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Como o porco se tornou uma ‘fábrica de carne suína’ na China

Antigo símbolo de prosperidade e saúde, porcos agora são criados em granjas, com graves consequências
<p>(Imagem: Vladimir Grigorev / Alamy)</p>

(Imagem: Vladimir Grigorev / Alamy)

Os porcos são elementos essenciais das atividades rurais e da cultura chinesa há milênios. Até pouco tempo atrás, as pessoas viviam em proximidade estreita com esses animais e a maioria das famílias chinesas criava alguns porcos dentro de casa ou no terreno onde moravam. Os suínos sempre foram ubíquos nas áreas rurais da China, tanto da antiga como da moderna, mas o consumo da carne de porco era um evento raro na vida de grande parte dos chineses.

Durante a era socialista (1949-1976), os porcos eram valorizados principalmente pelo esterco que produziam. Sua carne era considerada um artigo de luxo. Os porcos eram tidos em alta conta pelos chineses porque convertiam dejetos domésticos e restos industriais em nutrientes, que depois eram usados na agricultura, principalmente nas culturas de grãos. Mao Zedong chegou a descrever os porcos como “fábricas de fertilizantes sob quatro patas”.

Hoje, os tempos são outros. Os porcos e a sua relação com os humanos mudaram. As pessoas consomem cada vez mais carne suína, mas moram cada vez mais longe dos animais, que são criados em estruturas fechadas nas zonas rurais e suburbanas, bem distante dos moradores urbanos que consomem sua carne no jantar. As carnes frescas, os preparados, os processados e os embutidos suínos têm oferta ampla no mercado e são bem mais comuns de se ver do que os porcos dos quais derivam. 

Estima-se que 90-95% dos suínos da China sejam de raças importadas. Diversas espécies nativas de porco foram extintas e dezenas estão ameaçadas de extinção.

A agricultura na China sofreu um processo de industrialização abrangente durante a era da reforma (pós-1978). O porco moderno é uma máquina de carne e a produção de suínos é uma grande indústria. A China abriga metade da população mundial de porcos, que é de 1,3 milhão animais, e os chineses consomem metade de toda a carne suína produzida no planeta. A maior produtora de carne suína do mundo, a WH Group, é da China, e o país conta com inúmeras outras empresas do ramo de agronegócios, todas integradas verticalmente e globalmente competitivas. Os chineses importam quase 70% de toda a soja produzida no mundo, principalmente para alimentar seus porcos. Sua indústria de esmagamento de soja é a maior que existe. Hoje, faz sentido dizer que os porcos, na China, são uma “fábrica de carne suína sob quatro patas”.  

O antigo mutualismo entre porcos e humanos  O caminho que levou os chineses dos porcos aos suínos teve início na Idade da Pedra.

50%


dos 1,3 bilhão de porcos do mundo está na China

Evidências genéticas e arqueológicas mostram que os javalis selvagens eram domesticados na China há 8 mil ou 9 mil anos, embora a gestão humana das populações de javali provavelmente tenha começado mais cedo. A domesticação desses animais foi um processo gradual e mutualista. Os porcos eram atraídos pelas habitações humanas porque ali podiam se alimentar dos restos de comida e outros resíduos. Os humanos, por outro lado, beneficiavam-se da aproximação por terem uma fonte de carne e outros recursos, principalmente esterco. 

Na China, os primeiros ossos de porco doméstico foram encontrados no sítio arquelógico Jiahu, localizado na província Henan, e pertencem ao período Neolítico (9 mil -7,8 mil anos atrás). Na Idade do Bronze (4 mil anos atrás), os porcos eram os animais domésticos mais comuns do país e desempenhavam um papel importante na subsistência das populações, nos rituais funerários e nos ritos ancestrais. A antiga capital da Dinastia Shang, Ayang (também em Henan), importava carne suína em grandes quantidades para alimentar os moradores da cidade. Além disso, vasos especiais de bronze contendo carne suína faziam parte das festividades realizadas em cemitérios para assegurar o auxílio dos espíritos ancestrais. Milhares de objetos decorativos eram produzidos em massa a partir dos dentes incisivos dos porcos para abastecer o mercado local e o comércio de outras localidades.

Quando a China realizou seu primeiro censo, em 2 AEC, havia 60 milhões de pessoas morando no Império Han, a maioria na Planície do Norte da China e nos férteis vales dos rios. Como grande parte das terras nessas áreas era usada para a agricultura, as pessoas não podiam deixar os porcos forragearem livremente, era preciso confiná-los em chiqueiros. Os porcos acabaram sendo usados para o descarte de lixo e outros resíduos humanos. Quanto mais a agricultura se intensificava, mais importante se tornava o esterco dos porcos confinados.

A maioria das famílias criava apenas alguns porcos, que eram consumidos em ocasiões especiais. O animal era valorizado principalmente pelos nutrientes que contribuía às plantações que sustentavam a população chinesa ha milênios.

100


espécies de porco nativas foram identificadas na China


A criação e a reprodução de suínos na antiga China lançaram as bases para a incrível diversidade desses animais no país. Mais de 100 raças nativas de suínos já foram identificadas, cada uma com inúmeras linhagens e adaptações locais. Essa diversidade, no entanto, encontra-se ameaçada porque os proprietários rurais, as empresas de agronegócios e os governos valorizam algumas características em detrimento de outras. 

Raças chinesas, a base dos suínos modernos

Das épocas antigas até a era moderna, os “tradicionais” porcos chineses eram criados com uma dieta à base de plantas, com baixo teor proteico, o que tornava a sua carne bastante gordurosa. Quem já comeu o famoso prato chinês conhecido como hongshaorou (porco cozido vermelho) sabe que a gordura de porco dos pratos chineses geralmente tem uma textura bastante macia. Para a população rural da China, o alto conteúdo energético da banha de porco significa que o alimento é um artigo de luxo e importante fonte de nutrição. A carne suína era consumida principalmente durante o Festival da Primavera, sendo a banha reservada para fritar vegetais e para compor outros pratos durante o resto do ano. O produto acabou se tornando um ingrediente chave da culinária chinesa. Como a carne suína era uma iguaria consumida nos festivais, os porcos são tradicionalmente associados à prosperidade e à boa saúde na cultura chinesa. 

O caractere 家 (jia), que significa tanto “casa” como “família” em chinês, foi criado há 3,5 mil anos acrescentando o radical “telhado” ao radical “porco”, ou seja, colocando um telhado sobre a cabeça do porco. Hoje, a palavra para “carne” na China – (肉, rou) – refere-se ao porco, enquanto outras carnes precisam ser diferenciadas, como “carne bovina” (牛肉), “carne de frango” (肉), etc.

Como os porcos tendem a ter ninhadas grandes, eles estão associados à virilidade e à fertilidade na China. Quando as pessoas começaram a mantê-los confinados em currais, também começaram a reproduzi-los para que amadurecessem mais rapidamente e tivessem mais filhotes. Milhares de anos depois, o porco Meishan tem duas ninhadas por ano. São 15 leitões que atingem a puberdade em três meses. Seu ancestral, o javali selvagem, é muito menos fecundo: são quatro ou oito leitões por ano que atingem a puberdade em um período que varia entre oito e dez meses.  

Quando porcos chineses como o Meishan desembarcaram na Europa, no início da idade moderna, os produtores começaram a cruzá-los com os porcos locais, que são maiores e menos férteis, dando início a raças modernas como a Yorkshire e a Landrace. Elas agora são a principal fonte de carne suína na China e em todo o mundo.

Reformando porcos

Os 8 mil e poucos anos da história entre homens e porcos na China resumem-se à suinocultura “tradicional”. Houve tentativas de ampliar a criação desse animal durante a era socialista, mas a ideia do porco como “fábrica de carne suína” nasceu apenas quando a agricultura passou por um processo de industrialização durante a era da reforma. Foi então que a escala da produção e o consumo começaram a quebrar recordes mundiais.

As empresas chinesas adotaram o modelo de “agropecuária industrial”, desenvolvido nos Estados Unidos e na Europa nos anos 1970, e introduziram inovações para a produção industrial de carne. Até hoje, nas operações comerciais de todo o mundo, as coisas não mudaram muito: os equipamentos, os alojamentos para animais, os métodos de criação e até mesmo os porcos permanecem os mesmos. Algumas poucas raças – como a Yorkshire, a Landrace e a Duroc – são confinadas em espaços muito apertados. Praticamente imóveis, os animais recebem ração e água, vacinas e antibióticos, e seu esterco e urina são coletados periodicamente.

Esse sistema “moderno” chegou à China nos anos 1980 e foi intensificado durante os anos 1990. Hoje, o país tem um robusto setor de agronegócios, com algumas das maiores instalações industriais de suinocultura do mundo. Uma única operação comercial pode criar centenas de milhares ou mesmo milhões de suínos todos os anos.

Você sabia…


As fazendas comerciais de porcos na China criar apenas raças de porco importadas

A indústria de suínos da China também inclui milhares de granjas suínas de médio porte, com menos de 500 animais cada, e um número cada vez menor de produtores familiares que mantém dois ou três porcos para consumo próprio ou para venda. Em cada uma dessas três escalas, as raças modernas de suínos praticamente substituíram as raças nativas da China. As operações comerciais criam apenas raças importadas, enquanto as propriedades menores geralmente criam raças híbridas (importadas-nativas). Estima-se que 90-95% dos suínos da China sejam raças importadas. Diversas espécies nativas de porco foram extintas e dezenas estão ameaçadas de extinção.

O declínio da biodiversidade agrícola é uma das consequências sérias da industrialização da suinocultura. Outras consequências incluem o alastramento de doenças animais; o acúmulo de antibióticos e o florescimento de organismos resistentes a antibióticos no meio ambiente; o acúmulo de metais pesados e de hormônios para crescimento nas carnes para consumo humano; problemas de saúde relacionados à dieta, como doenças cardíacas e cânceres; a erosão dos meios de subsistência rural e dos ambientes naturais devido à poluição causada por suinocultores; e a poluição devastadora da água e do solo devido aos estoques excedentes de esterco.

Parece que a tradição chinesa de valorizar os porcos como elementos importantes dos ecossistemas agropecuários, enquanto tratam a carne suína como um ingrediente de luxo reservado para ocasiões especiais, era provavelmente a ideia mais acertada.