Florestas

Sabedoria Shuar: como a chacra protege a Amazônia e o clima

À medida que a Amazônia sofre os impactos da ação humana e do clima extremo, comunidades indígenas do Equador unem saberes ancestrais e tecnologia moderna para proteger a floresta
<p>Indígena da comunidade de San Andrés colhe limões na província de Morona Santiago, Equador. O povo Shuar, que habita terras amazônicas no Equador e no Peru, está usando seu conhecimento ancestral para se adaptar às mudanças climáticas (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)</p>

Indígena da comunidade de San Andrés colhe limões na província de Morona Santiago, Equador. O povo Shuar, que habita terras amazônicas no Equador e no Peru, está usando seu conhecimento ancestral para se adaptar às mudanças climáticas (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)

“A terra não nos pertence; nós pertencemos a ela”, explicou Antonio Jimbicti, professor na comunidade Shuar de San Luis Ininkis, na província equatoriana de Morona Santiago. “Tudo o que fazemos à terra, fazemos a nós mesmos”.

Nota do editor

Esta reportagem faz parte do programa Vozes Indígenas, do Dialogue Earth. Os oito bolsistas são jornalistas e escritores indígenas do Sul Global. O projeto visa valorizar as temáticas, narrativas, práticas jornalísticas e percepções dos povos originários.

Os Shuar — palavra que significa “povo da cachoeira” — estão espalhados por um vasto território da Amazônia equatoriana e peruana. Nossa cultura, rica em tradições e cosmogonia, baseia-se em uma profunda conexão com a natureza. Consideramos a floresta nosso lar e nossa fonte de vida e, por isso, desenvolvemos um profundo conhecimento de seus segredos, desde as propriedades medicinais das plantas até os ciclos dos animais. Considero nossas tradições muito especiais e, como jornalista Shuar, estou ciente da importância que elas estão adquirindo frente às mudanças climáticas.

Carrego no sangue a responsabilidade de ser guardião da biodiversidade amazônica. Cresci vendo como nosso conhecimento ancestral nos permitiu viver em equilíbrio com a floresta, respeitando seus ciclos e recursos. A caça, a pesca e a agricultura de baixo impacto ambiental não são apenas técnicas de subsistência, mas expressões de nossa relação com a natureza. Para nós, a floresta não é apenas um ambiente, mas um ente vivo com o qual devemos conviver em harmonia. Essa visão de mundo nos ensina a proteger ecossistemas frágeis e a cuidar das espécies que deles dependem, pois entendemos que nossa sobrevivência está intrinsecamente ligada à saúde de nosso território.

Hoje, porém, a comunidade Shuar de San Luis Ininkis enfrenta as mudanças climáticas, que ameaçam seu território e seu modo de vida. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU tem repetidamente descrito esses desafios: aumento das temperaturas, mudanças nos regimes de chuvas e eventos climáticos extremos mais frequentes. Tudo isso já está sendo sentido na região.

Trabalhador rural descansa sentado em meio à vegetação amazônica
Trabalhadores fazem uma pausa na minga (mutirão comunitário) na comunidade Shuar de San Luis Ininkis, na província de Morona Santiago, Equador. Os Shuar praticam uma agricultura de baixo impacto ambiental e procuram viver em equilíbrio com a floresta (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)
trecho de floresta com solo marrom descoberto
Os sinais da crise climática nos territórios Shuar incluem o ressecamento da vegetação, causado pela mudança nos padrões de chuva e pela seca (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)

Os dados climáticos específicos de San Luis Ininkis são limitados, mas um estudo de 2024 realizado por cientistas na América do Sul e na Europa detectou mudanças significativas nos padrões de precipitação na Amazônia equatoriana. Para além das fronteiras do país, a região amazônica como um todo enfrenta um acentuado processo de degradação devido ao desmatamento.

Chacra

A chacra (não confundir com os chacras do hinduísmo e budismo) é um sistema agroflorestal tradicional usado por diversos povos indígenas da Amazônia, incluindo os Shuar. Baseia-se no cultivo diversificado e sustentável, combinando culturas como mandioca, banana-da-terra e milho com árvores frutíferas, plantas medicinais e espécies madeireiras. 

A chacra reflete nossa conexão com a terra. É um sistema de vida que nos ensina equilíbrio, paciência e reciprocidade. Cada planta tem seu próprio espírito, sua própria sabedoria. A cura vem não só do efeito medicinal de folhas ou raízes, mas do conhecimento herdado de nossos ancestrais, com o canto da floresta.

cultivo de milho e banana-da-terra na floresta
A chacra é o sistema agroflorestal tradicional do povo Shuar. Ele foi projetado para ser sustentável, por exemplo, combinando culturas como mandioca, banana-da-terra e milho no mesmo campo (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)
Agricultora Shuar carrega a colheita do dia: banana-da-terra e ingá
Agricultora Shuar carrega a colheita do dia: banana-da-terra e ingá. Por tradição, os Shuar retiram da natureza apenas o necessário e retribuem com respeito e cuidado (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)

Desde cedo, aprendemos que a natureza não nos pertence; ela é nossa irmã, não nossa propriedade. Tiramos dela apenas o que precisamos, porque sabemos que o que a floresta nos dá também deve ser devolvido com respeito e cuidado.

As monoculturas são comuns no Equador, principalmente em áreas dedicadas à agricultura comercial. Essas monoculturas normalmente degradam o solo e esgotam a biodiversidade. As práticas agrícolas das comunidades Shuar, como a chacra, diferem frontalmente desse modelo ao integrar árvores e plantas medicinais nos cultivos.

A chacra promove a segurança alimentar, mas também tem um impacto positivo no meio ambiente: ela é inspirada pela estrutura natural da floresta, que favorece a biodiversidade e a regeneração contínua do solo. Como destaca Aurora Jimbicti, agricultora Shuar de San Luis Ininkis, “esse modelo não só promove a biodiversidade, mas também atua como um estoque de carbono”. 

A chacra ajuda a capturar as emissões de carbono, armazenando-as em solos ecologicamente saudáveis, o que contribui para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e para manter as funções do ecossistema nas terras agrícolas.

Uso da tecnologia

Em Morona Santiago, as comunidades Shuar também estão incorporando tecnologias modernas em suas práticas tradicionais para combater as mudanças climáticas e proteger seu território. Elas utilizam dispositivos como celulares, tablets e drones para registrar dados climáticos, monitorar ameaças ambientais e divulgar informações sobre a conservação de suas terras. As redes sociais se tornaram uma ferramenta essencial para compartilhar conhecimento, denunciar atividades ilegais e se conectar com organizações parceiras.

Desde 2021, a organização equatoriana Fundación EcoCiencia oferece às comunidades Shuar treinamento sobre tecnologias de mapeamento e monitoramento, como drones e GPS. Em janeiro, a EcoCiencia realizou um workshop sobre vigilância e proteção territorial. O programa incluiu o planejamento de um sistema de alerta precoce para responder mais rapidamente às ameaças de desmatamento e o fortalecimento da cooperação com as diferentes esferas de governo.

mulher e camisa social e calças jeans mostra mapa na parede branca com projetor
Workshop organizado pela Fundación EcoCiencia. Os participantes aprendem a usar imagens de satélite para detectar e combater o desmatamento em seus territórios (Imagem: Erick Tanguila)

O acesso a celulares e tablets cresceu entre a população Shuar de Morona Santiago nos últimos cinco a sete anos, à medida que a cobertura da rede de telefonia e o acesso à internet melhoraram na região. Antes disso, a comunicação dependia de rádios comunitárias e visitas presenciais entre cidades próximas.

“Antes, só usávamos nossa memória e palavras para transmitir conhecimento”, contou Antonio Jimbict. “Agora, com o celular e o tablet, podemos registrar o que vemos na floresta e compartilhar com o mundo”.

Viveiro comunitário

O viveiro de plantas Iwiakma Araatá (Vida da Semente) nasceu há aproximadamente seis anos. É uma iniciativa de Clareth Ankuash, 47 anos, que decidiu agir contra o declínio das espécies nativas em seu território. 

Ankuash é moradora da comunidade de San Luis Ininkis. Guardiã do conhecimento ancestral Shuar, ela dedicou grande parte de sua vida ao cultivo e à conservação de plantas. Desde a infância, aprendeu com mãe e avós o valor de cada planta e seus usos como alimento e medicina tradicional.

Com o apoio de outros membros da comunidade, ela começou a coletar sementes e a espalhar mudas de árvores e plantas medicinais essenciais para o ecossistema e a cultura Shuar. Seus esforços permitiram que o viveiro chegasse a aproximadamente meio hectare. Atualmente, há mais de cem plantas em diferentes estágios de crescimento, destinadas ao reflorestamento e à restauração de áreas degradadas.

Mudas de canela, ingá, guayusa (da mesma família que a erva-mate), hortelã e maracujá em um viveiro
Mudas de canela, ingá, guayusa (da mesma família que a erva-mate), hortelã e maracujá no viveiro Iwiakma Araatá (Vida das Sementes) de San Luis Ininkis. Essas plantas são destinadas ao reflorestamento e restauração de áreas degradadas (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)

Quando prontas, as mudas do viveiro são transplantadas para diferentes partes do território, especialmente em áreas afetadas pela exploração madeireira ou perda de vegetação. Algumas delas também são doadas para chacras ou jardins.

Entre as plantas nativas cultivadas estão a guayusa (Ilex guayusa), o cacay (Caryodendron orinocense), o cedro-vermelho (Cedrela odorata), a pupunha (Bactris gasipaes), a sangue de dragão (Croton lechleri) e o copal (Dacryodes peruviana). Cada uma tem diferentes usos e benefícios: as folhas de guayusa são usadas na preparação de uma bebida energizante consumida pela manhã; as madeiras de cacay e cedro são usadas na construção; os frutos da pupunha contêm ricos nutrientes; e a resina de sangue de dragão e copal é usada para curar diversas doenças.

“O viveiro não só nos permite recuperar nossa floresta, mas também nossa cultura”, destacou Ankuash. “Cada planta que colocamos na terra é um pedaço da nossa história e do que queremos deixar para nossos filhos”.

Lições para o mundo

Como membro da comunidade Shuar, acredito firmemente que o que ocorre em San Luis Ininkis não afeta apenas a Amazônia, mas o mundo inteiro. Sabemos que os sistemas de conhecimento indígena são fundamentais para enfrentar as mudanças climáticas. Isso também foi reconhecido por muitas entidades internacionais, como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Nossas terras são vitais para a conservação da biodiversidade e, ao mesmo tempo, desempenham um papel fundamental na luta contra as mudanças climáticas.

Casal de araras e meio às árvores em San Luis Ininkis
Casal de araras empoleiradas em San Luis Ininkis. Os Shuar praticam um modo de vida que conserva a biodiversidade local e pode servir de modelo para mitigar a crise climática e ambiental do planeta (Imagem: Dunio Chiriap Jimbicti / Dialogue Earth)

Através da nossa prática ancestral da chacra, aprendemos a gerir a floresta de uma forma que respeita a natureza, protege as nossas fontes de água e captura carbono. As práticas agrícolas de baixo impacto dos Shuar, adaptadas às condições locais e diversificadas, são essenciais para manter a nossa segurança alimentar e a nossa resiliência diante das alterações climáticas.

San Luis Ininkis é um exemplo do que podemos alcançar quando combinamos nosso conhecimento ancestral com ferramentas modernas. Nossa experiência sugere que as soluções mais eficazes para os desafios ambientais muitas vezes podem ser encontradas nas práticas que preservamos por gerações.

“As mudanças climáticas não são um evento distante, nós as sentimos todos os dias”, ressaltou Santiago Yankura, líder da comunidade Shuar de San Luis Ininkis. “Mas, com nossas mãos e nosso conhecimento, estamos semeando um futuro melhor”.

Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.

Strictly Necessary Cookies

Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.

Analytics

This website uses Google Analytics to collect anonymous information such as the number of visitors to the site, and the most popular pages.

Keeping this cookie enabled helps us to improve our website.

Marketing

This website uses the following additional cookies:

(List the cookies that you are using on the website here.)