustentável exigirá um aumento substancial do financiamento climático internacional, além de uma adequação às necessidades específicas de cada país, o que sinaliza a urgência de novas abordagens. 

Os fluxos do financiamento climático sob a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas são, por definição, determinados por países doadores do Norte Global — e por boas razões, dado seu peso econômico e a “dívida de carbono” acumulada por seu desenvolvimento historicamente baseado em altas emissões. Isso reflete a arquitetura do regime climático global, em que o princípio de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” é um pilar e continuará sendo inegociável para países pobres e emergentes. 

Isso significa que a obrigação dos países ricos de dar apoio financeiro à implementação do Acordo de Paris continua sendo crucial para um financiamento climático na próxima COP29, no Azerbaijão. Os países em desenvolvimento denunciam, com razão, o descumprimento das promessas de financiamento por parte dos países ricos. Porém, deve-se ressaltar que essa é uma falha no contexto geral, já que muitos países cumprem e até mesmo excedem suas devidas contribuições

Ainda assim, chegamos a um ponto no qual o progresso não pode ser refém dessa complicada dinâmica política. 

A formalização de um maior papel para as economias emergentes e da cooperação Sul-Sul refletiria uma realidade crescente no mundo e contribuiria para dois objetivos centrais na COP29: um aumento expressivo no financiamento climático e um melhor direcionamento desse financiamento às necessidades dos países em desenvolvimento.

Isso seria consistente com o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Reconhecer as possíveis contribuições voluntárias das economias emergentes como investidores, parceiros comerciais e facilitadores do financiamento não reduz, de forma alguma, a obrigação moral dos países ricos de fornecer mais financiamento público para as ações climáticas no Sul Global. Essas são camadas distintas no conjunto de financiamento climático necessário para dar o salto quântico esperado pela Nova Meta Coletiva Quantificada de Financiamento Climático, que deve ser estabelecida na COP29.

China e Brasil em posição de liderança

Em um momento em que os ventos econômicos e geopolíticos dificultam acordos ambiciosos sobre financiamento, a China e o Brasil estão em uma posição única para definir um novo rumo para o financiamento climático global, graças à sua liderança ambiciosa, forte ativismo internacional e influência sobre países do Sul Global.

Uma recente reunião ministerial sobre mudanças climáticas em Wuhan deu o tom: ao lado da África do Sul e da Índia, como parte do bloco Basic de países recém-industrializados, Brasil e China reafirmaram seu compromisso com o multilateralismo e o desenvolvimento de baixo carbono. Os ministros também enfatizaram a necessidade de ações urgentes e de uma nova meta coletiva para o financiamento climático, passando de bilhões para trilhões de dólares anuais para se atingir as metas do Acordo de Paris.

Como maior fabricante e fornecedora de tecnologias de baixo carbono, a China está em uma posição única para impulsionar investimentos que acelerem a adoção de soluções acessíveis em todo o mundo, facilitando as transições verdes. A China já está contribuindo para isso na América Latina e em outras regiões. Enquanto isso, o governo brasileiro propõe uma nova política industrial e um programa de transição ecológica focado no aumento da resiliência, na promoção da sustentabilidade ambiental e no avanço da transição energética em todos os setores produtivos.

Para além do financiamento, as duas nações podem apoiar os países parceiros no Sul Global, especialmente em capacitação técnica e transferência de tecnologia, bem como no desenvolvimento e na implementação de planos de transição e na co-criação de oportunidades de investimento. Isso pode — e, na verdade, deve — ser feito como complemento aos esforços dos países doadores ricos, mantendo a porta aberta para o financiamento de outras fontes.

A China e o Brasil têm uma oportunidade histórica de estabelecer um novo modelo de cooperação climática Sul-Sul, indo além do financiamento e se baseando na solidariedade diante de desafios e compromissos para as transições econômicas de zero emissões líquidas. Essa parceria sinalizaria uma mudança importante para os vieses e as lacunas do atual financiamento climático internacional. Ela também pode contribuir para um desfecho bem-sucedido na COP29, promovendo uma arquitetura de financiamento climático mais resiliente, representativa e politicamente estável, além de dar mais relevância e aumentar as ambições da COP30 no Brasil em 2025.