A instabilidade das chuvas que irrigam as vastas plantações de soja do Brasil provocou uma corrida pelo melhoramento genético de sementes. Sem esperanças de parar as mudanças climáticas e o desmatamento, apontados como pelo menos parte das causas da seca por pesquisadores, produtores passaram a ver a tecnologia com um dos últimos caminhos para evitar ainda mais perdas.
O aumento em frequência e duração dos chamados “veranicos”, nome dado às semanas de seca que ocorrem durante a estação chuvosa, provocou atrasos no plantio, que normalmente ocorreria no início de novembro e só foi iniciar quase em dezembro.
“[Nós tivemos] um volume de chuva bem menor do que nos últimos anos”, disse Endrigo Dalcin, presidente do Instituto Soja Livre e dono de uma fazenda em Nova Xavantina, em Mato Grosso. “Atrasamos o plantio em pelo menos 15 dias, só que as chuvas não regularizaram até hoje, estamos parados há 10 dias esperando”.
Na mesma região, uma área de transição entre o Cerrado e a borda sul da Amazônia, o pesquisador da Universidade de Leeds, o brasileiro David Galbraith, documentou um aumento considerável de altas temperaturas e redução do volume de chuvas nos últimos anos.
“De acordo com os dados climáticos dessa região, é bem notável o aumento de ondas de calor e de temperaturas altas”, disse. Segundo ele, o número de dias em que a temperatura ultrapassa 40 graus têm aumentado na última década.
Tecnologia para amenizar os impactos da falta de chuvas
Uma das principais respostas para enfrentar os veranicos nestas regiões são as frentes de trabalho que visam desenvolver espécies resistentes à falta de chuvas. O melhoramento genético brasileiro é capitaneado principalmente pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Os novos desafios alçaram o pesquisador Alexandre Nepomuceno, que se dedica a estudar espécies resistentes a estresse hídrico há décadas, ao cargo de chefia do Centro Nacional de Pesquisa de Soja da Embrapa, com sede em Londrina no Paraná, em setembro.
“Não preciso nem falar da importância deste trabalho. Nós estamos vendo as variações climáticas, estamos vendo todo atraso que a falta de água está causando nos plantios de soja no Brasil inteiro”, comenta Nepomuceno.
Se antes eu perderia 50% da lavoura, de agora em diante eu passo a perder apenas 20% ou 30%
O chefe da Embrapa Soja explica que, em síntese, o objetivo das pesquisas realizadas é criar novas variedades de soja capazes de segurar por mais tempo uma flor ou um legume até que a chuva chegue. Ele afirma ser difícil definir a quantidade de dias que uma planta suportaria sem chuvas, mas garante que os resultados preliminares já apontam que a tolerância é significativa.
“Se antes eu perderia 50% da lavoura, de agora em diante eu passo a perder apenas 20% ou 30%”, explica. “Estas espécies estão sendo plantadas, mas não comercialmente”.
O objetivo é demonstrar a eficácia das sementes para posteriormente obter autorização do governo para comercializá-las, um processo pelo qual todas as variedades transgênicas precisam passar.
No trabalho, os pesquisadores utilizaram na soja genes da planta Arabidopsis thaliana, uma espécie nativa da Europa e da Ásia que pertence à mesma família da mostarda. Os resultados, de acordo com Nepomuceno, se mostraram excelentes até o momento.
“A biotecnologia vai ser uma das grandes ferramenta nas próximas décadas para lidar com a questão das mudanças climáticas”, afirma.
Em uma pesquisa paralela realizada pelo Centro Nacional de Recurso Genético (Cenargen) da Embrapa o interesse também é por desenvolver espécies mais resistentes a falta d’água.
A pesquisadora do grupo, Maria de Fátima Grossi, explica que o trabalho ainda está na fase intermediária. Uma das estratégias de pesquisa, segundo ela, é o “silenciamento” de genes mais suscetíveis à seca e a superexpressão de genes mais tolerantes à falta de água. A técnica é conhecida como Crispr.
Com esta técnica os pesquisadores manipulam os genes da própria planta para torná-los mais resistentes, sem precisar trazer genes de outras plantas. Neste caso, é como se o trabalho fosse reproduzir em laboratório um processo de mutação natural do gene.
“Uma vez que ainda não foram iniciadas as análises em campo, não é possível se dizer com certeza qual será o comportamento das variedades de soja melhoradas em resposta às mudanças climáticas, mais em teoria, acredita-se que a resposta seja positiva”, diz a pesquisadora.
Apesar de promissor, só o melhoramento genético não é suficiente
A Embrapa já conseguiu resolver problemas similares no passado. Nas três últimas décadas, pesquisadores da empresa criaram variedades de sojas resistentes ao clima do Cerrado, o que levou a uma enorme revolução na produção agrícola de estados como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul — apontada por ambientalistas como culpada por boa parte do desmatamento no bioma.
Pesquisadores como Marimon e Galbraith defendem que as variações de chuva não conseguem mais ser explicadas por fenômenos climáticos naturais, como El Niño ou La Niña, e que por conta disso fica difícil prever onde e quando vai chover menos ou mais no continente — e, portanto, o quão intenso é o estresse hídrico que uma nova variedade de soja precisaria resistir.
Você sabia?
Foi o melhoramento genético que permitiu o avanço da soja pelo Cerrado
“Esta corrida contra as variações climáticas já está começando a dar sinais de que pode não ser vencida pela genética, nós já podemos afirmar que não temos garantias porque a velocidade das mudanças climáticas aumentou e se tornou difícil de prever”, diz.
Para Marcos Norio Matsumoto, consultor da GDM Seeds, empresa líder em sementes de soja no país, é preciso pensar em um meio termo entre as demandas do clima e as demandas do agronegócio.
“Precisamos caminhar juntos. Parar o que é feito hoje não será a melhor solução, mas seguir sem olhar para o lado também não vai adiantar nada”, afirma. “Tenho certeza que se ocorrer esta união o resultado pode ser extremamente interessante para os dois lados”.
Mas, até agora, a pressão do setor produtivo tem pesado mais nos avanços tecnológicos do que na proteção de ecossistemas. Ben Hur e David Galbraith, que trabalham em parceria, defendem que parte da resposta às secas deveria necessariamente passar pelo investimento em políticas mais restritivas à destruição florestal que tem secado as chuvas, como a moratória do desmatamento. Ambos pesquisadores temem que avanços na tecnologia sejam incentivos para não impedir a destruição dos ecossistemas que regulam o clima.
“Os avanços da biotecnologia brasileira são ótimos e são notáveis”, diz Marimon. “Mas nós não estamos fazendo nada pelo clima.”