A província de Mendoza, na Argentina, está se preparando para tirar do papel um megaprojeto há muito atrasado. Com idas e voltas desde 1950, a barragem de Portezuelo del Viento, no oeste do país, promete energia, turismo e empregos. Mas ela é também uma frente de conflito com outras províncias e organizações sociais, que temem ficar sem água.
A barragem será construída no rio Grande, no departamento de Malargüe, a 300 quilômetros da fronteira com o Chile. Está projetada para ter 185 metros de altura, com uma capacidade de reservatório de 2 mil hectômetros cúbicos e uma potência de 210 MW. Gerará energia hidrelétrica suficiente para abastecer 130 mil domicílios
Concebida como um projeto “multiuso”, Portozuelo inclui, além da central hidrelétrica, uma linha de transmissão, a construção de novos trechos da Rota Nacional 145 – que liga Argentina e Chile – e da Rota Provincial 226, e a construção da nova Villa Las Loicas, uma vez que a vila original será submersa.
Apesar da oposição do governo da província vizinha de La Pampa, Mendoza está avançando com o processo de licitação. Somente um consórcio liderado pela empresa estatal chinesa Sinohydro, em aliança com três empresas mendocinas (IMPSA, CEOSA e Obras Andinas), apresentou uma proposta para o projeto.
Você sabia…?
A controladora da Sinohydro, PowerChina, está desenvolvendo projetos de energia em mais de 80 países
A Sinohydro pertence à empresa estatal chinesa PowerChina, uma das mais importantes empresas de energia e construção do mundo, com projetos em 80 países. Na Argentina, está atualmente construindo a barragem hidroelétrica El Tambolar na província vizinha de San Juan e é a principal empreiteira em projetos de energia renovável no país.
“A barragem estará localizada em Mendoza, mas é de importância federal, pois gera energia limpa para mais de 100 mil famílias em outras províncias”, disse Mario Isgro, ministro de Planejamento e Infraestrutura Pública de Mendoza. “Além disso, a barragem regulará a disponibilidade de água a jusante. É importante para toda a bacia”.
Para Isgro, o projeto “será um importante gerador de empregos diretos no momento da construção e em sua operação, e criará empregos indiretos com as atividades que poderão ocorrer no espelho d’água do reservatório”. Ele descreveu a área onde a barragem será construída como um “lugar muito bonito”, onde haverá espaço para desenvolver projetos de turismo e atividades esportivas.
Um conflito centenário
Embora Portezuelo del Viento esteja planejada para o território de Mendoza, o rio Grande, sobre o qual será construída a barragem, é o principal afluente do rio Colorado, um importante curso de água que se estende por mil quilômetros desde os Andes até o Atlântico e atravessa cinco províncias: Mendoza, La Pampa, Neuquén, Río Negro e Buenos Aires.
La Pampa se opõe ao projeto precisamente porque teme que a barragem reduza o fluxo do rio Colorado em seu território. “A preocupação central da província de La Pampa é que Portezuelo del Viento afete a quantidade e a qualidade da água na bacia do Colorado”, diz o secretário de Recursos Hídricos de La Pampa, Néstor Lastiri.
A província já iniciou várias ações legais contra Mendoza e está exigindo uma avaliação ambiental em toda a bacia do rio Colorado. Lastiri assegura que Mendoza não está cumprindo as leis nacionais de gestão da água e que a barragem poderia mudar o curso do rio.
Ele reduzirá em 70% o fluxo de um rio que é fundamental para nós. Vivemos do rio e precisamos da água para sobreviver
O conflito não é novo. Há cem anos, uma série de obras em Mendoza reduziu consideravelmente o volume de água em La Pampa. Em 1947, com a construção da barragem El Nihuil em Mendoza, a situação piorou e levou ao desaparecimento dos principais braços do rio Atuel em La Pampa, com um forte impacto sobre o ecossistema e as atividades produtivas no entorno.
O impacto ambiental de grandes projetos de barragens na Argentina também não é novo. Nos últimos anos tem havido forte oposição dos setores sociais à construção do complexo hidrelétrico La Barrancosa-Cóndor Cliff no rio Santa Cruz, na província homônima do sul do país. Trata-se de um projeto financiado em 85% pela China, em cuja construção a empresa chinesa Gezhouba associou-se a parceiros locais.
A decisão presidencial
O Colorado é administrado pelo Comitê Interjurisdicional do Rio Colorado (Coirco), integrado pelas cinco províncias que o rio atravessa. As regras do comitê estabelecem que, caso não haja acordo entre as províncias, é o presidente quem decide como “o árbitro”.
Em junho, a província de La Pampa exigiu a realização de um estudo de impacto ambiental em toda a bacia do rio Colorado — e não apenas no território de Mendoza, como já era o caso. Apesar de ter apoio político de todas as outras províncias, Mendoza discordou, e apenas uma decisão presidencial resolverá o impasse.
O presidente Alberto Fernández deve então decidir se concorda com Mendoza e encerra a questão em torno do estudo de impacto ambiental com aquele já realizado exclusivamente no território de Mendoza, ou se aceita a reivindicação de La Pampa e decide que um novo estudo deve ser realizado para considerar os impactos ambientais em toda a bacia do rio Colorado.
Críticas por trás do projeto
A Assembleia Popular pela Água de Mendoza, um grupo de cidadãos, apoia a demanda de La Pampa por um estudo de impacto ambiental que leve em conta o resto das províncias.
“A barragem afetará significativamente o fluxo do rio Colorado, que já tem uma vazão baixa. As províncias estão sofrendo uma crise hídrica que foi agravada pela mudança climática, e este projeto vai piorá-la”, disse Elsa Díaz, representante da Assembleia.
Para Díaz, Portezuelo del Viento não é uma energia limpa, mas sim parte de um modelo extrativista. “As comunidades que vivem às margens do rio Colorado já têm problemas com a crise da água. Seu modelo econômico está sendo afetado e, se ficarem sem água com este projeto, seu sustento será afetado”, acrescenta ela.
Melisa Ibañez, da Assembleia Permanente do Rio Colorado, outro grupo de cidadãos, tem uma visão semelhante. Ela considera Portezuelo del Viento “um projeto sem uma licença social”.
“Ele reduzirá em 70% o fluxo de um rio que é fundamental para nós. Vivemos do rio e precisamos da água para sobreviver. O Colorado é turismo e é agricultura. Bebemos dessa água e produzimos alimentos. Além disso, isso vai afetar a fauna”, lamenta Ibañez.
Sua organização argumenta que os estudos de avaliação de impacto que foram realizados são antigos. “Eles foram feitos no fluxo de um rio que não existe mais”, diz Ibañez, aludindo à crise da água que afeta a região e que as mudanças climáticas ameaça prolongar e aprofundar.
A União dos Trabalhadores da Terra (UTT), uma organização de pequenos produtores agrícolas de todo o país, também se opõe a Portezuelo del Viento.
“Já temos problemas com a irrigação, e no sul de Buenos Aires há 45 mil hectares a menos de produção devido à crise da água”. Neste contexto, a represa vai nos prejudicar enormemente”, diz Karina Zon, da UTT Rio Colorado, Patagônia Regional.
Zon também se refere a um projeto que os ambientalistas criticam e relacionam com Portezuelo del Viento: uma futura transferência de água do rio Grande para o Atuel, o que resultaria em uma redução ainda maior do fluxo do Colorado. Zon sustenta que este trabalho foi escondido por Mendoza.
“Há um encobrimento de parte do projeto que afetaria todas as províncias a jusante, tanto em termos de irrigação quanto de consumo humano, pois ao reduzir o fluxo, aumenta a concentração de sais prejudiciais ao consumo e às culturas”, explica o representante do sindicato.
A visão de Mendoza
O governo de Mendoza nega que o que os ambientalistas e pequenos produtores estão denunciando vai acontecer, e enfatiza que Portezuelo del Viento vai melhorar a disponibilidade de água para toda a bacia. Além disso, asseguram que todos os estudos de impacto ambiental necessários para o projeto foram realizados.
“As outras províncias não ficarão sem água. Pelo contrário: o reservatório é uma reserva de água para quando a natureza não puder fornecê-la. E é importante dizer que a administração da saída de água da barragem é feita em conjunto pelo Coirco”, aponta o ministro Isgro, de Mendoza.
Isgro destaca o interesse da Sinohydro em se encarregar da construção da barragem: “A decisão de participar de uma empresa como essa é uma mensagem de que a obra está bem planejada. A Sinohydro tem muita experiência neste tipo de construção e levou nove meses para estudar os documentos do concurso. Isso é muito auspicioso”, ele justifica.
Eduardo Moreno, um engenheiro da Universidade Nacional de Cuyo, responsável pelo estudo de impacto ambiental, disse que a barragem foi “estudada com muito cuidado” do ponto de vista ambiental. Ele também descartou a possibilidade de haver uma escassez de água. “Existem planos de gestão para diferentes cenários, de muita água ou de escassez”, disse ele.
Moreno assegura que a barragem evitará a emissão de 300 mil toneladas de dióxido de carbono por ano. “Por ser um projeto no meio do deserto, que não compete com outras atividades produtivas ou fauna e flora significativas, em termos ambientais o balanço é tremendamente positivo”, acrescenta ele.
Em todo caso, o futuro do projeto dependerá agora do presidente Alberto Fernández. Embora ele não tenha que decidir se construirá ou não a barragem, mas se realizará ou não um estudo de impacto ambiental que cubra toda a bacia, sua decisão poderia interromper a obra se for encontrado um impacto significativo.