Água

Investigados por corrupção estão envolvidos em projeto Hidrovia Amazônica no Peru

Executivos de empresa parceira da chinesa Sinohydro são suspeitos de envolvimento em cartel de empreiteiras
<p>O hidrovia é muito controversa entre cientistas ambientais peruanos e várias comunidades indígenas do entorno. Imagem: Convoca.pe</p>

O hidrovia é muito controversa entre cientistas ambientais peruanos e várias comunidades indígenas do entorno. Imagem: Convoca.pe

Ao menos dois diretores da empresa Construction and Administration S.A. (Casa) que tiveram participação direta no processo de licitação do megaprojeto da Hidrovia Amazônica são investigados por envolvimento no cartel de empreiteiras que pagavam propina em troca de favorecimento em concessões de obras públicas no Peru. O hidrovia é muito controversa entre cientistas ambientais peruanos e várias comunidades indígenas do entorno.

Os representantes da Casa tiveram acesso privilegiado ao Ministério dos Transportes do Peru em momentos importantes do processo licitatório no país, no qual saíram vencedores, segundo uma investigação do Convoca.pe. A Casa é a filial peruana da empresa equatoriana Hidalgo e Hidalgo e também parceira da empresa estatal chinesa Sinohydro, com a qual formou o consórcio Cohidro,

O projeto vencedor

Entre aplausos e na presença do atual presidente peruano Martín Vizcarra — então vice-presidente — foi anunciado no dia 6 de julho de 2017 o vencedor da licitação milionária da primeira hidrovia da Amazônia peruana: o Consórcio Hidrovías II, que pouco mais tarde mudaria de nome para Cohidro.

Naquele dia, as autoridades da agência estadual Proinversión informaram que as vencedoras tinham sido as empresas com “a melhor proposta econômica” — de cerca de 89 milhões de dólares, 10 milhões a menos do que as companhias concorrentes —, em meio a um “rigoroso processo de qualificação”.

O que não foi dito nessa cerimônia oficial é que representantes da empresa Casa, do consórcio Cohidro, tiveram acesso privilegiado ao Ministério dos Transportes, responsável por conceder um parecer dos envelopes apresentados pelos licitantes, em dias decisivos do processo licitatório. A Casa e a Cohidro são vinculadas ao caso de corrupção conhecido como “Clube da Construção” no Peru.

O “Clube de Construção” refere-se ao suposto acordo ilegal de empresas de construção no Peru para distribuir obras concedidas pelo Ministério dos Transportes. A investigação deriva da Lava Jato brasileira, e inclui as empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Queiroz Galvão.

Somente em 2016 e 2017, representantes do consórcio formado pela Casa e pela gigante estatal chinesa Sinohydro visitaram oficiais do Ministério dos Transportes peruano dezenas de vezes, segundo o registro oficial de visitas da instituição. Várias destas visitas aconteceram antes da abertura de envelopes, quando as autoridades revisavam os requisitos técnicos para escolher os vencedores. Na mesma época, houve várias visitas à empresa estadual Proinversión, também em momentos estratégicos do processo.

Quantas visitas foram feitas ao Ministério dos Transportes pelas outras empresas que participaram do concurso, a belga Jan de Nul e a China Communications Corporation Company (CCCC)? Nenhuma.

Entre os principais personagens que participaram dessas reuniões estão o gerente geral da Casa, Jaime Sánchez Bernal, diretor de nacionalidade equatoriana atualmente investigado por crimes de tráfico de influência, associação ilícita e lavagem de dinheiro no caso do “Clube da Construção”.

Sánchez Bernal é acusado de ter feito a entrega de 100 mil dólares à campanha eleitoral de 2016 do ex-presidente peruano Pedro Pablo Kuczynski e não pode deixar o Peru desde março de 2018 por ordem do Primeiro Tribunal Nacional Anticorrupção. No entanto, ele continua como gerente geral da Casa, empresa que lidera o consórcio Cohidro.

Outro personagem que aparece no registro de visitas do Ministério dos Transportes durante o processo de licitação do megaprojeto é Luis Carrasco Palomo, diretor da Casa, que assinou em nome dessa empresa dois dos três contratos dos projetos identificados pelo Ministério Público como suspeitos de envolverem supostos pagamentos de suborno. Essas obras são a estrada Tingo María-Aguaytía, em Pucallpa; o trecho de Campanilla da estrada Juanjuí Tocache, em San Martín; e a estrada Chamaya-Jaén-Puente Integración, em Cajamarca.

Quando foi anunciado que a Cohidro obteve o contrato da Hidrovia Amazônica, o Ministério Público já conduzia uma investigação preliminar do caso do “Clube da Construção” com a participação da Casa, de acordo com delatores da multinacional brasileira envolvida em escândalos de corrupção Odebrecht e outros colaboradores. Inclusive, no dia seguinte à divulgação do consórcio vencedor, em 7 de julho de 2017, foi publicado na imprensa a existência desse cartel de construtoras que repartiam obras entre si, pagando propinas a funcionários públicos do setor de transportes. Mesmo assim, as reuniões entre os representantes da Casa e os funcionários do Estado continuaram.

As acusações de corrupção dos membros da Cohidro não se limitam ao Peru. A Hidalgo & Hidalgo, empresa controladora da Casa no Equador, enfrenta investigações de corrupção por pagamentos de suborno confessados ​​pela Odebrecht, sua parceira na Fase 2 do projeto de irrigação de Carrizal-Chone.

No Panamá, a Hidalgo & Hidalgo se viu implicada em um escândalo de corrupção que terminou com a prisão do ex-vice-presidente Felipe Virzi. A empresa foi acusada de pagar mais de 10 milhões de dólares em subornos a Virzi, depois de se beneficiar do projeto de irrigação no vale de Tonosí, que teve o valor de 155 milhões de dólares.

Cai Runguo, personagem ligado à empresa chinesa Sinohydro,, do consórcio Cohidro, é investigado no caso que ficou conhecido como Arroz Verde, em que são investigados pagamentos nas campanhas de 2014 da Aliança País, o partido do ex-presidente do Equador, Rafael Correa. Rungo, que é ligado à empresa chinesa Sinohydro, do consórcio Cohidro, foi acusado de oferecer “500 em faturas” para a campanha.

Dado esse histórico e as sérias questões sobre o impacto ambiental e social do megaprojeto Hidrovia Amazônica, o Convoca.pe construiu um banco de dados de visitas importantes durante todo o processo de licitação, revisou o arquivo técnico do projeto e outros documentos que põem em evidência as conexões e privilégios dos personagens ligados às investigações de corrupção que desempenharam um papel importante no caso.

As visitas

As visitas dos representantes do consórcio Cohidro aos escritórios de altos funcionários do Ministério dos Transportes se intensificaram entre agosto e setembro de 2016, precisamente às vésperas de 21 de setembro, data em que o terceiro projeto de contrato de concessão foi publicado, que é a etapa anterior para uma versão final do documento.

Segundo o registro de visitas do ministério, em 17 de agosto de 2016, Carmen Benítez Hernández, representando a Cohidro, e os executivos da Casa investigados no caso “Clube da Construção”, Jaime Sánchez Bernal e Luis Carrasco Palomo, tiveram uma reunião com Fiorella Molinelli, ex-vice-ministra de Transportes. Molinelli mais tarde foi acusada de conluio agravado em outro caso.

hidrovia visitas

No registro de visitas também aparece outro protagonista na representação do consórcio: Eusebio Vega Bueza, hoje gerente técnico da Cohidro. A maioria das reuniões de Vega Bueza foi com funcionários da Diretoria de Transporte Aquaviário do ministério, que ele dirigiu até 2001. Naquele ano, Bueza foi obrigado a renunciar após a concessão do Porto de Matarani à empresa Santa Sofías Puerto, que pertence ao Grupo Romero. A empresa foi considerada a única licitante, apesar da existência de nove empresas interessadas e pré-qualificadas para competir.

Depois de deixar o ministério, Vega Bueza passou à Autoridade Portuária Nacional e continuou trabalhando como consultor até se tornar gerente técnico da Cohidro em 2017. Em conversa com o Convoca.pe, Vega Bueza explicou que, durante o processo de licitação da Hidrovia Amazônica, ele prestava consultoria independente sobre aspectos técnicos para várias empresas.

Quando perguntado sobre a visita de 13 de setembro de 2016, Vega Bueza reconheceu que havia participado da reunião com Gao Qiguang, representante da empresa chinesa Sinohydro, sócia da Cohidro, porque “ele estava ajudando a atualizar as propostas técnicas” para o megaprojeto. Mas ele disse que foi contratado por outra empresa chamada Kapac SAC para prestar seus serviços como consultor externo.

Vega Bueza
Eusebio Vega Bueza reconheceu que participou da reunião com representantes da Sinohydro como Gao Qiguang, representante da empresa chinesa que é parceira da Cohidro. Foto: Ministério dos Transportes

Naquela ocasião, a reunião de Vega Bueza e dos empresários chineses foi com Juan Carlos Paz Cárdenas, na época chefe da Diretoria Geral de Transporte Aquático.

Vega Bueza afirmou que, durante o processo de licitação, o megaprojeto não tinha nenhum vínculo contratual direto com a Casa ou com a Sinohydro, empresas parceiras da Cohidro. Além disso, ele questionou o sistema de registro de visitas do Ministério dos Transportes e Comunicações, alegando que é uma imprecisão que ele apareça nessas reuniões como representante da Cohidro em setembro de 2016, quando a empresa não existia juridicamente.

No entanto, o consórcio já estava em operação (com o nome anterior de Consórcio Hidrovías II) e era um dos postulantes no processo de licitação.

Os advogados

Um mês antes da modificação da versão final do contrato de concessão, realizada em 8 de março de 2017, foram registradas reuniões no Ministério dos Transportes, com Hugo Morote Núñez, sócio principal da Roselló Abogados, escritório de advocacia que prestava assessoria no processo de concessão do Consórcio Hidrovías II.

Uma das reuniões foi realizada em 9 de fevereiro também de 2017, quando Morote se encontrou com Diego Fernando Mori Franco, analista jurídico da Diretoria Geral de Concessões de Transporte do Ministério. Alguns meses depois, Mori se juntou à equipe da Rosselló Abogados conforme aparece em seu Linkedin.

Em conversa com o Convoca.pe, Diego Mori disse que se encontrou com Morote, que havia sido seu chefe quando ele era estagiário na Rosselló Abogados. No entanto, ele disse que a reunião não tratou de questões relacionadas à hidrovia da Amazônia. “O encontro foi por causa estrada longitudinal da serra. Eu tratei de temas corriqueiros”, disse ele.

Mori admitiu que, depois de se demitir do ministério, segundo ele por motivos pessoais, imediatamente se juntou à Roselló Abogados, onde passou a trabalhar como assessor da Concessionária Puerto Amazonas SA (Copam). Lá, Mori trabalhou com Carmen Benítez Hernández, gerente geral da empresa e agora também gerente geral da Cohidro. A Copam faz parte do mesmo grupo de negócios ao qual pertencem a Casa e a Cohidro: a empresa equatoriana Hidalgo e o Hidalgo, de grande poder no Equador.

Dias antes de 27 de abril de 2017, quando a Proinversión aprovou a nova versão final do contrato de concessão, o advogado Hugo Morote Núñez visitou em quatro ocasiões o diretor de concessões do Ministério dos Transportes, Yaco Paul Rosas Romero. Em uma dessas visitas, em 22 de março, o advogado Morote acompanhou Carmen Benítez Hernández, hoje gerente geral do consórcio encarregado da hidrovia.

O Convoca.pe buscou a versão de Morote, mas quem respondeu em seu nome foi o advogado Miguel Sánchez Moreno, sócio-sênior do mesmo escritório de advocacia que assessora a Cohidro desde o início do processo de concessão do megaprojeto.

Sánchez Moreno, que era gerente jurídico da Proinversión até junho de 2006, argumentou que as visitas frequentes feitas por ele e Morote ao ministério eram para tratar de questões de vários clientes. Além disso, ele disse que as informações nos registros de visitas do ministério apresentavam erros e que “esse caos no sistema está gerando confusão”.

Um dia antes de ser anunciado que o Consórcio Hidrovías II (Cohidro) havia vencido a licitação, em 5 de julho de 2017, o advogado Hugo Morote se encontrou com Rosa Nakagawa Morales, que substituiu Yaco Rosas na Diretoria Geral de Concessões em Transportes.

O que disse a Cohidro

O Convoca.pe solicitou uma entrevista com representantes do consórcio Cohidro sobre as reuniões realizadas com funcionários do Ministério dos Transportes e do Proinversión durante o processo de concessão da Hidrovia Amazônica.

Inicialmente eles se recusaram a dar sua versão, depois nos chamaram para uma entrevista em sua sede em 4 de dezembro às 15 horas, às vésperas do fechamento desta reportagem.

Mas, quando fizemos as perguntas aos gerentes, optaram pelo silêncio. “Não podemos conversar sobre encontros ou reuniões anteriores porque não temos conhecimento”, disse Narcory Carretero, gerente de responsabilidade social da Cohidro, que estava acompanhada pelo chefe de administração e finanças, Saúl Cárdenas. Em seguida, fomos encaminhados a Miguel Sánchez Moreno, da Roselló Abogados, que disse, por telefone, que não se lembrava de tantas visitas ao ministério.

Cohidro
Sede da Cohidro no distrito de Santiago de Surco em Lima Foto: Convoca.pe

As perguntas deste meio digital incomodaram os representantes da Cohidro. Na noite de 4 de dezembro, em pleno fechamento desta reportagem jornalística, recebemos um e-mail de Saúl Cárdenas, no qual ele apontava que existem erros no registro de entradas do Ministério dos Transportes e Comunicações, porque Vega começou a trabalhar na Cohidro em 19 de setembro de 2017. Ele também mencionou que “não era possível” que o gerente geral da Roselló Abogados, Miguel Morote, visitasse o ministério em nome da Cohidro, porque esta recentemente se estabelecera como uma empresa, em agosto de 2017.

No entanto, o consórcio existia desde o final de 2015, quando o processo de licitação da Hidrovia Amazônica começou, como consta em uma ata do acordo entre as empresas parceiras Casa e Sinohydro, conforme explicou, em uma entrevista por telefone, Sánchez Moreno, da Roselló Abogados.

Até o fechamento desta reportagem, o setor de imprensa do Ministério dos Transportes não respondeu sobre as visitas dos representantes da Cohidro. Entretanto, a coordenadora da área de orientação ao cidadão, Rocío Padilla, explicou que cada funcionário e a direção têm a responsabilidade de registrar as visitas que recebe, para que não haja possibilidade de alterar essas informações.

As visitas à Proinversión

Na mesma época das reuniões no Ministério dos Transportes, representantes do consórcio Cohidro compareceram antes e após o processo de licitação da Hidrovia Amazônica à Proinversión, a entidade responsável pela licitação.

Nessas reuniões, um novo personagem se destaca: Tharcizio Calderaro Pinto Junior, ex-diretor para a América Latina da construtora brasileira Camargo Corrêa, investigado no caso de corrupção Lava Jato.

Em nome da empresa chinesa Sinohydro, Pinto Junior se reuniu em 14 de julho de 2017 com Luis Natal del Carpio Castro, chefe de projetos em questões relacionadas à Hidrovia Amazônica na entidade pública peruana. Esta reunião foi realizada oito dias após a decisão final sobre o megaprojeto ser conhecida. No total, Pinto Junior teve até quatro reuniões com Del Carpio.

Del Carpio Pinto
Pinto Junior se reuniu em 14 de julho de 2017 com Luis Natal del Carpio Castro, Gerente de Projetos da Hidrovia Amazônica. Foto: Ministério dos Transportes.

A Proinversión respondeu ao Convoca.pe que “não há restrições para realizar as reuniões consideradas necessárias, dependendo do andamento do processo de promoção do investimento privado”.

Já a administração geral da empresa concorrente Jan de Nul respondeu que seus representantes seguiam “os canais formais para apresentar as propostas técnicas e econômicas”, e, se houvesse alguma dúvida no processo de licitação, as consultas eram feitas por escrito. Eles não foram ao Ministério dos Transportes, ao contrário do que fizeram representantes do consórcio Cohidro.

Esta reportagem foi produzida pelo Convoca.pe no âmbito de seu trabalho investigativo sobre o ‘Clube da Construção’. O Diálogo Chino agradece sua permissão para reproduzir uma versão editada da reportagem.