Na cúpula COP15, realizada no Canadá em dezembro do ano passado, 195 países firmaram um acordo para reverter a perda de biodiversidade global. Das oito milhões de espécies de animais e plantas conhecidas no mundo, um milhão está ameaçada de extinção. Por isso, a conferência reconheceu a importância de atacar o problema pela raiz: o mau uso do solo, a superexploração dos biomas e as mudanças climáticas.
Um dos compromissos da COP15 prevê reduzir pela metade, até o final da década, o excesso de nutrientes perdidos no meio ambiente e o “risco geral” do uso de pesticidas e outros agrotóxicos altamente perigosos.
Para alcançar esse objetivo, seria necessária uma mudança estrutural nos sistemas agrícolas e alimentares globais, geralmente caracterizados pelos enormes desequilíbrios entre países produtores e consumidores. Boa parte da agricultura mundial consiste em monoculturas de larga escala, muitas vezes com variedades geneticamente modificadas criadas pelos mesmos países que produzem os pesticidas. Essas culturas impactam a biodiversidade — principalmente quando as florestas e outros ecossistemas naturais são desmatados para dar lugar às lavouras.
A agroecologia é uma alternativa para evitar a superexploração do solo. As técnicas priorizam variedades nativas e conhecimento local; e minimizam ou eliminam o uso de agrotóxicos. O controle de pragas e doenças é feita a partir de microrganismos, fungos, minerais e as próprias plantas.
“O primeiro ano é mais difícil. Muitas vezes, o solo está morto devido ao uso de agrotóxicos”, diz Ítalo Choque Baldiviezo, membro da União dos Trabalhadores da Terra (UTT), organização que reúne 22 mil famílias de pequenos agricultores da Argentina.
“A partir do segundo ano, os produtos se tornam mais graúdos e rendem mais. Um ecossistema surge na volta: aumentam os biofertilizantes, as flores e a biodiversidade. Você não precisa mais trabalhar tanto na terra, apenas fazer o rodízio das culturas”, explica Choque.
Desequilíbrio do modelo agrícola
Mais da metade dos pesticidas usados globalmente são herbicidas, para combater as ervas daninhas. Já os inseticidas correspondem a 30%; e os fungicidas, a 17%. Boa parte deles “deteriora a saúde humana, a biodiversidade, a água e o solo”, segundo o Pesticide Atlas de 2022. O relatório aponta ainda que grandes multinacionais como Bayer, BASF e Syngenta exportam produtos proibidos em seus próprios territórios. É o que se vê no Brasil: quatro dos dez pesticidas mais usados no país não podem ser comercializados legalmente na Europa. Enquanto a Europa usou 468 mil toneladas de agrotóxicos em 2020 — redução de 0,2% em relação a 1999 —, a América do Sul usou 770 mil toneladas, um aumento de 119% no mesmo período.
Alguns pesticidas já são conhecidos pelo nome: o glifosato, “provavelmente cancerígeno” segundo a Organização Mundial da Saúde; o paraquat, considerado altamente tóxico para a saúde humana; a atrazina, um desregulador hormonal; e os neonicotinoides, tóxicos para as abelhas. Os efeitos da exposição a essas substâncias incluem erupções cutâneas e ardência nos olhos, fadiga, dores de cabeça e dores no corpo. Como os compostos são derramados no solo, escoados pela água ou transportados pelo ar, também chegam aos alimentos.
Casos mais graves de envenenamento por agrotóxicos podem levar à insuficiência cardíaca, pulmonar ou renal. Os pesticidas também podem provocar doenças crônicas, como mal de Parkinson ou leucemia infantil, de acordo com o Pesticide Atlas. Além disso, os agrotóxicos estão associados a um maior risco de desenvolver câncer de fígado e de mama, diabetes, asma, alergias, partos prematuros e problemas de crescimento.
Todos os anos, 385 milhões de pessoas adoecem devido à contaminação por pesticidas — 95% delas no hemisfério sul, diz o Pesticide Atlas. Na América do Sul, os agrotóxicos são usados com pouquíssimas restrições — e geralmente com foco em produtos de exportação. Um relatório da organização Fian Brasil, especializada em alimentação humana, diz que “o setor agroexportador goza de absoluta impunidade” no Paraguai graças à conivência de agências governamentais. No país, cerca de 94% das áreas cultivadas são voltadas para a exportação. Enquanto isso, 70% dos alimentos do país são importados.
Os desequilíbrios causados pelo domínio das monoculturas também promovem o surgimento de ervas daninhas e insetos resistentes aos agrotóxicos — o que, por sua vez, demanda a criação de novas variedades de sementes e um uso mais intensivo de pesticidas. O desmatamento também provoca a redução nas populações de aves, borboletas e abelhas, polinizadores essenciais para muitos ecossistemas e lavouras.
Temos uma alta dependência de produtos químicos. Não é fácil substituir por outras formas de manejo.Claudio Dunan, diretor de estratégia do Grupo Bioceres
A crença de que os pesticidas são indispensáveis para a agricultura, bem como a falta de coordenação para avançar rumo a modelos alternativos, criam condições para perpetuar a fome, a desnutrição e a contaminação de alimentos na América Latina, diz a Fian.
Representantes do agronegócio acreditam que uma mudança em larga escala ainda deve demorar. “Temos uma alta dependência de produtos químicos. Não é fácil substituir o grande volume de nutrientes que as plantações precisam por outras formas de manejo”, diz Claudio Dunan, diretor de estratégia do Grupo Bioceres, autorizado a produzir na Argentina a primeira variedade de trigo transgênico do mundo. “É necessário aumentar a produtividade por hectare para que o desmatamento não avance mais”, acrescenta Dunan.
Solução agroecológica
Limitar o impacto dos pesticidas por meio da fiscalização é apenas parte da solução. Já a agroecologia é uma das opções mais promissoras para avançar rumo a um modelo agrícola sustentável.
No Brasil, o Grupo Associado de Agricultura Sustentável (GAAS) promove a produção de insumos biológicos por meio de uma rede de produtores de soja, milho, feijão e trigo, além de especialistas em gestão sustentável. “Há fungos e bactérias que ajudam no controle de pragas e podem substituir os pesticidas nas lavouras”, explica Pablo Hardoim, assessor técnico do GAAS.
Seus 700 membros, que cobrem mais de três milhões de hectares, trabalham com micro-organismos, uma mistura de plantas de cobertura do solo e “pó de rocha”, um mineralizador que repõe os nutrientes e rejuvenesce os solos antigos. Graças a essas práticas de gerenciamento, o uso de fertilizantes sintéticos foi reduzido em 60% entre os membros e os custos caíram em cerca de um terço.
Hardoim reconhece que é difícil substituir os produtos sintéticos nas lavouras de plantio direto, embora ressalte que “é possível fazer agricultura sem eles”. Com ferramentas menos prejudiciais ao meio ambiente, diz ele, “talvez não seja possível alimentar o mundo inteiro, mas a produção de café ou frutas cítricas pode ser igual ou maior sem alternativas industriais”.
Na Argentina, a UTT reúne famílias que produzem frutas, legumes, grãos e laticínios agroecológicos. A entidade coordena uma consultoria técnica envolvida na produção e na gestão de insumos com o apoio de pessoal especializado entre os próprios produtores.
Para preparar o solo, as famílias começam com o bokashi, adubo orgânico de origem japonesa produzido por fermentação de microorganismos. O composto acelera a degradação da matéria e eleva a temperatura do solo, eliminando patógenos. “Ele usa esterco, melaço e carvão. Podemos produzir de 50 quilos a uma tonelada”, diz Ítalo Choque Baldiviezo, da UTT.
“Um tomate produzido com fertilizantes sintéticos pode ser reluzente, mas tem gosto de plástico”, diz Baldiviezo. “Embora não sejam tão vistosos, os da agroecologia têm mais sabor e textura”. Os métodos agroecológicos também podem ser aplicados a sistemas extensivos, diz ele. Em testes bem-sucedidos com milho e trigo, produtores aplicaram fungicida orgânico e preparações próprias para controle de insetos. A colheita foi vendida para uma fábrica local de alimentos.
O Uruguai também avança no uso de insumos biológicos. “São passos em direção ao futuro que avançam a um ritmo cada vez mais rápido”, avalia Sebastián Viroga, coordenador nacional do Projeto Pesticidas, iniciativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, em entrevista ao Dialogue Earth no ano passado.
Algumas dessas inovações são as cápsulas de vespas que combatem as pragas da soja e um produto à base de fungos contra as formigas-cortadeiras, capazes de destruir uma quantidade de capim equivalente ao consumo de um bezerro.
“Todos os produtores relataram impactos positivos”, conta Viroga. “As pequenas e médias propriedades tiveram mais benefícios do que a agricultura extensiva, mas quase todas mostraram resultados iguais ou melhores do que com produtos sintéticos”.
O tema também parece avançar na esfera política. Um projeto de lei já tramita na Câmara de Deputados para que a agricultura do país use métodos “ecologicamente seguros, higienicamente aceitáveis e economicamente viáveis”. Isso inclui o uso de insumos biológicos.
Soluções parciais
Embora elogie as experiências agroecológicas na América do Sul, um artigo do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento defende que os insumos biológicos não implicam no abandono imediato dos atuais modelos de agricultura industrial. Segundo o documento, isso se deve ao alto volume de receitas geradas pelas exportações.
Mas algumas práticas mistas já são usadas por produtores que desejam aderir à agroecologia e empresas que buscam diversificar seus portfólios. Conforme Pablo Hardoim, do GAAS, há uma mudança na estratégia das multinacionais agrícolas. Essas empresas, diz ele, deixaram de ser meras fornecedoras de produtos para se tornarem prestadoras de serviços — como o uso de drones agrícolas ou aplicativos de inteligência artificial, vendidos como métodos mais sustentáveis para melhorar a eficiência das lavouras.
Embora isso pareça alinhado com a décima meta da COP15 — um manejo agrícola que faça um uso sustentável da diversidade biológica —, essa nova estratégia não pode colocar na mesma prateleira ambos os sistemas de produção. Tolerar o uso de agrotóxicos, mesmo que com algumas restrições, ainda representa uma ameaça para a saúde humana e do planeta.
A incorporação parcial de insumos biológicos vem como uma resposta às crescentes demandas de países europeus, mas uma transição fracassada ou mesmo incompleta na América do Sul poderia gerar os efeitos temidos pela cúpula em Montreal — a destruição da biodiversidade.