Florestas

Como indígenas da reserva boliviana Ñembi Guasu combatem o fogo

Nessa área de conservação com mais de 1,2 milhão de hectares, um governo autônomo indígena e seus moradores assumem a linha de frente no combate a incêndios florestais
<p>Vegetação queimada após incêndio em agosto em Ñembi Guasu, no leste da Bolívia. Esta reserva de 1,2 milhão de hectares é um dos ecossistemas mais ameaçados e menos explorados do planeta (Imagem: Jorge Sea / Nativa)</p>

Vegetação queimada após incêndio em agosto em Ñembi Guasu, no leste da Bolívia. Esta reserva de 1,2 milhão de hectares é um dos ecossistemas mais ameaçados e menos explorados do planeta (Imagem: Jorge Sea / Nativa)

No fim de agosto, chamas atingiram a reserva de Ñembi Guasu, no leste da Bolívia. O território próximo à fronteira com o Brasil, no departamento de Santa Cruz, é protegido sob a jurisdição indígena do povo Charagua Iyambae. Por 11 dias, o fogo queimou a mata e o pasto dessa região — incêndios impulsionados pelo vento e pelo acúmulo de biomassa.

“Quando você vê o fogo chegando, é assustador. Mas aprendemos a não fugir, a enfrentá-lo com respeito. Às vezes, o fogo ensina mais do que qualquer escola”, contou Juan Carlos Chané, guarda florestal e morador da província de Guarayos, em Santa Cruz, que está próxima à reserva de Ñembi Guasu.

Há três anos, Chané integra um grupo de indígenas que atua voluntariamente na conservação da reserva, monitorando a flora e a fauna e percorrendo áreas que registram temperaturas extremas. Ele trabalha em parceria com o Centro Operacional Ñembi Misi, criado pelo governo autônomo indígena de Charagua Iyambae, principal autoridade local, e conta com o apoio de organizações civis.

Quando a fumaça apareceu, as equipes responsáveis pela proteção de Ñembi Guasu responderam prontamente: abriram aceiros, que são faixas de terra limpas de vegetação para interromper o avanço do fogo; planejaram queimadas controladas para criar uma barreira protetora contra os incêndios; e limparam áreas recém-queimadas para impedir a reignição do fogo. 

“Trabalhamos incansavelmente, dormindo pouco, reunindo-nos entre árvores carbonizadas para elaborar estratégias, compartilhar recursos e concentrar toda a nossa energia em conter as chamas”, lembrou Hugo Sánchez, bombeiro florestal e técnico em gestão de incêndios.

Bombeiros e moradores do entorno da reserva Ñembi Guasu
Bombeiros e moradores do entorno da reserva Ñembi Guasu elaboram estratégias para conter incêndios. Equipe está sempre de prontidão para se mobilizar diante de novos focos (Imagem: Jazmín Bazán)

A operação exigiu forte coordenação. Motocicletas e quadriciclos foram usados para levar equipes e água a pontos distantes, que a pé levariam horas para serem alcançados. Também foi preciso abrir acessos manualmente, com pás e enxadas, para instalar as barreiras de contenção do fogo.

“Vimos animais carbonizados e florestas destruídas. O fogo é implacável”, lamentou o bombeiro e guarda florestal Eliezer “Pirulico” Suárez Cuéllar. 

Não é a primeira vez que a população local enfrenta essa situação: moradores contam que, em 2019 e 2021, Ñembi Guasu sofreu grandes incêndios, o último deles com cerca de 180 mil hectares afetados. 

A área de conservação de Ñembi Guasu — que significa “grande esconderijo” em guarani — cobre 1,2 milhão de hectares de vegetação nativa, com alguns dos ecossistemas mais ameaçados do planeta.

Na Bolívia, o ano de 2024 marcou o recorde histórico de áreas queimadas por incêndios florestais, principalmente nos departamentos de Santa Cruz e Beni. Ao todo, 12,6 milhões de hectares foram queimados — área equivalente a três estados do Rio de Janeiro —, conforme o Ministério do Meio Ambiente e Água da Bolívia.

Vista aérea do incêndio em agosto, em Ñembi Guasu
Vista aérea do incêndio em agosto, em Ñembi Guasu. Por 11 dias, os incêndios florestais se alastraram pela reserva, afetando 1,7 mil hectares (Imagem: Jorge Sea / Nativa)

No 11º dia, o incêndio em Ñembi Guasu foi finalmente controlado com a ajuda da chuva, que coroou os esforços de combate ao fogo. No total, 1,7 mil hectares foram afetados na área de conservação, segundo Jorge Sea, engenheiro florestal local e bombeiro da Nativa, organização que auxilia a comunidade indígena com conhecimento técnico e suprimentos.

Protetores do Chaco

Ñembi Guasu é uma reserva com características ecológicas e biológicas singulares: ali, as florestas secas da Chiquitania e do Gran Chaco — segundo maior bioma florestal da América do Sul, que se estende por Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil — encontram as áreas úmidas tropicais do Pantanal boliviano. Zonas de transição como Ñembi Guasu têm valor ambiental inestimável, pois abrigam combinações únicas de ecossistemas e biodiversidade.

Para chegar a Ñembi Guasu, o melhor acesso é por uma estrada de terra que parte da cidade de Roboré, em Santa Cruz, percorrida de preferência em um veículo 4×4. O trajeto é ladeado por uma vegetação densa e espinhosa.

placa de entrada na reserva Ñembi Guasu
Ñembi Guasu significa “grande esconderijo” em guarani. A área de conservação é administrada pelo governo autônomo indígena Charagua Iyambae (Imagem: Jazmín Bazán)

“Este lugar é o coração do Chaco. Se ele for danificado, tudo ao seu redor fica doente”, resumiu Alejandro Arambiza, diretor da reserva Ñembi Guasu.

A Bolívia reconhece 36 povos originários e oito governos autônomos indígenas. O Governo Autônomo Indígena Guarani Charagua Iyambae, primeiro do tipo no país, é responsável pela administração de Ñembi Guasue, além dos parques nacionais Kaa Iya e Otuquis.

Conforme o estatuto do governo indígena Charagua Iyambae, o termo guarani kaa iya é uma expressão de reciprocidade: a floresta é um ser vivo com o qual a humanidade coexiste e que deve ser respeitada. Essa visão orienta a gestão de Ñembi Guasu, especialmente na definição de áreas restritas, na proteção de nascentes e no uso dos recursos naturais.

Rio San Miguel na reserva Ñembi Guasu
Rio San Miguel na reserva Ñembi Guasu. O governo indígena responsável pela proteção do local acredita que a floresta é um ser vivo, refletindo essa visão de mundo na gestão das áreas restritas e fontes de água protegidas (Imagem: Jazmín Bazán)

Mulheres e homens indígenas que contribuem com a proteção da área combinam conhecimento ancestral e capacitação técnica. O centro operacional Ñembi Misi, a sete quilômetros de Roboré, é responsável pelo planejamento, treinamento e revisão das câmeras de monitoramento. A partir daí, as brigadas patrulham a área por semanas: registram a presença de vida selvagem, detectam pontos críticos e saem para combater o fogo à medida que ele for avançando.

“Eu costumava caçar. Agora protejo essa área”, disse Franz Chumira, guarda florestal guarani de Isoso, uma das seis zonas sob a jurisdição de Charagua Iyambae. “Gosto de pensar que sou como a onça-pintada: ando silenciosamente e protejo meu território”.

“Ñembi Guasu nasceu da filosofia guaraní de Yaiko Kavi Päve, ou ‘bom viver’: conservar, mas também viver em equilíbrio com a floresta”, explicou o engenheiro florestal Jorge Sea.

Território vivo

Ñembi Guasu conecta as bacias hidrográficas da Amazônia e do Rio da Prata e protege as nascentes dos rios San Miguel e Parapetí. Ela forma um corredor ecológico que cobre mais de seis milhões de hectares.

Anta (Tapirus terrestris) no departamento de Beni, norte da Bolívia
Anta (Tapirus terrestris) no departamento de Beni, norte da Bolívia. A espécie é uma das que habita a Ñembi Guasu, assim como a onça-pintada, o tatu-canastra e o tamanduá-bandeira (Imagem: Peter Giovannini / imageBROKER / Alamy)

Um de seus ecossistemas mais singulares é o Abayoy, floresta endêmica do Chaco boliviano, onde crescem espécies vegetais como o ipê-rosa (Handroanthus abayoy), o jutaí-mirim (Hymenaea parvifolia) e a braúna (Schinopsis brasiliensis). No meio delas, circulam animais como a onça-pintada (Panthera onca), a anta (Tapirus terrestris), o tatu-canastra (Priodontes maximus) e o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla). Outras espécies de cobras e aves também habitam a área.

Os Totobiegosodes, um grupo indígena do povo Ayoreo, vivem em isolamento voluntário dentro dessa área protegida, e seu modo de vida depende diretamente da floresta.

“A floresta parece adormecida, mas está cheia de vida”, descreveu Rubén Darío Montero, que trabalha no centro operacional. Ele é responsável por monitorar a área com câmeras de segurança. “À noite, você pode ouvir tudo: os macacos, as onças, os papagaios”.

Montero identificou pelo menos oito onças-pintadas e várias pumas na área de conservação. “Uma vez, fiquei cara a cara com eles a cinco metros de distância. Primeiro, senti medo, depois respeito”, contou.

Ameaça constante

A Ñembi Guasu protege uma região bastante sensível. O desmatamento e as ocupações ilegais do território pressionam a floresta seca e aumentam sua vulnerabilidade ao fogo. Embora a reserva tenha sido poupada dos grandes incêndios de 2024 que devastaram Santa Cruz, um incêndio eclodiu no ano seguinte, mostrando que o risco está sempre presente.

“As chamas vêm das fronteiras de Roboré ou Charagua Iyambae, impulsionadas pelo vento e pela seca. Às vezes, basta uma única faísca para incendiar tudo”, alertou Sánchez.

Na região, a temporada de incêndios ocorre entre junho e setembro, quando a biomassa acumulada e a baixa umidade tornam a área mais inflamável.

“Estamos em uma reserva ambiental, mas ainda há pessoas que desmatam e queimam sem autorização. Meu trabalho é detectar pontos de calor e enviar alertas. Quando um incêndio é confirmado, os protetores correm para socorrer a área”, disse Romualdo Enríquez, técnico ambiental que monitora o território do governo indígena Charagua Iyambae.

Estradas e assentamentos ilegais nos limites da área de conservação Ñembi Guasu
Histórico de desmatamento para a abertura de estradas e assentamentos ilegais nos limites da área de conservação Ñembi Guasu (Imagens de satélite: Landsat / Copernicus via Google Earth)

Estudos de campo elaborados pela Nativa e pela equipe do centro operacional Ñembi Misi — que inclui protetores, técnicos, bombeiros e membros do governo autônomo — indicam pontos críticos ligados à expansão agrícola e às ocupações ilegais nas margens da área protegida, onde os alertas precoces são fundamentais para impedir que o fogo avance.

“A maioria dos incêndios aqui é causada deliberadamente. Algumas pessoas queimam para limpar a terra e economizar em maquinário. Mas a floresta tem memória: se queimar uma vez, ela leva anos para se recuperar. As fronteiras são definidas pelos humanos, não pela natureza”, enfatizou o guarda florestal Eliezer Suárez Cuéllar.

A logística é organizada a partir de Ñembi Misi: água, combustível, ferramentas e equipes de socorro. Rose Mary Braner Weber é a responsável por coordenar os veículos e trazer água e baterias — tudo isso com as chamas a apenas 30 metros de distância. 

Quando o fogo chega perto, uma resposta é acionada imediatamente. O governo autônomo Charagua Iyambae, o corpo de bombeiros e as organizações da região ativam seu sistema de alerta precoce e comunicação comunitária: protetores, autoridades e moradores coordenam esforços por rádio e telefone.

Bombeiros e protetores da Ñembi Guasu
Bombeiros e protetores da Ñembi Guasu organizam trabalho no centro operacional Ñembi Misi, a sete quilômetros de Roboré. De lá, as brigadas patrulham a área por semanas, registrando a vida selvagem, detectando pontos críticos e combatendo o fogo (Imagem: Jorge Sea / Nativa)

“A resposta não vem de cima, mas do próprio território. Os guardiões, o governo indígena e as comunidades organizam as ações rapidamente”, explicou Pamela Rebolledo, bióloga e coordenadora de projetos na Nativa. Segundo ela, isso serve de exemplo para mostrar como a soberania ambiental pode funcionar, com um sistema que pode ser replicado em outros países.

Mesmo assim, há tensões com o governo nacional quando o assunto envolve, por exemplo, os planos de desenvolvimento ou compartilhamento de recursos. “Há um plano de gestão aqui. Defendemos nosso lugar com reuniões, relatórios e nossa presença”, disse Alejandro Arambiza, diretor da Ñembi Guasu.

Ele também afirmou que não quer que “a floresta seja dividida em duas”, em referência a um projeto rodoviário que, segundo os mapas da Administração Boliviana de Estradas, visa conectar a Bolívia e o Paraguai atravessando parte do território protegido. O governo autônomo Charagua Iyambae manifestou sua oposição ao projeto e exigiu ser consultado para manter o controle da gestão ambiental, conforme estabelecido em seu estatuto. Enquanto isso, uma organização de direitos indígenas acusou as autoridades de Santa Cruz de espalhar desinformação à medida que avançam os planos de construção da estrada.

Desde a promulgação da Constituição de 2009, a Bolívia reconhece o direito dos povos indígenas, tradicionais e campesinos à autodeterminação, ao autogoverno e à gestão dos recursos em seus territórios.

Para os defensores de Ñembi Guasu, a resistência não é apenas um tema ambiental: é também cultural e político. O direito de decidir sobre o território – incluindo o manejo do fogo – faz parte dessa defesa.

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Bolsa de Biodiversidade de 2025 da Earth Journalism Network.

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