Em 21 de novembro de 2018, cinco famílias foram despejadas de suas casas perto de San Fabián, comunidade na província montanhosa de Punilla, na região central do Chile. A polícia chegou sem aviso prévio para expulsar os moradores, escoltando os funcionários da construtora italiana Astaldi enquanto o maquinário pesado transformava as casas em escombros.
As ações foram conduzidas em nome do empreendimento Nueva La Punilla, projeto de reservatório multiuso — cuja finalidade é funcionar tanto como barragem hidrelétrica quanto como sistema de irrigação. La Punilla planeja inundar uma área de 1,7 mil hectares com um muro de contenção de 136 metros de altura no rio Ñuble. Se realizado, o reservatório também deve inundar partes do Corredor Biológico Nevados de Chillán-Laguna del Laja, reserva da biosfera da Unesco.
Em dezembro de 2018, os moradores obtiveram uma liminar para suspender as ordens de despejo no Tribunal Ambiental de Valdivia, uma Corte local focada em questões socioambientais, no sul do Chile. Ao mesmo tempo, foi apresentada uma ação judicial contra o projeto. Porém, em abril de 2020, o mesmo tribunal decidiu a favor da Astaldi: os magistrados concluíram que não havia ocorrido qualquer dano ambiental na área ou impacto psicossocial na população e rejeitaram as reparações reivindicadas pela comunidade.
O Ministério de Obras Públicas do Chile concedeu o projeto à Astaldi em 2016, que até teve seu estudo de impacto ambiental aprovado, mas nunca iniciou as obras: o contrato da Astaldi foi cancelado em 2021 devido a uma crise financeira na empresa e ao erro de cálculo do governo sobre a capacidade de armazenamento do reservatório. O Estado chileno terminou pagando uma indenização à Astaldi, sem divulgar o valor.
No ano passado, a administração do presidente chileno Gabriel Boric lançou uma nova licitação para a construção de La Punilla. O prazo inicial para o envio de propostas deveria ter sido encerrado no dia 19 de abril deste ano, mas foi prorrogado até dezembro. Em agosto passado, 21 empresas haviam demonstrado interesse no projeto — entre elas, cinco chinesas, como a China Harbour Engineering Company e a China Civil Engineering Construction.
Parte da população expulsa da área agora vive em alojamentos temporários, aguardando uma solução definitiva para o imbróglio.
Impactos econômicos
“Para mim, a cordilheira é minha vida, ela me deu tudo. Quando você envelhece, é difícil ser enviado para um lugar distante de onde você construiu sua vida”, diz Héctor López Benavides, criador de gado de 57 anos que vive em San Fabián desde a juventude. Naquele lugar, ele constituiu família e ganhava seu sustento criando vacas, ovelhas e cavalos. Sua casa foi a primeira a ser demolida após as ordens de despejo.
Os moradores expulsos rejeitaram o plano de realocação elaborado pelo Ministério de Obras Públicas do Chile em 2018. López diz que sua comunidade considerou insuficiente a indenização oferecida pelo governo. Meses depois, porém, ocorreram as desapropriações.
“Já se passaram cinco anos desde que fomos despejados, e tem sido difícil”, diz López. “Foi uma mudança tremenda, porque tivemos que começar do zero, sem a ajuda de ninguém para começar nossas vidas em outro lugar”.
Atualmente, López cria gado em uma fazenda na comunidade vizinha de Laguna Las Truchas, a mais de 40 quilômetros de sua antiga residência e não muito longe da fronteira do Chile com a Argentina. Sem casa e terra próprias, ele diz que se tornou inviável manter seu modo de vida a partir da mesma fonte de renda.
O produtor Iván Labrín Villalobos enfrenta o mesmo problema. Labrín tinha centenas de cabras antes da expulsão, sendo forçado a vender muitas delas; outras se perderam no caminho. Agora ele vive na casa de parentes.
López conta que o Ministério de Obras Públicas subestimou os moradores: “Acharam que éramos pessoas ignorantes da cordilheira, mas nunca permiti que nos tratassem assim”. Durante a consulta pública, o governo coletou dados sobre o rebanho de cada família para calcular as indenizações devidas pela expropriação das terras. Porém, as famílias dizem ter recebido apenas 30 milhões de pesos chilenos (cerca de R$ 160 mil) por lote de terra e 18 milhões (R$ 100 mil) por casa.
Miriam Fuentes Contreras, também desalojada junto de sua família, diz que o plano do governo não incluía compensação financeira por perda de renda — um “plano de pecuária” até foi mencionado, mas nunca se concretizou. Ela diz que a indenização não foi suficiente para que sua família mantivesse seu modo de vida. “Recusamo-nos por muito tempo a assinar o acordo pelo valor que nos ofereceram”, diz Fuentes. “Só assinamos em 2022, por necessidade”.
Labrín conta que assinou o acordo recentemente, pelo mesmo motivo. Agora, é dono de um terreno em uma encosta atrás de sua antiga casa. Ele foi informado que poderia receber uma indenização para construir uma nova casa nesse local, mas com a condição de que ele mesmo financiasse a abertura de uma estrada de acesso. “Eu não deveria ter que fazer isso”, ressalta. “Cabia a eles fazer a realocação”.
Brigas na Justiça
Após o término do contrato com a Astaldi em 2021, o Ministério de Obras Públicas assumiu o controle de La Punilla, e a ministra Jessica López anunciou a nova licitação. Os detalhes do projeto mostram que ele permaneceu praticamente inalterado desde o governo anterior, sob o comando de Sebastián Piñera (2018-2022).
A ausência de modificações no plano decepcionou líderes comunitários que esperavam um posicionamento diferente da administração Boric. “No início, tínhamos grandes expectativas com o novo governo”, diz César Uribe, porta-voz da organização Ñuble Libre, que atua em defesa do rio Ñuble. “Inclusive, conversamos com dois ministros que vieram a San Fabián”.
“O governo prometeu analisar novamente o projeto; mas, no final, nunca houve realmente uma análise”, critica Uribe.
Para o líder comunitário, a construção do reservatório de La Punilla é um erro: “Esse projeto está equivocado há muito tempo e seu modelo é completamente obsoleto para a realidade atual. Estamos falando de um projeto da década de 1960, ou seja, de quase 70 anos atrás. Ele obviamente não atende aos padrões e à realidade de hoje”.
Após os problemas com a Astaldi, a Superintendência do Meio Ambiente do Chile começou a aplicar multas por infrações ambientais relacionadas ao projeto. O expediente considera dez ações passíveis de penalização, três delas consideradas graves: a falta de atualização dos planos de realocação no prazo mínimo estabelecido, a não inclusão de questões relativas à pecuária nesses planos e a ausência de serviços de consultoria para mitigar impactos sociais no processo de realocação.
O advogado Ricardo Frez Figueroa, representante das famílias despejadas de San Fabián e diretor da organização Defensa Ambiental, diz que essas multas podem ser repassadas à empresa vencedora da licitação.
A nova empresa também precisará resolver uma questão central para a execução de La Punilla: a construção de uma nova linha de energia de 23 quilômetros que deve abastecer a rede nacional com 525 gigawatts-hora ao ano.
Embora as obras da linha de transmissão tivessem sido autorizadas no passado, o Tribunal Ambiental de Valdivia anulou as resoluções que davam sinal verde para o projeto. A decisão citou, entre os motivos, os possíveis impactos para a população de huemul, cervo endêmico do Chile e da Argentina. A região de Ñuble, da qual Punilla faz parte, é o último habitat da espécie na porção central do Chile.
Além do reservatório de Nueva La Punilla e da linha de transmissão, outro projeto que preocupa a população do entorno é a hidrelétrica Ñuble de Pasada, também conhecida como Hidroñuble. As obras da usina estão paralisadas há mais de oito anos, porque ela depende da linha de transmissão de Nueva La Punilla para abastecer a rede elétrica. Esse impasse levou várias organizações a pedir o fechamento definitivo da Hidroñuble.
Biodiversidade ameaçada
Outro grande obstáculo para a construção do reservatório La Punilla é o Corredor Biológico Nevados de Chillán-Laguna del Laja. Em 2011, a área tornou-se uma reserva da biosfera da Unesco com o objetivo de proteger o cervo huemul.
Dois biomas tornam essa área particularmente biodiversa: a mata esclerófila da região central do Chile, adaptada às condições mais secas e com centenas de espécies endêmicas ameaçadas por fenômenos como urbanização, expansão agrícola e incêndios; e o bosque valdiviano, formação semelhante a uma floresta tropical que se estende pelo sudoeste do país — e também um dos mais antigos da Terra.
Bernardo Reyes, ecologista e diretor da organização chilena Fundação Ética nas Florestas, diz que a inundação dessa área traria consequências catastróficas: “Será equivalente a uma gigantesca corrida madeireira em 1,7 mil hectares. Isso aumenta a fragmentação do habitat e fragiliza ainda mais as espécies ameaçadas”.
Reyes diz que a tendência de clima extremo torna essas áreas biodiversas ainda mais cruciais: “No Chile, temos secas e incêndios cada vez mais intensos, e esses 1,7 mil hectares ajudam a mitigar seus impactos.
Outros analistas destacam que as barragens hidrelétricas podem intensificar as crises hídricas. Pamela Poo, especialista em políticas públicas ambientais, explica que “haverá água para irrigação, mas depois começa a expansão da fronteira extrativista”. Isso é preocupante em razão da seca severa que atinge boa parte do Chile há 15 anos, afetando também a região do rio Ñuble: o Ministério de Obras Públicas declarou estado de escassez hídrica na zona desde abril do ano passado e listou uma série de medidas para lidar com o problema.
Beneficiários do projeto
Diante da seca prolongada do Chile, o projeto La Punilla tem sido alvo de discussões sobre o uso da água nas comunidades afetadas.
O Código de Águas do Chile, de 1981, separou a propriedade da água e da terra e conferiu ao Estado o controle total sobre o uso da água — ele agora pode conceder acesso à água de forma gratuita e perpétua. O código foi alterado em 2022 e depois em 2023, mas a privatização e a comercialização da água no Chile ainda representam um problema para muitas comunidades.
Alexander Pánez Pinto, professor de ciências sociais da Universidade de Bío-Bío, conduziu um estudo, ainda não publicado, sobre os detentores de direitos de uso da água no local escolhido para o reservatório em La Punilla. O Dialogue Earth teve acesso ao documento e verificou que a empresa agrícola Cruz del Sur é citada como uma das detentoras de direitos d’água, consumindo 294 litros por segundo.
Pánez acredita que o Chile criou uma “tempestade perfeita” com a superexploração das bacias hidrográficas para usos produtivos, a privatização da água e os impactos das mudanças climáticas.
Estamos no fim da linha. A empresa que vencer a licitação também comprará esse conflitoHumberto Illanes Sepúlveda, presidente da Mesa Punilla
Para Humberto Illanes Sepúlveda, presidente da Mesa Punilla, rede de 16 organizações rurais e urbanas situadas na área do projeto La Punilla, os principais beneficiários do reservatório serão aqueles que detêm os direitos sobre a água — grandes empresas como a Cruz del Sur. “A gente não recebe nada, apenas os danos”, diz ele. “Nós arcamos com as consequências”.
Em setembro de 2022, a Mesa Punilla apresentou 299 petições ao Ministério de Obras Públicas com relação ao projeto La Punilla. Os pedidos de mitigação e compensação de danos estão ligados principalmente ao uso da água, à construção de estradas e ao futuro da reserva — mas, por enquanto, seguem em avaliação.
Illanes Sepúlveda diz que o projeto tem “lacunas por toda parte” e provoca muitas dúvidas: “Ainda não temos respostas concretas, queremos segurança jurídica. Temos sido pacientes, prudentes e flexíveis, mas as pessoas já estão cansadas e não há mais confiança no Ministério de Obras Públicas. Estamos no fim da linha. A empresa que vencer essa licitação também comprará esse conflito”.
O governo da comunidade de San Fabián e o Ministério de Obras Públicas não responderam aos questionamentos da reportagem sobre o projeto.