No início deste ano, a pandemia do coronavírus afetou a produção de carne bovina em todo o mundo, ao adoecer trabalhadores e até provocar o fechamento de fábricas temporariamente. Na América do Sul, foram relatados surtos em frigoríficos no Brasil e na Argentina, enquanto trabalhadores no Uruguai entraram em greve.
Assim que as operações começaram a se normalizar, os produtores precisaram encarar um novo desafio quando as autoridades chinesas começaram a detectar o coronavírus em peças de carne importadas.
A última onda destes relatos ocorreu em novembro, quando várias cidades chinesas disseram ter encontrado o vírus em carne bovina proveniente do Brasil, Bolívia e Argentina. Uma série de relatos similares durante este período resultou na suspensão temporária das exportações de nove fábricas de processamento no Brasil e sete na Argentina.
58%
das exportações de carne bovina do Brasil vão para a China
Além das proibições, as autoridades chinesas também impuseram exigências rigorosas de testes que prejudicaram o comércio e criaram incertezas tanto para fornecedores quanto para importadores. A questão não se limita à América do Sul, uma vez que a China encontrou coronavírus em mais de 40 lotes de amostras de carne de mais de uma dúzia de países. Além da carne bovina, o país também afirma ter encontrado o vírus em camarões do Equador, peixes brancos da Índia e Myanmar, salmão da Noruega, caranguejo do Chile e lula da Rússia, entre outros.
Recentemente, porém, os parceiros comerciais começaram a reagir a alegaram que as preocupações são infundadas, além de denunciarem o impacto negativo sobre o comércio e questionarem se haveria outros motivos para o bloqueio além do que foi dito oficialmente pelo governo chinês.
Preocupação crescente entre os produtores sul-americanos de carne
Nos últimos anos, a China tornou-se o maior comprador de carne bovina da América do Sul, representando cerca de 75% e 58% das exportações da Argentina e do Brasil, respectivamente. Embora o comércio tenha permanecido robusto durante a pandemia, os produtores estão preocupados com o aumento do escrutínio e testes das autoridades chinesas sobre a carne importada.
As medidas implementadas pela China incluem “eliminação completa” e “pronta recusa de entrada” de qualquer produto suspeito de ter tido contato com o vírus. Os exportadores cujos produtos apresentam um teste positivo são banidos por uma semana, com possibilidade de prorrogação em até um mês caso o exportador já tenha recebido pelo menos três notificações . Além disso, no início de novembro, o Conselho de Estado, o mais alto órgão administrativo do governo chinês, estabeleceu um plano exigindo medidas abrangentes de desinfecção para alimentos importados antes que os trabalhadores sejam expostos durante o manuseio.
Nos supermercados, algumas carnes importadas agora apresentam um adesivo declarando que não contêm vírus, e outros produtos contêm um código QR pelo qual os consumidores podem acessar informações como o país de origem e certificados de inspeção de quarentena.
Estas medidas resultaram até agora na suspensão das importações de 99 fornecedores em 20 países, incluindo os da Argentina e do Brasil.
O que aconteceu em 2020 foi muito preocupante, foi praticamente um ano perdido para o setor
Uma das últimas proibições envolve a Gorina, um processador de carne argentino, cujas exportações para a China foram suspensas por quatro semanas, depois que as autoridades da cidade de Nanjing detectaram coronavírus na embalagem de seus produtos. Antes da proibição, a Gorina era uma das maiores exportadoras de carne bovina da Argentina, enviando entre 2.500 e 3.000 toneladas de carne bovina por mês para a China, o que representava entre 55% e 60% do total de suas vendas.
“O que aconteceu em 2020 foi muito preocupante, foi praticamente um ano perdido para o setor”, diz Ignacio Harris, gerente e diretor técnico da Associação Argentina de Angus.
Embora a Gorina esteja cooperando com as autoridades chinesas, alguns participantes da indústria argentina estão céticos sobre as acusações e especulam que a verdadeira intenção dos controles é restringir o comércio e reduzir os preços.
“As mudanças no mercado chinês causaram flutuações nos volumes de carne exportados pela Argentina, mas sem dúvida a principal mudança foi nos preços”, diz Mario Ravettino, presidente do Consórcio de Exportadores de Carnes Argentinas. “O preço das carnes congeladas sem osso exportadas para a China diminuiu 34% se compararmos os preços de outubro com os preços do final do ano passado”.
Implicações negativas a longo prazo pós-Covid-19
As suspeitas da China sobre a importação de alimentos não mostram sinais de abrandamento. O último caso de coronavírus envolvendo carne bovina brasileira foi relatado recentemente, em 3 de janeiro.
As exigências de inspeção já levaram a uma queda notável na disponibilidade de carne bovina, e os supermercados têm relatado falta de estoque devido a atrasos logísticos causados por testes. Os importadores também estão fazendo menos pedidos devido aos custos mais altos para atender às exigências alfandegárias, e ao risco de perder remessas inteiras no caso de um teste positivo.
Enquanto o coronavírus não for totalmente eliminado nos países produtores, é provável que o governo chinês mantenha exigências maiores de testes. As autoridades encontraram até mesmo vestígios do vírus em carne importada da Nova Zelândia, que em grande parte já havia eliminado a transmissão local.
Um “novo normal” com restrições prolongadas ao comércio poderia resultar em menores volumes e preços para os fornecedores sul-americanos, pois os compradores se voltam para fontes nacionais de proteína, tais como carne suína e de aves, que podem ser consideradas mais seguras. Países com menor transmissão de coronavírus, tais como Austrália e Nova Zelândia, também podem ser favorecidos.
Além do efeito imediato sobre o comércio, os produtores também estão preocupados com o impacto a longo prazo sobre a reputação da carne bovina sul-americana. Os consumidores chineses têm sido historicamente exigentes quanto à segurança alimentar, após uma série de escândalos envolvendo desde leite de fórmula para bebês até óleo de cozinha.
“Antes da pandemia, por seis anos consecutivos, fomos à exposição anual internacional de carne realizada em Shanghai para promover a carne bovina Angus argentina”, diz Harris. “É incrível ver como o importador e o consumidor chineses mudaram durante esses seis anos, percebendo que há uma verdadeira diferença na qualidade de nossa carne”.
No entanto, Harris tem esperança de que os novos controles e restrições sejam apenas temporários.
“Não creio que o governo chinês continuará implementando esses controles por muito mais tempo, porque eles não se baseiam em provas científicas reais”, diz ele. “A China precisa comer, precisa de proteína”.
Ceticismo da comunidade internacional
A evidência científica por trás das descobertas da China tem sido amplamente questionada por especialistas e governos estrangeiros. Alguns chegaram a sugerir que as acusações fazem parte de uma campanha mais ampla para ofuscar as origens do Covid-19.
Wu Zunyou, epidemiologista chefe do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças, disse recentemente que, em vez de ter tido origem em Wuhan, o coronavírus poderia ter entrado na China nas embalagens de frutos do mar ou carne importados.
Esta afirmação está sendo cada vez mais ecoada por outras autoridades e meios de comunicação chineses. O Global Times, um tabloide nacionalista apoiado pelo governo, publicou recentemente uma grande investigação intitulada “Será que as importações em cadeia fria poderiam ter provocado o início do surto de Covid-19 em Wuhan?”
No entanto, em uma declaração à agência Associated Press, a Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que os casos de vírus vivos encontrados em embalagens parecem ser “raros e isolados” e que embora o vírus possa “sobreviver por muito tempo sob condições de armazenamento a frio”, não há evidência de pessoas que contraíram Covid-19 por consumir alimentos.
Os parceiros comerciais da China também têm reagido. O Canadá apresentou uma reclamação à Organização Mundial do Comércio, enquanto a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, questionou publicamente as descobertas da China.
A falta de provas fornecidas pelas autoridades chinesas é uma das principais fontes de ceticismo da comunidade internacional.
“Tenho sérias dúvidas sobre o que a China está relatando. Há muitas perguntas técnicas — como qual tipo de teste eles estão usando — dúvida que ainda não responderam”, diz Gerardo Leotta, bacteriologista clínico e industrial, e pesquisador do Conicet, o Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina.
“Temos que lembrar que o principal meio de transmissão deste vírus é entre humanos”. Recentemente fizemos um estudo no qual descobrimos que a probabilidade de alguém ficar doente através de um vírus que está em alimentos importados ou em sua embalagem é de um em um trilhão”.
Por ora, nenhum outro grande importador relatou descobertas semelhantes às da China.
“O que estamos vendo acontecer na China é o que a OMS chama de infodemia, a disseminação de notícias enganosas ou fabricadas”, diz Leotta. “A maneira como podemos combater isso é por meio de informações verdadeiras, baseadas na ciência, que cheguem aos consumidores”.