O agricultor Dercílio Pupin chegou a Piracaia, no interior do estado de São Paulo, em 2013, com a ideia de cultivar alimentos orgânicos. Mas deparou-se com um solo seco, compactado e com pouca vegetação em seu terreno de quatro hectares recém-adquirido.
Naquele ano, começava uma das piores crises hídricas da região, e, em 2014, os cinco reservatórios de água do Sistema Cantareira, que abastecia 8,6 milhões de pessoas do entorno, praticamente zeraram sua capacidade.
Aquela área já sofria um processo de deterioração. Um mapeamento do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) na época encontrou na região 21 mil hectares de margens de rios sem vegetação — áreas que, pela lei, deveriam ser protegidas — e cem mil hectares de pastagens degradadas.
Entre elas estava a propriedade de Pupin. O antigo dono, diz ele, mantinha mais de 300 cabeças de gado que pastavam “de forma desorganizada”, inclusive próximo às nascentes.
Para dar um novo rumo à sua terra, Pupin aderiu a programas da prefeitura e do IPÊ, o Semeando Água. “No ano que a gente chegou aqui, era tudo clareira, não tinha uma árvore quase”, diz ele, que já enxerga melhorias: “Nas áreas de agrofloresta, já há lugares onde a floresta está um pouco mais avançada, tem uma infiltração melhor [da água] no solo”.
O que é degradação do solo?
O solo degradado é aquele que perdeu suas características saudáveis devido à exploração humana. Assim, ele deixa de fornecer serviços ecossistêmicos, como a provisão de água e alimento.
O projeto Semeando Água está entre as muitas iniciativas independentes espalhadas pelo Brasil que contribuem para o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), lançado em 2017. O objetivo é restaurar 12 milhões de hectares de vegetação nativa e criar cinco milhões de hectares de sistemas agrícolas integrados — combinando terras agrícolas, pastagens e florestas — até 2030.
Desde então, o Brasil expandiu em 9,35 milhões de hectares para monocultura e restaurou apenas 79,1 mil hectares, segundo o Observatório da Restauração e Recuperação. E o tamanho do problema é bem maior do que a meta brasileira: o país tem 95,5 milhões de hectares de pastos degradados, equivalente à área da Venezuela, segundo a rede ambiental MapBiomas.
“Grande parte da área desmatada no país é para a pecuária, e essas pastagens estão degradadas”, explica Ane Alencar, pesquisadora da rede.
Agora, políticas nacionais e programas de estímulo financeiro do governo — já em vigor ou em vias de serem implementados — prometem alavancar uma cadeia produtiva da restauração de terras no Brasil.
O reaproveitamento de pastagens degradadas é uma das principais metas ambientais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que mencionou o assunto em seu discurso de posse, em janeiro, e em outras ocasiões. Lula defende que esse tipo de investimento pode “dobrar a produtividade [agrícola], sem mexer com os indígenas e as florestas”.
Desafio é mundial
O problema não é apenas do Brasil. Segundo o relatório Global Land Outlook 2 da ONU, publicado em 2022, a humanidade transformou mais de 70% da área terrestre do planeta, “causando uma degradação ambiental sem paralelo e contribuindo significativamente para o aquecimento global”. Em 2018, estimou-se que a degradação do solo e suas consequências para a segurança hídrica e alimentar afetaram a vida de 3,2 bilhões de pessoas.
Nos últimos anos, este problema provocou uma resposta global. Na Declaração de Florestas de Nova York, de 2021, mais de 200 atores — entre governos nacionais e subnacionais, povos tradicionais e empresas — comprometeram-se a recuperar 350 milhões de hectares de áreas degradadas até 2030. Já a Conferência da Biodiversidade, de 2022, resultou no acordo para restaurar 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos ainda nesta década.
Em viagem à Beijing em abril, Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, disse que o Brasil “pode aprender com a experiência chinesa” de recuperar áreas degradadas.
Silva provavelmente se referia ao programa chinês Grão para o Verde, criado em 1999, que visa recuperar o solo deteriorado pela agricultura e pecuária. Desde então, ele restaurou mais de 30 milhões de hectares de florestas, campos, vegetações montanhosas e pântanos. O programa é voluntário, mas conta com incentivos à sua adesão. Com orçamento de US$ 68 bilhões entre 1999 e 2019, o governo fornece assistência técnica a proprietários de terra, sementes, subsídios e outros benefícios que variam segundo os resultados de reflorestamento. No final de 2019, o programa contava com mais de 41 milhões de propriedades.
Políticas brasileiras recomeçam
Enquanto isto, o Brasil retoma ainda lentamente as iniciativas. Em maio, o governo instaurou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico Sustentável, um colegiado composto por representantes da sociedade civil e do governo. E em agosto, o conselho criou um grupo de trabalho voltado à recuperação de terras.
Segundo o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a meta do grupo é apresentar ao presidente Lula, até o início de outubro, “propostas concretas” para recuperar áreas degradadas, a fim de “aumentar a área produtiva e reflorestada no país”.
Em junho, foi lançada ainda a nova versão do Plano Safra, programa do governo de apoio a médios e grandes produtores agropecuários. Nele, há a oferta de crédito de quase R$ 7 bilhões para recuperar áreas degradadas e outras iniciativas de restauração.
Porém, há falhas importantes na concessão de crédito público rural, segundo Roberta Del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, rede que monitora a implementação da lei de 2012 de proteção dos biomas. O observatório calcula haver mais de 20 milhões de hectares desmatados ilegalmente nas propriedades rurais brasileiras — terras que os proprietários são obrigados a recuperar. Mas isso não tem impedido a obtenção de novos empréstimos.
A advogada ambiental cobra que não haja “concessão de crédito público para, pelo menos, quem não cumpre essa lei”. Senão, diz ela, “não teremos, efetivamente, volume na restauração”.
Para atingir os objetivos também será preciso lidar com as causas do problema. Em florestas úmidas, como a Amazônia e a Mata Atlântica, o fogo, a exploração madeireira e a fragmentação da paisagem são os principais vetores de degradação do solo, diz Ane Alencar. Já nas savanas do Cerrado, os maiores responsáveis são a monocultura de grãos e a pecuária extensiva.
Esses fatores, por sua vez, são intensificados pela emergência climática, com “secas severas mais frequentes e tempestades de vento cada vez mais fortes”, acrescenta Alencar, também diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia.
O Planaveg agora conta com R$ 14 milhões do Fundo Global para o Meio Ambiente, um dos maiores financiadores ambientais no mundo. “Os recursos estão assegurados”, diz Rita de Cássia Mesquita, secretária de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, responsável pelas políticas de restauração no Ministério do Meio Ambiente. “Temos agora que discutir e avançar com as estratégias”.
A restauração tem o potencial de movimentar uma bioeconomia localRita de Cássia Mesquita, secretária de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais
Enquanto isso, o Banco Mundial doou US$ 25 milhões para recuperar pastagens degradadas no Brasil em novembro. Um mês depois, a empresa de investimentos privados Paramis Capital lançou um fundo para transformar terras brasileiras degradadas em áreas produtivas.
Apesar dos altos investimentos, Mesquita diz que planos do tipo podem trazer retornos financeiros: “A restauração tem o potencial de movimentar uma bioeconomia local”. Uma pesquisa do Instituto Escolhas concorda que grandes insumos gerarão resultados ainda maiores. Por exemplo, o instituto estima que o Brasil ainda precisa de R$ 228 bilhões para atingir a meta de 12 milhões de hectares de florestas restauradas até 2030, mas também afirma que isso poderá gerar R$ 776,5 bilhões e criar 2,5 milhões de empregos.
‘Semeadores de água’
Hoje, Dercílio Pupin implementa um sistema agroflorestal em seu terreno, integrando espécies nativas da Mata Atlântica, como jacarandá e tamboril, com outras de valor econômico, tendo o café como carro-chefe.
Ele também incorporou a pastagem ecológica, na qual há uma rotação do gado entre as áreas do pasto. Isso, além de deixar a vegetação forrageira se recuperar, evita uma nova erosão do solo e favorece sua absorção de nutrientes. Nas bordas da pastagem, ele ainda planta árvores nativas, como jequitibá-rosa e louro-pardo, para a venda de madeira.
“Hoje, depois de dez anos, a roda está começando a girar. A gente planta o milho, o milho vai para a galinha, a galinha defeca e produz o esterco, a gente esterca as plantas, as plantas produzem, já passa de novo para a galinha. Já tem um ciclo se fechando”, diz Pupin.
O agricultor diz que hoje tem renda suficiente, mas ainda sente falta de incentivos para estimular os pequenos produtores. Além do apoio do IPÊ, ele recebe da prefeitura de Piracaia R$ 283 ao ano pela proteção de 1,06 hectare de floresta de seu terreno — um quinto do salário mínimo mensal. “Quando os pagamentos por serviços ambientais forem vantajosos, muita gente vai aderir”, diz o agricultor.
Para atrair agricultores como Pupin, o IPÊ precisou mudar sua estratégia: em vez de focar apenas na recuperação da vegetação nativa, o projeto ajuda a tornar as propriedades rurais produtivas, mas com um modelo mais sustentável e “sem precisar de intervenções abruptas”, segundo Gustavo Brichi, engenheiro florestal do instituto.
Em uma década, o projeto capacitou 334 produtores e técnicos locais, que trabalharam na conversão de cem hectares de pastagens convencionais em ecológicas, no replantio de 70 hectares de preservação permanente e na implementação de 33 hectares de sistemas produtivos sustentáveis.
Com isso, corredores biológicos entre as serras da Mantiqueira e da Cantareira, na região Sudeste, voltaram a se formar, atraindo espécies ameaçadas de Mata Atlântica, como o sagui-caveirinha e o muriqui-do-sul.
E os planos agora vão longe. “A ideia é transformar o [entorno do] Cantareira em um polo de produção agroecológica”, diz Alexandre Uezu, coordenador do Semeando Água, que planeja aproveitar a proximidade das propriedades rurais com a região metropolitana de São Paulo, maior mercado consumidor da América do Sul.
Yedan Li colaborou com a reportagem.
* O repórter Kevin Damasio e o fotógrafo Lucas Ninno viajaram à região do Sistema Cantareira a convite do Instituto de Pesquisas Ecológicas.