O Brasil bateu recorde de exportações da carne bovina no último ano impulsionada pela demanda chinesa e deve repetir o resultado em 2020. A boom vem puxado pela JBS, maior processadora de carne do mundo, que anunciou o melhor ano de sua história em 2019.
No ano passado, a JBS enviou 27,3% das exportações para a Grande China e segue expandindo seus negócios na região. Em janeiro, ela assinou com o WH Group, varejista de Hong Kong, acordo que abre as portas de 60 mil lojas chinesas.
Ambientalistas veem no cenário uma oportunidade para que a China exerça sua influência e contribua indiretamente com a redução das emissões de gases do efeito estufa, compromisso que o país assumiu no Acordo de Paris.
“Exigir a rastreabilidade da carne e não aceitar produtos associados com desmatamento ilegal é o que esperamos dos compradores chineses”, afirma Carlos Souza, coordenador do programa de monitoramento da ONG Imazon.
A perda de cobertura vegetal responde por 44% das emissões no Brasil. O momento não poderia ser mais oportuno: um aumento acentuado no desmatamento na Amazônia brasileira este ano deve levar a um período de queimadas ainda mais intenso do que o que chocou o mundo em 2019.
Mas enquanto a indústria da carne ligada ao desmatamento ilegal começa a encontrar entraves em mercados como o europeu, a China ainda não parece vislumbrar adotar a mesma política.
53,2%
O aumento das vendas de carne brasileira para a China em 2019
“O país não vai deixar de comprar carne porque existe desmatamento”, afirma o presidente da Câmara Brasil-China, Charles Tang. “Ele se preocupa com a preservação ambiental, mas não interfere nos assuntos internos dos países”.
Isso reduz a pressão por soluções sobre gigantes como a JBS, que já tem um histórico de corrupção, enfrenta denúncias por comprar de fazendas irregulares e admite deficiências no monitoramento de seus fornecedores.
A JBS diz fiscalizar por imagem de satélite seus 90 mil fornecedores diretos, mais de 50 mil deles na Amazônia Legal. Nove mil fazendas já foram barradas por situação irregular.
Uma auditoria independente da DNV, contratada pela JBS em 2019, concluiu que todos os fornecedores diretos na Amazônia cumprem critérios socioambientais. A avaliação foi realizada por amostragem e não incluiu os fornecedores indiretos.
Ou seja, a empresa não sabe precisar onde sua cadeia de produção de fato começa. Nem sempre os pecuaristas se envolvem no ciclo completo, desde o nascimento ao abate do boi. Há casos em que uns se encarregam da criação e outros da engorda do animal.
“O setor ainda não conseguiu lidar com o problema do fornecedor indireto”, afirma Erasmus zu Ermgassen, pesquisador-chefe da plataforma Trase, um esforço independente para contornar a falta de transparência da pecuária brasileira.
Ermgassen reconhece esforços empreendidos pela indústria, mas diz que ela “tem demorado a adotar soluções” e que hoje monitora apenas “a ponta do iceberg”.
Uma opção seria taguear os animais, modelo empregado no Uruguai e na União Europeia, mas usado em apenas 2% do gado brasileiro. Ou rastrear a movimentação do gado através do guia de trânsito animal (GTA), documento obrigatório no Brasil.
A JBS diz investir em quatro projetos paralelos para rastrear os fornecedores indiretos, incluindo o rastreamento por GTA, e prevê uma solução no médio prazo
Gado e soja no Brasil: desmatamento crescente
Gado e soja (alimento do boi) são os que mais pressionam as fronteiras do Cerrado e Amazônia. Em 2019, o desmatamento do Cerrado teve leve desaceleração, enquanto que o da Amazônia foi recorde. Na região, 80% das áreas desmatadas são pastagens.
Este ano, a destruição segue acelerada na Amazônia, segundo dados do governo federal e da Imazon. As queimadas e o corte de árvores ocorrem em geral no período seco, a partir de maio. Mas a curva ascendente começou mais cedo.
“É preocupante, porque neste primeiro trimestre de 2020 estamos num ritmo de aumento mesmo no período de chuvas”, comentou Carlos Souza. “Se continuar a tendência, devemos fechar o calendário com um aumento em relação ao ano anterior”.
Em 2019 o número de multas aplicadas por desmatamento ilegal foi o menor em 15 anos.
O desmatamento não ameaça apenas florestas e o balanço climático, mas a própria produtividade agrícola brasileira. “A Amazônia é responsável pela maior parte das chuvas na região produtiva do sul do Brasil, enquanto vários rios se originam no Cerrado”, ressalta Nathalie Walker, diretora do setor de Florestas Tropicais e Agricultura da ONG NWF.
A retórica anti-ambiental do governo federal aprofunda a crise. Em 2019, o número de multas aplicadas pelo Ibama, órgão público de proteção ambiental, por desmatamento ilegal foi o menor em 15 anos. Com o coronavírus, Souza diz que a fiscalização está ainda menor.
Uma das principais ações contra a devastação provocada pelo gado foi a assinatura de um termo de ajustamento de conduta, o TAC da Carne, em 2009. Na ocasião, vários frigoríficos do Brasil se comprometeram a não comprar gado de áreas desmatadas ilegalmente.
Um década depois, o Ministério Público Federal do Pará informou que nenhuma empresa compradora da Amazônia pode se certificar de que seu gado está livre de desmatamento.
Tripé da carne
Em dezembro, 50 organizações alertaram para a fraqueza da fiscalização de intermediários da JBS e da segunda gigante do setor, a Marfrig, cujo lucro foi mais modesto em 2019, mas também impulsionado pela demanda chinesa. Ela é a que mais tem plantas habilitadas na América do Sul para exportar à China —13 no total.
Assim como a JBS, a Marfrig adota a fiscalização por satélite e contrata a DNV, que há sete anos não encontra irregularidades nos fornecedores da multinacional. Desde 2013, a Marfrig solicita dados de vendedores indiretos a seus fornecedores, mas a auditoria aponta que eles “não são verificados de forma sistemática”. Metade das compras de gado da Marfrig viriam de intermediários.
A Minerva Foods, que também lucrou a partir do mercado chinês, é a terceira perna do tripé da indústria da carne no Brasil. Juntas, o trio responde por dois terços das exportações.
A Trase estimou o risco de desmatamento a que empresas exportadoras estão expostas – avaliado a partir da região onde o gado é criado. A JBS tem 36% do risco total de desmatamento para as exportações de carne bovina, uma vez que grande parte vem da Amazônia. Marfrig e Minerva acumularam em torno de 15% do risco total.
A Minerva monitora seus oito mil fornecedores diretos na Amazônia, mas também reconhece o gargalo para rastrear a cadeia completa. Ela avalia implementar a Visipec, uma ferramenta de cruzamento de dados criada pela Universidade de Wisconsin e o NWF.
Nathalie Walker diz que a Visipec está disponível gratuitamente a todos os frigoríficos brasileiros. A plataforma rastreia fornecedores indiretos de três estados da Amazônia Legal e está sendo expandida.
Risco chinês
O chinês consome menos carne do que americanos, europeus e brasileiros. Mas seu aumento da renda vem mudando esse hábito, e a peste suína na Grande China acelerou a busca por mercados no exterior. Assim, o Brasil expandiu em 53,2% as vendas à região em 2019.
O mercado brasileira ainda consome 75% de sua carne, embora dê sinais de retração. Enquanto isto, a demanda chinesa aquecida alerta ambientalistas.
A Trase concluiu que em 2017 a produção enviada à Hong Kong estava vinculada a 27% do risco de desmatamento de todas as exportações. O risco da China continental estava em 7%, mas tem aumentado.
Em 2019, a região licenciou dezenas de novos frigoríficos para exportação, sendo pelo menos 14 na Amazônia Legal. De 4,1% a 6,5% do gado da Amazônia segue para a China.
“Os dados do Trase confirmam que esses frigoríficos têm um risco de desmatamento muito maior do que os que anteriormente abasteciam a China continental”, explicou Ermgassen.