Desde maio, a água que abastece Montevidéu e sua região metropolitana, onde vive a maioria dos uruguaios, contém mais do que o dobro de sódio do que era preconizado pelas leis locais.
As autoridades dizem que a situação na capital uruguaia é momentânea, mas admitem que ela deve continuar até que haja chuva suficiente para encher o reservatório de Paso Severino, que abastece 60% da população do país.
Atualmente, o Uruguai passa por uma das piores crises hídricas já registradas, após três anos de secas extremas que reduziram as reservas de água doce a mínimos históricos.
Para lidar com a falta d’água, o governo uruguaio recorreu a medidas drásticas: coletou a água salgada do Rio da Prata para complementar o fornecimento de água doce do rio Santa Lucía, onde está localizado o Paso Severino, 75 quilômetros ao norte de Montevidéu. A solução providencial elevou os níveis de sódio e cloretos na água corrente e foi amplamente criticada por especialistas e representantes de todo o espectro político, devido aos possíveis riscos à saúde do aumento da salinidade da água.
A resposta do governo à crise provocou grandes manifestações na capital uruguaia. Enquanto isso, a demanda por água engarrafada cresceu significativamente no país, pressionando autoridades a buscar novas soluções para garantir o abastecimento de água potável.
Especialistas consultados pelo Dialogue Earth avaliam que o déficit hídrico do Uruguai — o mais grave dos últimos 50 anos — dificilmente será um fenômeno temporário, que possa ser resolvido com o aumento das chuvas. As mudanças climáticas e as secas prolongadas, dizem eles, estão na raiz desse problema.
Em uma recente carta aberta, a Associação Uruguaia de Limnologia, dedicada ao estudo dos corpos d’água continentais, observa que os problemas relacionados ao declínio da qualidade e quantidade de água doce “aumentaram em frequência e magnitude na última década”. A intensa seca, associada à incidência do fenômeno La Niña desde 2020, provocou “o colapso das reservas de água para consumo humano” em Montevidéu e na região metropolitana, diz entidade.
O presidente da associação, Franco Teixeira de Mello, explica que, enquanto a seca impacta a quantidade de água disponível, as mudanças climáticas reduzem sua qualidade. Segundo Teixeira, não se trata de um evento isolado: “Precisamos estar preparados, porque não é algo circunstancial”.
“A crise hídrica é o resultado da falta de políticas ambientais para cuidar dos cursos d’água, e a seca acentua esse problema”, acrescenta Teixeira.
Para o geógrafo Marcel Achkar, da Universidade da República do Uruguai, a crise hídrica foi causada não só por fatores climáticos, mas também pela ausência de planejamento do uso do solo para proteger os recursos hídricos e maximizar a produção na bacia do rio Santa Lucía.
“A maioria das ações em relação à bacia nas últimas décadas teve foco na agropecuária e na indústria, levando a uma diminuição da produção de água [para consumo humano]”, diz Achkar.
‘Bebível, mas não potável’
Com capacidade de 67 milhões de metros cúbicos de água, o reservatório de Paso Severino atingiu seus níveis mais baixos nos últimos dias: apenas 1,8 milhão de metros cúbicos, cerca de 2,5% de sua capacidade total, segundo dados do governo divulgados ontem (10).
“A estação de tratamento Águas Correntes [que abastece a região metropolitana de Montevidéu] ficou sem reserva, então tivemos de captar água salgada do Rio da Prata para suprir a população com o que o governo chama de água bebível, mas não potável”, diz Edgardo Ortuño, diretor da estatal de água e saneamento básico Obras Sanitárias do Estado (OSE) e membro da Frente Ampla, principal partido de oposição do Uruguai.
Ortuño se refere às declarações do ministro do Meio Ambiente do Uruguai, Robert Bouvier: em maio, ele disse que o abastecimento da OSE, que teve a salinidade aumentada por decisão do governo, “não é potável na definição perfeita de potabilidade, mas é bebível e consumível”.
Bouvier se respaldou na posição da ministra da Saúde, Karina Rando, que assegurou não haver risco à saúde em beber água da torneira, mas aconselhou pessoas com doenças renais e cardíacas e mulheres grávidas a evitarem seu consumo.
No fim de junho, o presidente do país, Luis Lacalle Pou, disse que os níveis elevados de salinidade provavelmente continuariam por mais dois meses. Recentemente, o governo autorizou o aumento temporário nos limites dos níveis de sódio e cloreto na água. O sódio passou de 200 miligramas por litro (mg/L) para 440 mg/L; e os cloretos, de 250 mg/L para 720 mg/L. Esses níveis já foram alcançados e até ultrapassados nos últimos dias.
Também houve aumento na presença de trihalometano, subproduto do processo de tratamento da água. O Ministério da Saúde autorizou a OSE a quintuplicar o nível permitido desses compostos, uma medida polêmica que gerou críticas devido a seus possíveis efeitos associados — por exemplo, a malformação fetal e outras complicações durante a gravidez.
Sob pressão, a administração de Lacalle Pou precisa acelerar a construção de novos reservatórios e ampliar a infraestrutura para o tratamento de água potável. O plano de construir uma barragem no arroio Casupá, que deságua no rio Santa Lucía, está na mesa do governo uruguaio desde 2013. A obra, que custaria cerca de US$ 100 milhões, poderia ajudar a represar 118 milhões de metros cúbicos de água.
Para Ortuño, Casupá representa “a única solução” para o fornecimento de água potável e “é uma tolice não tê-la construído ainda”. Já o projeto Neptuno — que prevê a construção de uma hidrelétrica privada para captar e tratar a água do Rio da Prata, mais salobra — foi descrita pelo ex-parlamentar como “a pior das alternativas”, com um propósito puramente econômico. Embora o investimento inicial parta de um consórcio privado, a OSE teria de pagar uma taxa fixa de US$ 41 milhões por ano pela operação da usina.
Daniel Greif, engenheiro civil e ex-diretor do primeiro Plano Nacional de Águas do Uruguai, lançado em 2010, também criticou a decisão do atual governo de levar adiante o projeto Neptuno em vez de priorizar a obra de Casupá, para o qual já havia estudos que indicavam sua viabilidade.
Captamos água salgada do Rio da Prata para abastecer a população com o que o governo chama de água bebível, mas não potávelEdgardo Ortuño, diretor da OSE e membro da Frente Ampla
“Neptuno não é original, nem benéfico e já havia sido descartado pelos técnicos da OSE no plano diretor”, diz Greif. “É uma solução complexa e cara, porque não resolve os problemas de abastecimento. Aumenta sua produção, mas não o armazenamento”.
O Dialogue Earth procurou o Ministério do Meio Ambiente do Uruguai para comentar sobre a crise hídrica no país, mas a pasta disse que a presidência agora era a única autorizada a falar sobre a questão. A presidência não respondeu até a publicação do texto.
Falta de planejamento
Especialistas consultados pela reportagem concordam que o país deveria estar mais preparado para enfrentar a crise hídrica.
Para Greif, embora haja problemas estruturais — como a falta de capacidade da OSE para enfrentar a seca recorde — também houve problemas na gestão de crise, o que levou a uma pressão sem precedentes na infraestrutura do abastecimento de água.
A posição é compartilhada por organizações que lideraram as manifestações contra o governo em Montevidéu nos últimos meses. Alguns manifestantes destacaram suas preocupações com o excesso de sal na água. Outros acusavam o governo de priorizar o uso dos recursos hídricos por grandes empresas em detrimento do abastecimento de cidadãos. “Não é seca, é roubo” e “a água do povo não está à venda”, diziam alguns dos cartazes.
Precisamos mudar nossa maneira de pensar sobre a água e entender que é um recurso finito, escasso e caro. Se desperdiçarmos menos, teremos maisRaul Viñas, integrante do Movimento por um Uruguai Sustentável
Raul Viñas, meteorologista e integrante do Movimento por um Uruguai Sustentável, diz que as medidas tomadas pelo governo diante da crise hídrica “não foram as corretas”.
Ele enxerga quatro áreas prioritárias para resolver os problemas de abastecimento de água potável: consertar as redes de água para evitar as enormes perdas registradas; construir novos reservatórios de água em áreas sem a contaminação de agrotóxicos e matéria orgânica; buscar novas fontes de água doce; e melhorar a educação sobre o uso e a conservação da água.
“Precisamos mudar nossa maneira de pensar sobre a água e entender que ela é um recurso finito, escasso e caro. Se desperdiçarmos menos, teremos mais”, diz Viñas.
Para o geógrafo Marcel Achkar, a crise uruguaia revela que não é possível criar planos achando que o clima vá se comportar como antes. A gestão dos recursos hídricos, diz ele, deve ser repensada, para “projetar planos reais, com metas de médio e longo prazo, que não sejam apenas um conjunto de boas intenções”.