Energia

A América Latina cumprirá suas metas de transição energética até 2030?

Fontes solar e eólica se expandem mais rápido na região do que em outras partes do mundo, mas ainda não conseguem frear combustíveis fósseis
<p>Complexo eólico União dos Ventos em São Miguel do Gostoso, Rio Grande do Norte. Setor elétrico brasileiro é dominado por hidrelétricas, mas também lidera o avanço da energia eólica e solar na América Latina (Imagem: Pulsar Imagens / Alamy)</p>

Complexo eólico União dos Ventos em São Miguel do Gostoso, Rio Grande do Norte. Setor elétrico brasileiro é dominado por hidrelétricas, mas também lidera o avanço da energia eólica e solar na América Latina (Imagem: Pulsar Imagens / Alamy)

A América Latina é a única região, com exceção da China, que está adiantada com a meta de aumentar sua capacidade de energia renovável até 2030, conforme a Agência Internacional de Energia (AIE).

Para a AIE, o potencial ainda não explorado de usinas hidrelétricas, solares e eólicas na região é um sinal de que a meta coletiva de triplicar a capacidade renovável global até 2030, acordada na conferência climática COP28 do ano passado, poderia ser ainda maior. No início do próximo ano, os países terão a oportunidade de abordar o assunto em suas novas versões dos planos nacionais para combater as mudanças climáticas. Mas o que tem avançado na prática?

Quando se trata de eletricidade, a América Latina é uma das regiões mais verdes do mundo. Somente no ano passado, 62% da energia elétrica da região foi gerada a partir de fontes renováveis, segundo dados da Ember. 

A região tem mais de oito mil projetos de energia renovável em fases iniciais — incluindo iniciativas de hidrogênio de baixo carbono — com investimentos totais de US$ 232,8 bilhões. Além disso, há mais de 700 projetos em construção, com US$ 20,8 bilhões em investimentos. 

Os combustíveis fósseis ainda representam dois terços da matriz energética da região — dominando sobretudo os setores de transporte e indústria —, proporção que segue abaixo da média global de 80%.

Em entrevista ao Dialogue Earth, Andrés Rebolledo, secretário-executivo da Organização Latino-Americana de Energia (Olade), disse que a América Latina tem cerca de 500 gigawatts (GW) de capacidade renovável instalada e, até 2050, deve atingir mais 1000 GW.

Rebolledo também destacou que a maioria dos novos projetos renováveis está concentrada em fontes eólica e solar, e não mais nas tradicionais hidrelétricas.

O sucesso do setor de energia renovável na região representa um alívio para o cumprimento das metas internacionais. 

Porém, há dois grandes desafios: especialistas consultados pelo Dialogue Earth argumentaram que, em primeiro lugar, há uma grande disparidade no desenvolvimento de energias renováveis entre os países latino-americanos; e, em segundo lugar, que o aumento das energias renováveis ainda não se traduz no abandono dos combustíveis fósseis.

América Latina, o mundo e a China

O Chile e o Brasil lideram os esforços da América Latina para impulsionar a energia renovável, ocupando o segundo e o quarto lugares no ranking global de 2024 do Monitor de Energia Renovável, recém-lançado pela Climate Action Network. O ranking analisa o desempenho de 62 países em sete categorias, como investimento em energias renováveis, empregos no setor e expansões planejadas. Outros países seguem abaixo na classificação, como Argentina (21º), México (23º) e Uruguai (27º). 

Homem dirige trator em campo aberto com usinas eólicas no fundo
Trator estacionado em frente ao Parque Eólico Aurora em Llanquihue, Chile. Especialistas descrevem a política chilena de energia renovável como uma iniciativa consistente em diferentes governos e partidos (Imagem: Tamara Merino / Fundo Monetário Internacional, CC BY NC ND)

Essas disparidades mostram que, coletivamente, a região ainda avança a passos lentos — porém constantes — em sua transição energética. Rebolledo ressalta que muitos planos nacionais estão sujeitos a mudanças, já que são moldados por diferentes fatores políticos, econômicos e tecnológicos, tanto na esfera local quanto internacional.

O sociólogo argentino Esteban Serrani, especialista em transição energética, disse que esse modelo de desenvolvimento está se tornando “dominante”. “A Europa está condicionando a concessão de crédito a partir de diretrizes mais ‘verdes’. Há um ambiente de negócios que, no geral, está seguindo esse caminho”, acrescentou.

De acordo com Serrani, desde a crise de abastecimento de gás em função da guerra na Ucrânia, a Europa busca acelerar a transição. “Não é exclusivamente por consciência ecológica, mas por autonomia e segurança”, explicou. É por isso que, segundo ele, o gás é considerado um “combustível de transição”, embora essa seja uma definição bastante contestada.

A Europa não é a única potência que promove essas mudanças. A China — com a maior capacidade de energia renovável do mundo e a força dominante em tecnologias solar e eólica — quer ser a grande responsável por impulsionar a transição energética mundial. 

Na América Latina, a China fincou raízes como um importante fornecedor de tecnologia manufaturada, um importador e parceiro na produção de matérias-primas necessárias para a transição energética e até mesmo um gestor de empresas de eletricidade — é o caso da Enel, no Peru, comprada por uma subsidiária da chinesa State Grid Corporation, e da Pontoon, no Brasil, adquirida pela PowerChina.

Desenvolvimento de energia solar e eólica

Com a queda significativa nos preços das energias renováveis, vários países da América Latina conseguiram acelerar o desenvolvimento da energia eólica e solar.

Especialistas consultados pelo Dialogue Earth lembram que esses investimentos externos precisam beneficiar a região, permitindo que os países agreguem valor internamente, em vez de importar todo o necessário para os projetos renováveis.

Serrani sugeriu que os países latino-americanos devem abordar o “trilema da energia”. O conceito defendido por ele e outros especialistas da região abrange as três variáveis que moldam as decisões sobre a transição energética: segurança energética, equidade e sustentabilidade. De acordo com uma avaliação recente do Fórum Econômico Mundial sobre 120 países, a pontuação da América Latina foi a que menos cresceu na última década com base nesses parâmetros. 

México, Argentina, Bolívia e Venezuela deixaram muito a desejar em suas transições, afirmou Manuel Pulgar-Vidal, líder global de clima e energia do WWF e ex-ministro do Meio Ambiente do Peru. Isso se deve ao fato de que esses países continuam muito dependentes de petróleo, gás e até mesmo carvão, tanto para o consumo quanto para a exportação. Os combustíveis fósseis respondem por uma média de 85% da matriz energética desses quatro países, segundo uma análise do Dialogue Earth com base nos dados da AIE.

Como uma região que contribui com 10% das emissões globais, a América Latina tem ambições fracas, segundo Pulgar-Vidal, tornando a transição mais lenta. “Esses governos também enfrentam sistemas de concessões e contratações sob regras de estabilidade que os limitam a assumir novos desafios”, acrescentou.

Flare de gás queima ao lado de área de pastagem protegida por cercas
Queima de gás em termelétrica próxima a vinhedo em Mendoza, Argentina. Os setores de petróleo e gás do país podem se beneficiar de isenções fiscais e alfandegárias propostas pelo governo (Imagem: Jose Luis Stephens / Alamy)

No caso do México, Omar Masera Cerutti, pesquisador de recursos bioenergéticos e mudanças climáticas da Universidade Nacional Autônoma do México, argumentou que o país deixou de ser um dos mais importantes exportadores de petróleo na década de 1980 para importar cerca de metade de seus combustíveis refinados. O país atingiu seu pico de produção de petróleo em 2004 e de gás em 2009, e depois disso a produção diminuiu progressivamente, acrescentou.

Mesmo assim, o último governo concentrou sua política energética quase exclusivamente na produção de hidrocarbonetos e interrompeu as políticas de transição energética. “Especialmente quando sofremos com 40% de pobreza energética, é mais difícil para países produtores de petróleo como esse fazerem a transição”, disse Masera. 

Apesar disso, Masera está confiante de que o novo governo, liderado pela presidente Claudia Sheinbaum, terá a transição energética como uma de suas prioridades. “No futuro, o foco não estará no desenvolvimento de hidrocarbonetos, mas primeiro na eficiência energética e depois na promoção de energias renováveis, sobretudo no setor elétrico”, acrescentou. Fontes próximas ao novo governo disseram ao Dialogue Earth que 80% dos novos projetos propostos à Comissão Federal de Eletricidade do país (CFE) são para fontes renováveis.

A Colômbia, um dos países da região com maior ambição política para a transição energética, também não conseguiu interromper a produção de carvão, disse Giovanni Pabón Restrepo, diretor de energia na organização Transforma. “Ele representa 50% das exportações e gera muitas divisas”, acrescentou.

Gustavo Petro, com chapéu típico do Caribe colombiano, assina placa solar
Presidente colombiano Gustavo Petro na inauguração da usina solar La Unión, em Montería, em setembro. Embora Petro tenha demonstrado grande interesse na transição energética, a economia do país ainda é muito dependente das exportações de combustíveis fósseis (Imagem: Andrea Puentes / Presidência da Colômbia, PDM)

Algo semelhante ocorre na Argentina, onde diferentes governos têm visto as reservas de Vaca Muerta, com seus vastos campos de petróleo e gás no norte da Patagônia, como a resposta à crise econômica do país e uma forma de reduzir as importações de energia.

Pabón Restrepo observou que os países mais progressistas em relação às energias renováveis passaram por crises energéticas em algum momento de sua história. Esse é o caso de Brasil, Chile e Uruguai, que adotaram políticas para diversificar sua eletricidade, incluindo a energia solar e eólica.

A eletricidade do Brasil é fornecida principalmente por hidrelétricas. Porém, após uma seca histórica entre 2000 e 2002, o país desenvolveu um programa de incentivos para fontes alternativas — biocombustíveis de cana-de-açúcar e energias renováveis não convencionais. Além disso, juntamente com a Colômbia, o país começou a preparar o caminho para o desenvolvimento de usinas eólicas offshore.

No ranking de transição energética do Fórum Econômico Mundial, o Brasil lidera a lista na região e ocupa a 12ª posição global. De acordo com dados oficiais, o sistema de eletricidade ainda é dominado por fontes hidrelétricas, embora haja uma presença crescente de energia eólica e solar desde 2010. “Atualmente, é muito mais caro construir novas usinas hidrelétricas do que desenvolver parques eólicos ou solares”, disse Ricardo Fujii, especialista do WWF Brasil.

Não foram apenas as oportunidades de mercado que influenciaram o Brasil e outros países da região a se voltarem para as energias renováveis. Andrés Rebolledo, da Olade, acrescentou que também há uma visão de Estado em relação às políticas energéticas: enquanto ministro de Energia nos últimos dois anos do governo de Michelle Bachelet (2014-2018) no Chile, Rebolledo ajudou a posicionar o país entre os mais avançados da região em sua transição energética. “No Chile, essas políticas deram continuidade e coerência a esse processo, que passou por diferentes ciclos políticos com as mais diversas posições”, destacou.

Em 2025, todos os países da região terão que enviar seus novos planos climáticos, chamados de Contribuições Nacionalmente Determinadas, para a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas. Embora sejam esperadas metas mais ambiciosas, ainda não se sabe ao certo qual será sua escala. Para a América Latina, as discussões continuam focadas não apenas na expansão das energias renováveis, mas também no papel e na responsabilidade dos países latino-americanos no cenário global.