Água

Illapel: a cidade chilena que enfrenta seca intensa e excessos da mineração

Município é exemplo de disputas pela água, agravadas pelas mudanças climáticas e atividades econômicas. Esperanças estão na reforma constitucional do Chile
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Em fevereiro de 2021, moradores de Illapel realizaram o protesto “Caravana pela Água”. Eles exigiam o fim das desigualdades de acesso à água na cidade, onde mineradoras têm privilégio sobre o recurso (Imagem: Michael Lieberherr Pacheco / Revista Pasto Seco)

A província de Choapa, que abriga cem mil habitantes e separa o norte do centro do Chile, sofreu mudanças dramáticas com a mega seca que atinge o país há 13 anos.

Com a desertificação, sua capital, Illapel, a 280 quilômetros de Santiago, depende de municípios vizinhos para seu abastecimento de água potável. Illapel é cercada por montanhas amareladas pela seca e com esparsa vegetação, que contrasta com o verde das plantações de abacate. Os rios se tornaram tímidos riachos — uma paisagem muito diferente daquela do passado, especialmente na época das estações chuvosas.

Seca e mineração

Diferentes atividades econômicas convergem em Illapel. A agricultura familiar em pequena escala e a criação de carneiros e cabras são comuns, mas é a mineração que tem desempenhado o papel mais importante na economia local, como deixa claro o lema da cidade: Viscera mea aurea ou “Minhas vísceras são douradas”.

O legado da mineração deixou marcas na cidade. De acordo com o Serviço Nacional de Geologia e Mineração do Chile, Illapel é a comunidade chilena com o terceiro maior número de depósitos de rejeitos de minérios — são 65 no total. Os resíduos, em sua maioria tóxicos, são um subproduto da atividade minerária e podem gerar impactos indesejados na saúde dos habitantes, ecossistemas e recursos hídricos.

A mega seca converte terras férteis em deserto, aumentando os riscos para os moradores de Illapel. A situação é tão extrema que a empresa Aguas del Valle, responsável pela gestão hídrica, estendeu mais de uma vez a projeção de racionamento de água potável.

“A situação de seca na província de Choapa, e em toda a região de Coquimbo, é crítica”, disse Andrés Nazer, gerente regional da Aguas del Valle.

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Ele informou que, com base em dados do início de julho, o déficit pluviométrico em Illapel atingiu 83,2%. Já o reservatório de El Bato, a cerca de 30 quilômetros ao norte da cidade, estava a apenas 6,8% de sua capacidade no período.

Em 2021, a empresa teve que construir um aqueduto de 20 quilômetros do município de Salamanca para levar água à Illapel e, assim, evitar seu racionamento. O projeto custou 6 bilhões de pesos chilenos (quase R$ 35 milhões).

“A crise da água em Illapel se arrasta há pelo menos dez anos”, disse José Luis Núñez, vereador do município, ao Diálogo Chino. Ele acrescenta que o problema seria pior sem a ação das autoridades, que deram à cidade “um breve respiro”.

Desde 2010, o Chile tem visto a queda alarmante dos índices pluviométricos, em meio à década mais quente dos últimos cem anos, de acordo com um relatório do Centro de Pesquisa de Clima e Resiliência, com sede em Santiago.

“A persistência temporal e a extensão espacial da atual seca não tem precedentes. Esse evento, que chamamos de mega seca, também não tem análogos no milênio, segundo reconstruções climáticas baseadas no crescimento dos anéis de árvores”, diz o relatório.

Distribuição desigual da água

A seca teve sérias consequências para atividades em Illapel como a agricultura familiar e a apicultura. “A mega seca dos últimos 13 anos causou o dramático declínio da flora nativa, o principal alimento da abelha. Tem sido um golpe letal para a maioria dos apicultores. O fluxo dos rios caiu para praticamente zero”, diz o apicultor José Povea.

Illapel é exemplo de onde a má gestão, o uso predatório dos recursos naturais e as mudanças climáticas criaram uma tempestade perfeita. Isso foi confirmado por um estudo publicado em março e que constata que atividades como a mineração têm sido as “principais causas” da diminuição do abastecimento de água.

vazão seca do rio Illapel no Chile
A vazão do rio Illapel diminuiu drasticamente com a mega seca do Chile que assola o país há 13 anos (Imagem: Michael Lieberherr Pacheco / Revista Pasto Seco)

“As atividades humanas e o uso excessivo da água estão esgotando rapidamente esse recurso na região. O problema é ainda mais complicado em meio a um clima em mudanças e a precipitação decrescente”, avaliou o estudo.

A privatização e monopolização do fornecimento da água por empresas agrícolas e mineradoras levaram a uma distribuição injusta da água

A pesquisa também aponta cenários difíceis para a região. “Há uma necessidade urgente de saber como quantificar adequadamente a disponibilidade de água, bem como os usos atuais, antes de autorizar novas captações do recurso”, concluem os autores.

Esse resultado expõe uma realidade injusta para os moradores de Illapel, uma vez que as atividades econômicas têm prioridade sobre o consumo humano de água — o que se tornou ainda mais dramático desde que o território foi declarado como zona de escassez de água em nível nacional, em 6 de julho.

A necessidade de mudança é reforçada por Ivanna Olivares, professora de história, ativista ambiental e, até algumas semanas atrás, uma das encarregadas pelo rascunho da nova Constituição do Chile.

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“Décadas de mega seca, além da privatização e monopolização do fornecimento da água por empresas agrícolas e mineradoras levaram a uma distribuição injusta do recurso, colocando Illapel em risco”, disse Olivares.

Setenta por cento da água de Illapel é destinada ao setor agroindustrial, 25%, à mineração e apenas 5%, ao consumo humano, menciona Olivares.

“Claramente, o problema, além da seca, é a distribuição da água”, comenta o vereador Núñez. “O fato de uma mineradora ter acesso à quantidade de água que deseja enquanto as comunidades locais não têm esse privilégio diz muito sobre a desproporcionalidade”.

Há na região outras desigualdades: a área também tem extensas plantações de abacate, cuja produção é intensiva em água, e enfrenta a proliferação de poços artesianos irregulares. Em fevereiro de 2021, o protesto “Caravana pela Água” lotou.

Esperança de mudança no Chile

Após a apresentação do rascunho da Constituição no início de julho, segue-se um debate da reforma constitucional. Se aprovada, ela substitui a carta magna da época ditatorial.

O texto proposto estabelece que o Estado proteja os recursos hídricos, priorizando o direito humano à água e ao saneamento. Para sua administração, seriam criados conselhos regionais e uma agência nacional da água.

Para Olivares, da Convenção Constituinte do Distrito Cinco do Chile, que inclui Illapel, a nova Constituição geraria mudanças positivas na gestão dos recursos hídricos:

“Para garantir que este mandato seja cumprido, um processo de redistribuição de vazões da bacia terá que ser realizado temporariamente”.

Olivares esclarece que a redistribuição não afetaria os pequenos agricultores, gestores comunitários de água potável e comunidades indígenas. “Com essa proposta, finalmente poderíamos restaurar o fluxo dos rios”, acrescenta.

O plebiscito será realizado em 4 de setembro, com as últimas pesquisas indicando que a nova Constituição será rejeitada. Se for esse o caso, o presidente chileno Gabriel Boric iniciará um novo processo de reforma constitucional.