A cúpula de biodiversidade, COP16, na Colômbia, terminou no dia 2 de novembro com questões cruciais sem resolução, já que as negociações sobre o financiamento à proteção da biodiversidade foram abruptamente interrompidas.
Prevista para se encerrar no dia 1º de novembro, a cúpula enfrentou intensos e longos debates que se estenderam pela madrugada. No entanto, com a saída de muitos delegados para não perderem voos, a reunião foi suspensa por falta de quórum. A COP16 não foi oficialmente encerrada, e os temas pendentes devem ser retomados.
Apesar de não terem conseguido chegar a um acordo sobre o financiamento, observadores afirmam que a cúpula de duas semanas trouxe avanços concretos em outras questões e reforçou a importância da proteção da natureza.
Em 2022, na COP15 em Montreal, os 196 países signatários da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB) aprovaram um novo Marco Global de Biodiversidade. O documento estabeleceu 23 metas a serem cumpridas até 2030, incluindo a proteção de pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas do mundo.
Dois anos depois, a COP16 tinha como objetivo avançar na implementação do tratado e pressionar pelo seu financiamento, apoiando principalmente os países em desenvolvimento.
“Embora as ações precisem ser mais ambiciosas e a tomada de decisão possa ser mais rápida, não estamos saindo de Cali de mãos vazias”, avaliou Patricia Zurita, diretora de estratégia da organização Conservation International.
Financiamento da biodiversidade
Para atingir as metas do marco de biodiversidade, será preciso grande volume de investimentos. Mas os recursos mobilizados até agora são insuficientes, e a própria CDB estima ser necessário adicionar US$ 700 bilhões anuais até 2030 — o que explica por que as discussões sobre financiamento tiveram destaque na COP16.
Via de regra, os recursos são administrados pelo Fundo Global para o Meio Ambiente da ONU. Porém, muitos países em desenvolvimento questionaram a eficácia e a burocracia desse órgão, pressionando pela criação de outro fundo que fosse gerido pela própria COP.
Enquanto presidente da conferência, a Colômbia apresentou uma proposta para a criação desse fundo, mas a ideia foi logo rejeitada por nações do Norte Global, incluindo da União Europeia e o Canadá, que pediram para adiar essa discussão até a COP18, em 2028.
“Isso é lamentável, considerando a necessidade urgente de garantir que os fundos cheguem logo nos lugares necessários para deter e reverter a perda da natureza”, disse Nina Seega, diretora de finanças sustentáveis do Instituto para a Liderança em Sustentabilidade da Universidade de Cambridge. “Precisamos de liderança política e mais comprometimento”.
Fundo para recursos genéticos
Um dos avanços da COP16 foi a criação do Fundo Cali, destinado ao compartilhamento de benefícios decorrentes do uso de recursos genéticos vegetais e animais, bem como à gestão de informações do Sequenciamento Genético Digital (DSI, na sigla em inglês).
As informações genéticas de plantas e animais de países em desenvolvimento são frequentemente usadas por empresas do Norte Global para produzir cosméticos e alimentos. Por isso, as nações do Sul Global pediram a criação de um mecanismo internacional que garantisse o compartilhamento justo dos benefícios do DSI para as comunidades que vivem próximas aos locais de extração desses recursos.
Com a criação do Fundo de Cali, empresas que se beneficiam de recursos genéticos devem contribuir com 1% de seus lucros ou 0,1% de suas receitas. Isso vale para empresas de oito setores, incluindo o farmacêutico e de cosméticos.
Oscar Soria, diretor da organização Common Initiative, avaliou a criação do fundo como uma vitória importante, mas questionou a falta de obrigatoriedade das contribuições. “A eficácia do mecanismo dependerá da disposição da comunidade global em apoiá-lo e do reconhecimento do valor disso para a reputação das empresas”, disse Soria.
Saúde e biodiversidade
Na COP16, foi criado ainda um plano de ação com medidas voluntárias para proteger a biodiversidade e a saúde — e não só a humana, mas também dos ecossistemas. O plano determina a realização de estudos de impacto à saúde relacionados ao uso do solo, o monitoramento de doenças onde há rápida perda de habitat e normas mais rígidas para o comércio de animais selvagens.
“Milhões de pessoas morreram e sofreram com a pandemia de Covid-19, e este plano está traçando um excelente caminho para abraçar a integração e a interconexão da biodiversidade com a saúde”, disse Susan Lieberman, vice-presidente de política internacional da World Conservation Society. “Não pode haver prevenção de futuras pandemias zoonóticas sem a proteção e preservação da natureza”.
Mais participação indígena
Outra meta prevista para a COP16 era que os povos indígenas fossem reconhecidos como “atores fundamentais no cuidado da diversidade biológica”, como disse Susana Muhamad, ministra do Meio Ambiente da Colômbia e presidente da conferência, dias antes da reunião. Ela convocou países-membros a não ficarem só no discurso, mas também apresentar ações concretas que apoiassem o trabalho dessas populações.
Embora tenha dado apenas um primeiro passo nesse sentido, a cúpula em Cali será lembrada por assegurar um espaço para as comunidades tradicionais e os povos indígenas em um grupo de trabalho permanente nas negociações da CDB. Esses representantes farão parte de um órgão consultivo, com influência política nas negociações e acesso a recursos internacionais.
Esse é o terceiro grupo de trabalho a ser criado na CDB, juntamente com o Grupo de Trabalho de Implementação e o Grupo de Trabalho de Assessoria Científica, Técnica e Tecnológica.
Jennifer Corpuz, uma das principais negociadoras do Fórum Indígena Internacional sobre Biodiversidade, enfatizou que esse é um “momento histórico para os acordos ambientais multilaterais”.
“Isso não só permitirá parcerias sólidas entre governos, povos indígenas, comunidades, financiadores e outras partes interessadas, mas também fornecerá uma plataforma de alto nível para reforçar as contribuições de povos indígenas e comunidades na proteção do planeta”.
O grupo de trabalho aguarda a próxima reunião da CDB antes da COP17.
Planos nacionais de biodiversidade
Também se esperava que a COP16 avançasse na implementação do Marco Global de Biodiversidade. Para isso, a maioria dos países deveria ter apresentado seus planos nacionais até o fim da conferência. Porém, apenas 44 dos 196 países-membros da CDB anunciaram seus documentos, incluindo sete da América Latina. O Brasil não está entre eles.
“Os planos são o principal instrumento para que as metas definidas em fóruns multilaterais sejam implementadas em nível nacional”, explicou Ana di Pangracio, vice-diretora-executiva da Fundação Meio Ambiente e Recursos Naturais, da Argentina. “A implementação deve ser acompanhada de financiamento e monitoramento”.
A anfitriã Colômbia estimou que a implementação de seu plano nacional de biodiversidade custará US$ 19,4 bilhões. Até 2030, o país pretende ter 34% de seu território (terrestre e marítimo) sob áreas protegidas, garantir que pelo menos 3% do PIB seja gerado por atividades relacionadas à biodiversidade e recuperar cinco milhões de hectares de terras para uso sustentável.
O México apresentou um plano com 48 metas. Entre os temas abordados no documento, estão o controle de espécies invasoras, a restauração de ecossistemas e a sustentabilidade em setores como a agricultura e pecuária. Alicia Bárcena, secretária de Meio Ambiente do país, disse ao Dialogue Earth que o governo também criará áreas protegidas terrestres e marinhas.
No plano da Argentina, o país anunciou medidas de gestão territorial, uso sustentável de áreas produtivas e combate às causas da extinção de espécies. Porém, o plano não dá detalhes sobre como será financiado e evita falar sobre mudanças climáticas — postura que vai ao encontro do negacionismo climático do presidente Javier Milei.
“Apreciamos que o país tenha cumprido a determinação de apresentar seu plano atualizado, mas estamos preocupados com alguns pontos”, disse Manuel Jaramillo, diretor-geral da Fundação Vida Silvestre Argentina. Jaramillo questionou a falta de metas e indicadores para medir o progresso na implementação do plano.
Peru, Suriname e Venezuela também apresentaram planos nacionais de biodiversidade.
Áreas marinhas protegidas
As Áreas Marinhas Ecologicamente ou Biologicamente Significativas (EBSAs) são descritas pela CDB como áreas que desempenham papéis “importantes para o funcionamento saudável dos oceanos e dos vários serviços que eles fornecem”. Em 2008, foi iniciado um processo para identificá-las com base em critérios científicos, como sua singularidade e diversidade biológica.
A designação de uma EBSA não implica necessariamente a adoção de medidas de gestão ou restrição às atividades; é simplesmente o reconhecimento da importância ecológica de uma área. Porém, as informações das EBSAs podem ser valiosas para sua conservação e manejo.
Em Cali, foi estabelecido um marco para identificar e atualizar as EBSAs, permitindo a revisão das zonas existentes à medida que surjam novas informações científicas sobre elas.
Colômbia pressiona por mudança na mineração
Vários governos e organizações em Cali cobraram atenção especial à transição energética e seus vínculos com a biodiversidade. Considerando que minerais como o cobre e o lítio são necessários à produção de turbinas eólicas, baterias e outros equipamentos, o governo colombiano propôs um acordo global de rastreabilidade e comercialização de minerais, em uma tentativa de evitar os impactos negativos da mineração vistos nas últimas décadas.
“Basta observar o setor do ouro para perceber os efeitos prejudiciais [dessa exploração] na biodiversidade e nas comunidades”, disse Suneeta Kaimal, presidente do Instituto de Governança de Recursos Naturais, em um dos painéis da COP16. Segundo ela, esse acordo poderia ajudar a combater “a mineração ilegal de ouro na floresta amazônica, que resultou no desmatamento de mais de 1,9 milhão de hectares”.
Para evitar erros semelhantes no futuro e promover uma mineração mais responsável, a proposta incentiva os países a implementar medidas para proteger a biodiversidade e os direitos humanos na cadeia de produção do setor.
Em 2025, o governo colombiano comandará o grupo de trabalho que apresentará o rascunho desse acordo internacional vinculante na próxima conferência climática da ONU, a COP30, na expectativa de construir um mercado global mais justo.
“Devemos respeitar a biodiversidade e proteger as comunidades dos efeitos indesejáveis da demanda por minerais críticos”, disse a ministra brasileira de Meio Ambiente e Mudanças do Clima, Marina Silva, em uma coletiva de imprensa na COP16.
Acordo de Escazú
As discussões na COP16 também chamaram a atenção para a conexão entre o Marco Global de Biodiversidade e o Acordo de Escazú, tratado regional para o meio ambiente na América Latina e no Caribe, ratificado por 17 países.
A meta 22 do marco de biodiversidade, por exemplo, trata da participação civil na tomada de decisões e no acesso à informação sobre a biodiversidade, reconhecendo a necessidade de proteger ativistas ambientais — objetivos similares aos do acordo latino-americano.
O Escazú teve destaque na COP16, com vários eventos sobre o tema organizados pela Colômbia e por organizações. Para Gustavo Ortega, presidente do Centro Mexicano de Direito Ambiental, o tratado regional pode ser um guia para as metas do marco de biodiversidade.
“Se houver acesso total às informações de maneira adequada e compreensível para as comunidades, será mais fácil atingir a meta de compartilhamento justo dos benefícios derivados do uso de recursos genéticos”, explicou Ortega.
Integração de crises ambientais
Até agora, a biodiversidade e as mudanças climáticas foram discutidas em duas conferências distintas da ONU, com planos e políticas nacionais muitas vezes desconexas. Em Cali, o governo colombiano e representantes da sociedade civil buscaram integrar essas agendas.
Países-membros aprovaram um documento para identificar sinergias entre as duas frentes, minimizar os impactos negativos das ações climáticas sobre a biodiversidade e promover soluções baseadas na natureza. Embora as versões iniciais do documento incluíssem referências aos combustíveis fósseis e à geoengenharia, elas foram posteriormente removidas.
Devemos buscar conexões mais eficazes entre a biodiversidade e o clima. Temos que mudar o sistema em que estamos inseridos e conectá-losManuel Pulgar Vidal, diretor de clima e energia do WWF
“Desde a cúpula climática COP25, concordamos que precisamos buscar conexões mais eficazes entre a biodiversidade e o clima. Temos que mudar o sistema em que estamos inseridos e conectá-los”, disse Manuel Pulgar Vidal, líder global de clima e energia do WWF.
Na mesma linha, o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que as discussões fossem unificadas. “Estamos enfrentando três crises existenciais: de biodiversidade, clima e poluição. E todas as três estão interconectadas”, disse ele. “Não é possível enfrentar a crise de biodiversidade sem lidar com as outras duas e condenar o mundo a uma situação de extrema pobreza ambiental”.
A próxima conferência climática da ONU, a COP29, é vista como uma oportunidade de fortalecer esse vínculo. De 11 a 22 de novembro, os governos se reunirão no Azerbaijão para discutir uma nova meta de financiamento climático. Estima-se que sejam necessários entre US$ 5,8 trilhões e US$ 13,6 trilhões até 2030 para que os países cumpram seus compromissos de redução de gases de efeito estufa e adaptação climática, como define o Acordo de Paris.