Alimentos

Exportações de melão intensificam disputas por água no Brasil

Grandes produtores querem expandir produção para atender a mercado chinês, mas precisam abrir poços em profundidades onde pequenos agricultores não alcançam
<p>Projeto de agricultura familiar em Juazeiro, na Bahia. Além de ser popular no mercado interno, o melão também é uma das frutas mais exportadas pelo Brasil (Imagem: <a href="https://flickr.com/photos/codevasf/34063930810/in/album-72157680285399523/">Frederico Celente</a> / <a href="https://flickr.com/photos/codevasf/">Codevasf</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/">CC BY</a>)</p>

Projeto de agricultura familiar em Juazeiro, na Bahia. Além de ser popular no mercado interno, o melão também é uma das frutas mais exportadas pelo Brasil (Imagem: Frederico Celente / CodevasfCC BY)

Em vez do sabor suave e adocicado do melão, um gosto amargo toma conta da memória do agricultor Francisco Edilson Neto, de 65 anos, ao lembrar de sua primeira experiência com a fruta. “O melão conseguiu destruir o sonho de muita gente”, lamenta.

Edilson fazia parte de um grupo de cerca de cem agricultores que viviam e trabalhavam em Apodi, no Rio Grande do Norte. Cultivavam de forma agroecológica o famoso arroz vermelho, típico da região, assim como feijão, hortaliças e algumas frutas. Tudo era produzido em mutirão para o consumo das famílias. O que sobrava ia para as feiras do município.

Na Chapada do Apodi, um trecho de solo fértil que se estende por municípios do Ceará e do Rio Grande do Norte, as coisas começaram a mudar com a chegada de grandes produtores de melão na virada dos anos 1990 para os 2000.

Os agricultores familiares decidiram investir na fruta, na esperança de aumentar sua renda. “O lance era plantar melão para exportar”, lembra Edilson. Já naquela época, a fruticultura para exportação não era uma aposta segura para peixes pequenos. Ele conta que buscaram um empréstimo no banco para implementar a ideia, dívida que eles teriam dificuldade para pagar e que causou divisões irreconciliáveis no grupo.

former melon farmer Francisco Edilson Neto
Brazil: A meeting at the headquarters of a union of small farmers, to discuss the impact of fruit farming on family farms
Edilson relembra como a experiência malsucedida com o melão dividiu pequenos produtores da Chapada do Apodi. Em setembro de 2022, eles se reuniram na sede de seu sindicato para discutir o impacto da fruticultura na agricultura familiar (Imagem: Raquel Torres / O Joio e O Trigo, CC BY NC ND)

Na época, as abordagens agroecológicas e em escala comunitária eram tidas como atrasadas. “Doeu muito quando a gente viu esse sonho se destruir. Mas, no meio dessa luta, nasceu outra luta, e a gente veio pelo sindicato”, diz Edilson, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi.

Encontramos Edilson na sede do sindicato, em setembro de 2022. Camponeses da região se reuniram por três dias para discutir os impactos da fruticultura de exportação em uma região com tradições ligadas à agroecologia e à agricultura familiar.

Com maior disponibilidade de água no lado potiguar da Chapada, Apodi e outras cidades próximas estão se tornando campo de batalha entre o agronegócio fruticultor e comunidades camponesas — com suas visões opostas sobre o uso do território e dos recursos naturais. É uma disputa por modos de vida e produção e pelo acesso ao bem mais valioso do semiárido nordestino: a água.

Primeira fruta fresca brasileira a chegar à China

Em novembro de 2019, longe do sertão, Tereza Cristina, então ministra da Agricultura, selou um acordo comercial considerado “histórico” para os exportadores de frutas, sob os olhares do então presidente Jair Bolsonaro e do homólogo chinês, Xi Jinping.

Naquele ano, a China liberou a importação de melões brasileiros, nossa primeira fruta fresca a ter acesso ao mercado chinês. A primeira carga do Brasil chegou a Xangai em setembro de 2020.

Brazil’s former agriculture minister Tereza Cristina and China’s former foreign minister Wang Yi conclude an agreement to open the Chinese market to Brazilian melons, at a meeting during the 2019 BRICS summit in Brasília (Image: Isac Nobrega / Brazil's Presidency)
Ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o ex-ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, assinam acordo para abrir o mercado chinês aos melões brasileiros, em reunião na cúpula dos Brics de 2019, em Brasília (Imagem: Isac Nobrega / Presidência do Brasil)

 A China é o maior produtor e consumidor de melão do mundo e tem aumentado substancialmente suas importações de frutas nas últimas décadas, período em que também consolidou sua posição como o principal parceiro comercial do Brasil.

O melão vem abocanhando uma fatia cada vez maior das exportações do setor agrícola brasileiro e, nos últimos anos, passou a figurar entre as frutas mais exportadas do país, atrás apenas da manga. Os principais destinos são a União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos, mercados já consolidados para as frutas brasileiras.

A entrada da China nesse tabuleiro pode aumentar a pressão sobre regiões como a Chapada do Apodi, aprofundando os impactos de um modelo que garante segurança hídrica para o agronegócio, mas impõe cada vez mais dificuldades a pequenos agricultores como Edilson e a comunidades tradicionais que produzem alimentos agroecológicos.

Empresa líder estima dobrar produção de melão

Para fornecer melão à China, o Brasil precisará dobrar os atuais 20 mil hectares de área dedicados à cultura, de acordo com estimativas “conservadoras” de Luiz Barcelos, sócio da Agrícola Famosa, maior produtora e exportadora de melões do Brasil e uma das maiores do mundo.

“A China planta 430 mil hectares de melão por ano, o Brasil planta apenas 20 mil — ou seja, eles plantam 20 vezes mais do que nós”, disse Barcelos em uma entrevista à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. “De forma muito conservadora, acho que nos próximos cinco anos temos condições de dobrar nosso plantio de melão”.

Após o acordo, o Brasil exportou cerca de 200 toneladas de melão para a China entre 2019 e 2022, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Ainda é um volume pequeno, que arrefeceu diante das interrupções logísticas durante a pandemia de Covid-19 e do aumento do preço dos fretes aéreos e marítimos. A maior parte dessas exportações saiu do Rio Grande do Norte por caminhão, com destino ao porto paulista de Santos, de onde foram embarcadas para Xangai.

Como uma empresa líder no mercado, a Agrícola Famosa poderia se tornar uma importante fornecedora de melões para os chineses. Hoje atende aos mercados britânico, holandês, alemão, italiano, português e espanhol.

Não é a única: há outras empresas de grande porte, inclusive de capital internacional, que fornecem melão e outras frutas aos mercados externo e interno. Elas estão localizadas principalmente no Rio Grande do Norte e no Ceará, estados que respondem por cerca de 70% de todos os melões produzidos no Brasil. Mais da metade dessa produção é destinada à exportação.

A Agrícola e outros grandes produtores de frutas cultivam no meio da Caatinga, num território contíguo aos dois estados, uma terra fértil que se estende até o litoral cearense. O clima quente e seco, a predominância de sol o ano todo e a falta de chuva oferecem condições ideais para a produção de frutas de modo geral — e do melão em particular.

Ao contrário do que parece, há abundância de água nesse bioma — água encontrada em reservatórios subterrâneos conhecidos como aquíferos. Os melões da região são altamente dependentes desse recurso: desde o plantio das mudas até a colheita, um quilo da fruta consome cerca de 200 litros de água.

As águas dos aquíferos Jandaíra e Açu estão quase esgotadas, principalmente para a produção de melão e melancia, mas também para mamão, banana e goiaba em menor escala.

Poços mais do que dobraram em oito anos

Fundada em 1995 por Barcelos e seu sócio Carlos Porro, a Agrícola Famosa hoje produz frutas em 30 mil hectares espalhados por 16 fazendas, uma área seis vezes maior do que quando as operações começaram.

De cada dez melões produzidos pela empresa, sete são destinados ao mercado internacional. Quatrocentos contêineres carregados de melões são despachados toda semana. Por isso, a Agrícola Famosa se autointitula a maior produtora e distribuidora mundial de melões e melancias. Em 2021, a companhia ampliou sua participação internacional por meio de novas operações e parcerias na Espanha e no Reino Unido — maior consumidor dos melões brasileiros.

Melon fields in one of Agrícola Famosa’s farms in Ceará state. (Image: Raquel Torres / O Joio e O Trigo, CC BY NC ND)
Cultivo de melões em uma das unidades da Agrícola Famosa, no Ceará (Imagem: Raquel Torres / O Joio e O Trigo, CC BY NC ND)

Mas a principal expansão da empresa passa despercebida. Em oito anos, a Agrícola Famosa passou de quatro para 21 poços profundos, com 400 a 800 metros de profundidade cada, para abastecer suas fazendas. O número de poços rasos, com até 400 metros de profundidade, mais do que dobrou nesse período, passando de 250 para 582 atualmente, de acordo com dados da empresa.

A Agrícola Famosa está entre os maiores consumidores de água do Ceará — ao lado de outras grandes fruticultoras. Em 2022, a empresa obteve autorização para usar quase dez milhões de metros cúbicos de água, segundo cálculo feito pelo geógrafo Diego Gadelha, pesquisador do tema e professor do Instituto Federal do Ceará, com base nas outorgas expedidas pelo governo cearense.

“Há uma multiterritorialização na presença da fruticultura”, diz Gadelha. As empresas de frutas, acrescenta ele, “seguem a água”.

Para se ter uma ideia, dez milhões de metros cúbicos seriam suficientes para abastecer os 244 mil habitantes dos municípios da Chapada do Apodi com 110 litros de água por dia, quantidade mínima recomendada para consumo e higiene, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Avanços nos aquíferos Jandaíra e Açu

Em 2012, o Ceará começou a passar por um período de seca que durou oito anos, sendo que o volume de água que sai do aquífero é muito maior do que a da recarga, explica Gadelha. “Então o aquífero vem apresentando déficit ano após ano pela expansão da produção, da área plantada, e sobretudo, sobreposto a isso, o período de seca”.

No lado cearense da Chapada do Apodi, o melão e outras frutas deixaram um rastro de desertificação, especulação de terras, desemprego e dificuldades para os agricultores acessarem o lençol freático. “Eram três mil hectares de melão”, lembra o pesquisador. “Todo esse distrito incha por causa da fruticultura, na época da safra eram três mil trabalhadores. Houve crescimento desordenado. As empresas vão embora, e esse distrito foi à falência”.

Middle-class consumers in the Chinese market present an exciting opportunity for Brazilian exporters, to add to their existing success in European and US markets (Image: Eduardo Maida / Flickr,  CC BY-NC)
Classe média chinesa representa uma excelente oportunidade de mercado para produtores brasileiros de melão, além do sucesso que a fruta faz na Europa e nos Estados Unidos (Imagem: Eduardo Maida / FlickrCC BY-NC)

Desde então, as grandes monoculturas de melão e melancia se deslocaram para o Rio Grande do Norte, onde há pelo menos três barragens, além de acessar os aquíferos Jandaíra e Açu, que têm maior disponibilidade hídrica.

“A água do calcário Jandaíra é uma água com teor de sal elevado. Ela é misturada com a água do Arenito Açu, e passa a ser uma água adequada para melão e melancia”, explica o agrônomo Josivan Barbosa, professor e ex-reitor da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa). Enquanto o Jandaíra está mais próximo da superfície, o Açu está a cerca de mil metros de profundidade e tem água doce, própria para o consumo humano.

Um tesouro para poucos que podem acessá-lo. Quanto maior a profundidade, mais caro se torna a prospecção de um poço, algo na casa de alguns milhões de reais. Trazer essa água para uso em irrigação também não é barato, pois o bombeamento depende de eletricidade.

São 35 dias de navio. A fruta não aguenta
Josivan Barbosa, agrônomo

Josivan Barbosa diz que as expectativas de exportar melões do semiárido para a China ainda “estão mais no campo político”.

“Não tem água. Para justificar a frequência do navio, teria que ter mais dez mil hectares, certo? Isso representa 50% a mais da área plantada hoje. Não tem água para isso”, avalia Barbosa. E esse, diz, é um dos pontos cruciais para viabilizar as exportações — o outro é a logística. “São 35 dias de navio. A fruta não aguenta. Precisaríamos de material genético com uma vida útil pós-colheita muito longa, de 40 a 45 dias. Ainda não temos isso”.

Mas a água não parece ser uma preocupação para grandes empresários. Em novembro passado, empresários do setor se reuniram com o vice-presidente Geraldo Alckmin, ainda na transição do governo eleito. Eles representavam a recém-criada Rede Nacional de Irrigantes, presidida por Luiz Barcelos, da Agrícola Famosa, e a Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas. Na pauta do encontro, estava o aumento das áreas irrigadas, os chamados perímetros, e a abertura de novos mercados.

Ar poluído por agrotóxico

Bem longe dos gabinetes com ar-condicionado onde são firmados acordos comerciais e diplomáticos, e mais distante ainda da China, Miguel*, de 58 anos, tem perdido o sono por causa do melão. Não se trata apenas de uma figura de linguagem: conforme se aproxima a época da safra, são noites mal dormidas no assentamento em Apodi onde ele e outras 40 famílias vivem.

“À noite, a gente acorda com o nariz queimando”, diz Miguel sobre a aplicação de agrotóxicos. “Passam a noite todinha banhando a lavoura. É quando a gente começa a sentir esse ardor no nariz”, conta o agricultor, um homem matuto, de rosto vincado, cabelos grisalhos e aparência pelo menos dez anos mais velho.

Há seis anos, o melão tornou-se um vizinho incômodo. Foi neste mesmo período que o Brasil conquistou, ano após ano, resultados notáveis nas exportações de frutas. Os cultivos foram se aproximando cada vez mais de sua propriedade, onde cria cabras, ovelhas e abelhas, além de um pequeno roçado para subsistência.

“Aquele ar livre que a gente antes poderia ter, deitar no alpendre e ver aquele ar livre, hoje a gente não tem mais”, lamenta Miguel. “No lugar do ar, a gente sente poeira contaminada ou veneno”. Apenas duzentos metros separam a casa dele dos campos de melão da Agrícola Famosa.

Miguel também fala com pesar sobre o baixo desempenho das abelhas que ele maneja há alguns anos e que representam uma parte importante de sua renda.

Melons depend on bees for pollination. Agricola Famosa reportedly maintains 6,500 beehives to support its production, using exotic species
Melões dependem das abelhas para a polinização. A Agrícola Famosa diz manter 6,5 mil colmeias para apoiar sua produção, usando espécies exóticas (Imagem: Raquel Torres / O Joio e O Trigo, CC BY NC ND)

“As abelhas antes eram muito fortes no verão. Hoje chega o inverno e as chuvas, e as abelhas estão fracas. Para recuperar dá muito trabalho”, lamenta. Ele estima que apenas no ano passado os apicultores de sua comunidade perderam cerca de um terço das abelhas e da produção de mel.

Miguel e praticamente todas as famílias assentadas têm parentes que trabalham na Agrícola. Embora os impactos da aproximação dos cultivos sejam intensamente discutidos, ninguém tem coragem de se expor. Por esse motivo, ele só aceitou falar desde que não revelássemos sua verdadeira identidade.

Nos picos de safra, são nove mil trabalhadores apenas na Agrícola Famosa. Isso dá uma ideia do poder econômico — e, portanto, político — que a empresa exerce em cidades rurais onde há pouca ou nenhuma geração de empregos. “A entrada das empresas mudou muita coisa”, diz Miguel. “Tem alguns pontos positivos, mas quase todos são negativos. O positivo hoje é o emprego em nosso município. É a única coisa positiva que vejo. Mas, em compensação, somos atingidos por muita coisa ruim para a nossa saúde e nossa comunidade”.

Os casos de Edilson e Miguel, assim como o avanço dos melões da Agrícola, ilustram apenas alguns dos impactos da fruticultura em larga escala. Embora o discurso oficial seja o do desenvolvimento e da geração de emprego e renda, pouco alterou a estrutura de poder em relação a quem acessa água e terra.

Água segue caminho do poder

O Brasil exporta melões há 40 anos. Nesse período, o país atravessou crises econômicas e políticas, uma nova moeda surgiu, empresas de frutas foram à falência, mercados compradores criaram novas exigências e a tecnologia de irrigação e o melhoramento genético da fruta avançaram muito. O Brasil se consolidou no mercado global de frutas.

Mas o pensamento da elite econômica rural mudou pouco desde então, como observa Josivan Barbosa, da Ufersa: “Quando você pega o empresariado da agricultura irrigada aqui, é mais ou menos o mesmo pensamento dos empresários de grãos e carnes. Eles têm esse entendimento de que realmente o trabalhador rural não precisa desse apoio todo que recebe hoje”.

Mesmo com todo o rearranjo produtivo, econômico e político vivenciado em quatro décadas, a água no semiárido continua seguindo o caminho do poder econômico. Naquela época, a Mossoró Agroindustrial, ou Maísa — um outrora próspero complexo agroindustrial criado na década de 1960 com incentivos estatais, crédito subsidiado, investimentos em infraestrutura e projetos de irrigação — já produzia melões e outras frutas com a água do aquífero Açu. A empresa chegou a ter 11 poços profundos de 400 a 500 metros de profundidade, graças à facilidade em obter crédito de bancos públicos e ao fato de ter, em sua própria estrutura, especialistas em perfuração de solo.

Hoje, essa é a fonte de água que está em disputa para sustentar a potencial demanda chinesa. Mas não é a única — há prospecção de novos recursos hídricos para a produção de frutas em estados como Piauí e Maranhão. Assim, Barbosa questiona: “A pergunta central aqui é: vamos usar indiscriminadamente essa água, que é para o consumo humano, para a irrigação?”.

O Joio e o Trigo tentou entrar com contato com a Agrícola Famosa, mas a empresa não respondeu aos questionamentos.

*Nome alterado para proteger a identidade da fonte.

Este artigo foi publicado originalmente no Joio e o Trigo. Esta versão editada é publicada com autorização — as imagens originais só podem ser replicadas junto ao textoMaíra Mathias colaborou com a reportagem.