Florestas

Expansão do tráfico de drogas entre Peru e Brasil pressiona indígenas

Com a expansão do cultivo de coca e do desmatamento na Amazônia, líderes locais e organizações cobram proteção a ativistas ambientais
<p>Barcos madeireiros são descarregados no porto de Pucallpa, no departamento peruano de Ucayali. O desmatamento na região é impulsionado pela expansão de culturas ilegais como a da coca (Imagem: David Vilaplana / Alamy)</p>

Barcos madeireiros são descarregados no porto de Pucallpa, no departamento peruano de Ucayali. O desmatamento na região é impulsionado pela expansão de culturas ilegais como a da coca (Imagem: David Vilaplana / Alamy)

Após receber cinco alertas de desmatamento no celular, Saúl partiu em uma jornada de mais de um dia para confirmar suas suspeitas.

Saúl, cujo nome foi alterado por questões de segurança, é do povo indígena Shipibo e recebeu treinamento para monitorar as florestas próximas ao Parque Nacional Serra do Divisor, uma cadeia montanhosa de rica biodiversidade na fronteira entre o Peru e o Brasil. Naquele dia de agosto, ele deixou sua casa e seguiu para a aldeia Saasa, localizada em um trecho de difícil acesso da floresta.

Saasa, no departamento de Ucayali, no leste do Peru, está baseada próxima às nascentes do rio Utuquinía, afluente do vasto rio Ucayali. Com apenas 80 habitantes do grupo étnico Awajún, é a comunidade indígena mais próxima do Parque Nacional Serra do Divisor.

Com base em alertas e dados georreferenciados da plataforma de monitoramento Global Forest Watch, Saúl navegou por 12 horas pelo rio Utuquinía desde seu vilarejo, atravessando um longo trecho de floresta densa até chegar ao local do alerta, nas proximidades de Saasa.

“Evitei terrenos perigosos até encontrar um lugar ideal para operar o drone”, lembra ele, observando que os alertas de desmatamento — assim como as plantações de coca — estavam na fronteira entre Saasa e a comunidade Siete de Julio.

O cacique de Saasa, Iván Agkuash, confirmou ao Dialogue Earth que a coca — planta cujas folhas são matéria-prima para a produção de cocaína — está sendo cultivada na região. Ele calcula que mais de dez hectares de floresta primária foram derrubados e substituídos por plantações de coca nos arredores da comunidade.

“As plantações de coca ainda não chegaram à comunidade, mas estamos atentos”, acrescenta Agkuash, expressando preocupação com a vulnerabilidade da zona de amortecimento em torno do parque nacional. Segundo o líder indígena, Saasa se tornou um ponto de passagem para o tráfico de drogas, mas a comunidade tem evitado confrontos.

Mochileros cruzam fronteiras

Em suas visitas a essa região instável da Amazônia, Saúl observou que a rota dos mochileros, — que transportam drogas para grupos criminosos do Brasil — se estende desde cidades na fronteira brasileira até as nascentes do rio Abujao, em Ucayali. De lá, passam pelos vilarejos de Aguas Negras e Mazaray, antes de cruzar parte do parque e desembocar no rio Utuquinía.

“Eles passam por Saasa pelo rio Utuquinía, muitas vezes disparando para o alto [para intimidar os moradores], e assim alcançam Siete de Julio e as aldeias não-indígenas próximas”, explica Saúl. Eles utilizam a mesma rota para retornar ao Brasil após coletarem os pacotes de drogas.

Fonte de dados: Governo Regional de Ucayali / Mapa: Dialogue Earth

Uma situação semelhante ocorreu na comunidade indígena de San Mateo, também localizada na zona de amortecimento da Serra do Divisor. Segundo monitores florestais da organização Global Conservation, que atua na proteção de áreas ameaçadas de extinção, como o parque nacional, grande parte da destruição ambiental e do cultivo de coca em San Mateo ocorre às margens do rio Abujao. Os monitores, que também pediram anonimato por questões de segurança, relataram ao Dialogue Earth que o desmatamento ultrapassa 50 hectares.

Outro ponto crítico é a Comunidade Camponesa de Guapries, composta por três povoados. Na última patrulha, realizada pelo líder comunitário Laiver Vásquez e guardas florestais, foram identificados pelo menos 15 hectares de plantações de coca em uma área a apenas 500 metros do parque nacional. Desde agosto, a comunidade registrou 14 alertas de desmatamento.

Saúl destaca que os moradores de Guapries e Saasa serão capacitados pela organização Global Conservation no uso de tecnologias para monitorar e conservar suas florestas.

Pressão crescente ao parque

Publicado em junho, o relatório mais recente da Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas do Peru, organização que trava uma luta contra as drogas, revela que dos quase 93 mil hectares de coca detectados ano passado no país, 351 hectares estão na zona de amortecimento da Serra do Divisor. Embora não haja registros de cultivos de coca dentro na área protegida, há crescente pressão nas áreas adjacentes à zona de amortecimento.

Em 2023, o departamento de Ucayali registrou mais de 27 mil hectares de desmatamento. Nos dois primeiros meses de 2024, a perda florestal alcançou 673 hectares, segundo a análise mais recente da Unidade Regional de Manejo Florestal e da Vida Selvagem de Ucayali. Desse total, 203 hectares — quase um terço — estão em comunidades indígenas, o que representa um aumento de quase 800% em relação ao mesmo período de 2023, quando apenas 23 hectares de desmatamento foram registrados nessas áreas.

Vista aérea de árvores derrubadas na zona de proteção do  Parque Nacional Serra do Divisor, Peru
O desmatamento na zona de amortecimento do Parque Nacional Serra do Divisor alcançou 351 hectares, de acordo com o último relatório da Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas do Peru (Imagem: Hugo Alejos)

Franz Tang, diretor do escritório regional da Unidade Regional de Manejo Florestal e da Vida Selvagem, declarou durante a apresentação do relatório que as plantações ilícitas estão entre as principais causas de desmatamento em Ucayali. Ele ressaltou que a situação demanda uma intervenção multissetorial urgente por parte do Estado.

Os monitores florestais da Global Conservation dizem que a organização busca criar um cinturão para proteger a área natural, com ações de controle e vigilância. Para isso, eles estão trabalhando na consolidação e coordenação de esforços junto às comunidades vizinhas.

As comunidades indígenas de Nuevo Saposoa e Patria Nueva participaram de um projeto-piloto de monitoramento florestal da Global Conservation. Nesse projeto, membros das comunidades foram capacitados no uso de drones, GPS e análise de imagens de satélite. Essa formação permitiu que eles coletassem dados e produzissem relatórios sobre o estado de suas florestas, pressionando para que suas demandas fossem levadas em conta por autoridades.

Em Nuevo Saposoa, por exemplo, o desmatamento foi reduzido a zero em 2022, após ter atingido um pico de mais de 15 mil hectares em 2016.

“Nos últimos três anos, não tivemos nenhum alerta de desmatamento [em Nuevo Saposoa], nem em Patria Nueva devido ao monitoramento da floresta, à vigilância dos guardas indígenas e ao patrulhamento das autoridades”, diz um guarda ecológico da comunidade, que pediu anonimato.

Sem leis, sem proteção

Apesar dos avanços na redução do desmatamento nas aldeias de Ucayali, no Peru, a proteção das florestas e dos territórios indígenas ainda é uma tarefa arriscada, sem garantias de segurança para os ativistas ambientais.

Em outubro de 2020, o Congresso peruano rejeitou a ratificação do Acordo de Escazú, tratado internacional que promove o direito à informação ambiental, à justiça e à tomada de decisões nos países da América Latina e do Caribe.

O acordo também prevê a proteção dos ativistas dos direitos humanos em questões ambientais. Isso é especialmente importante no Peru, onde mais de 35 indígenas foram assassinados por protegerem seus territórios na última década, de acordo com a Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Floresta Peruana (Aidesep). Dados atualizados da Aidesep, acessados pelo Dialogue Earth, revelam que quase um terço desses crimes ocorreu em Ucayali.

Miguel Guimaraes, vice-presidente da Aidesep, destaca que, sem a ratificação do Acordo de Escazú, as vozes e propostas dos indígenas peruanos continuarão sendo ignoradas em fóruns ambientais. “Quando chegamos aos órgãos de decisão, nem sequer somos considerados, e tudo acaba arquivado”, afirmou Guimaraes ao Dialogue Earth.

Guimaraes cita como exemplo a terceira Conferência das Partes do Acordo de Escazú, a COP3, realizada no Chile em abril, onde, segundo ele, as propostas para proteger ativistas indígenas foram ignoradas. “O Peru não ratificou o Acordo de Escazú. Essa é a razão pela qual não temos uma voz capaz de levar adiante nossas demandas”, acrescenta.

Ao final da COP3, Guimaraes recebeu a notícia de um ataque à sua casa. Seus pertences foram saqueados, e a mensagem “Ele não viverá” foi pichada na cerca ao redor da propriedade.

Guimaraes relata que as investigações sobre a ameaça não avançaram. Ele menciona ter realizado longas viagens para prestar depoimento, mas até o momento não recebeu informações sobre os responsáveis pelo ataque.

Quando chegamos aos órgãos de decisão, nem sequer somos considerados, e tudo acaba arquivado
Miguel Guimaraes, vice-presidente da Aidesep

Apesar dos contratempos que a não-ratificação do Acordo de Escazú trouxe às comunidades indígenas do Peru, ainda há oportunidades para mudanças legislativas. Katherine Sánchez, coordenadora do Programa de Biodiversidade e Povos Indígenas da Sociedade Peruana de Direito Ambiental, destaca o Plano de Ação para Ativistas Ambientais — parte do Acordo de Escazú, aprovado na COP3 — como uma ferramenta essencial para compreender o progresso das medidas de prevenção e proteção em outros países.

O plano estabelece a troca de informações entre os países ratificadores, detalhando como eles enfrentaram situações de risco que afetam os ativistas ambientais. Essa abordagem permite identificar padrões e desenvolver uma estratégia de proteção internacional para ser debatida em reuniões futuras. Sánchez diz que isso oferece uma oportunidade de atacar as causas estruturais dos perigos enfrentados pelos ativistas.

“Os países não-ratificadores, como o Peru, são convidados a observar o que os países que implementam o Acordo de Escazú estão fazendo, aprender com seus processos e participar da estratégia. Depois, cada país decidirá se aprimora suas regulamentações ou adota mecanismos alternativos”, explica Sánchez.

Um ativista com uma faixa dizendo “os jovens exigem a ratificação de Escazú”.
‘Os jovens exigem a ratificação de Escazú’, dizia uma faixa segurada por um ativista em frente ao Ministério das Relações Exteriores do Peru em agosto de 2022. Apesar de o Peru ter assinado o acordo em 2018, sua ratificação permanece pendente (Imagem: Fotoholica Press Agency / Alamy)

Em dezembro de 2023, três propostas legislativas foram apresentadas ao Congresso do Peru com o objetivo de criar a primeira lei de proteção aos ativistas de direitos humanos no país. “O Congresso pediu um consenso para que fosse emitida apenas uma proposta”, explica Sánchez. “Por razões estritamente processuais, não conseguimos avançar”.

Os líderes indígenas do Peru contam apenas com o Mecanismo de Proteção para Ativistas de Direitos Humanos. Segundo Katherine Sánchez, esse instrumento foi concebido para atender a emergências, mas não aborda questões estruturais nem impõe obrigações ao Estado como um todo. “Ele envolve apenas os oito ministérios que assinaram o documento”, explica.

A ratificação do Acordo de Escazú daria ao mecanismo um status de norma constitucional ou princípio vinculante, obrigando o Estado a garantir legalmente a proteção do meio ambiente e de seus defensores. No entanto, no Peru, esse avanço ainda está fora de alcance.