Muito antes da pandemia da Covid-19, conflitos, mudanças climáticas e crises econômicas ameaçavam a segurança alimentar global e os esforços para erradicar a fome e a desnutrição até 2030, conforme estabelecido pelo Objetivo número 2 de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Hoje, os sistemas alimentares mundiais, que contribuem com cerca de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa, estão ainda mais fora do rumo à medida que os números de subnutridos no mundo se aproximam rapidamente de um bilhão.
Como parte da “década de ação” da ONU para atender aos ODS e enfrentar conjuntamente as crises de pobreza, desigualdade e mudanças climáticas, o secretário-geral António Guterres convocou uma Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares, a ser realizada em setembro pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Uma pré-conferência foi realizada esta semana (26-28 de julho) como preparação ao encontro global.
No entanto, a cúpula provou ser controversa. Os defensores da agricultura em pequena escala dizem que a participação de agentes do setor privado levou a agricultura industrial a exercer uma influência excessiva nos processos. Guterres também nomeou como diretora da cúpula a ex-ministra da agricultura ruandesa Agnes Kalibata, defensora da agricultura intensiva e da tecnologia de sementes de alto rendimento, o que gerou um boicote de organizações de base e a criação de um evento paralelo.
Quando a pré-cúpula chegou ao fim, perguntamos aos especialistas que avanço a FAO fez na concepção e no apoio a sistemas alimentares globais seguros e sustentáveis e que desafios permanecem frente ao evento principal de setembro.
Yiching Song, líder de programa da Parceria Internacional de Gestão de Ecossistemas da ONU (UNEP-IEMP), fundador e conselheiro da Rede de Sementes de Agricultores na China
Todos sabemos que nosso sistema alimentar — atualmente ameaçado pelas mudanças climáticas, a COVID-19 e outros fatores — deve se tornar resistente a crises. A resiliência virá essencialmente de sistemas de produção de alimentos mais diversificados, que ficariam menos suscetíveis a impactos que afetassem o sistema como um todo, contribuindo ao mesmo tempo para a segurança alimentar e a diversidade nutricional. No entanto, o que enfrentamos é o aumento da uniformidade e a perda da agrobiodiversidade — a uma velocidade alarmante. Sistemas holísticos e diversificados de sementes administrados pelo agricultor, que estão embutidos em contextos bioculturais adaptáveis a mudanças, são a base para a transformação rumo a sistemas alimentares diversificados, resilientes e sustentáveis. Para que nossos sistemas sejam seguros e sustentáveis, os sistemas de sementes desenvolvidos pelo agricultor e sua cultura devem ser plenamente reconhecidos e apoiados.
A FAO tem continuamente abordado questões alimentares de forma crítica, priorizando os pequenos agricultores, reforçando a agrobiodiversidade e apoiando a agroecologia, através de uma série de políticas e programas importantes, por exemplo o Tratado da FAO sobre Recursos Genéticos para a Alimentação e a Agricultura (GIAHS, em inglês) e seu programa de agroecologia. Recentemente, a FAO também lançou Diretrizes Voluntárias para a Conservação e o Uso Sustentável das Variedades dos Agricultores. Mas o sistema de sementes do agricultor e conhecimentos tradicionais relacionados não receberam reconhecimento suficiente e apoio sistemático. A contínua degradação desse sistema ameaça a sustentabilidade do sistema alimentar como um todo.
Precisamos urgentemente de uma abordagem mais sistemática e de uma plataforma que ligue o agricultor e os sistemas formais de sementes e envolva os vários interessados em ações coletivas e soluções conjuntas para enriquecer e sustentar o sistema alimentar para todos!
Judith Hitchman, co-presidente da Urgenci, comunidade global de apoio à agricultura (www.urgenci.net).
A Cúpula de Sistemas Alimentares é bastante problemática por muitas razões. Em primeiro lugar, ela vem de cima para baixo. Em segundo, ela deixa de lado a abordagem multilateral da ONU envolvendo Estados e favorece o setor privado, especialmente as grandes corporações. Isto é um reflexo do acordo que a ONU assinou com o Fórum Econômico Mundial, também em 2019. Isto causou uma mudança enorme, de uma abordagem baseada nos direitos humanos para uma abordagem com forte presença do setor privado em todas as esferas da ONU (alimentação e saúde, entre outras). Em terceiro lugar, ela varre os ganhos duramente conquistados com a reforma do Comitê de Segurança Alimentar e Nutrição (CFS, em inglês), o principal órgão inclusivo do sistema da ONU. O CFS foi reformulado em 1996 e incluiu o Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas, o que permitiu que os movimentos sociais contribuíssem plenamente para a política alimentar, mantendo sua independência.
Os movimentos sociais organizados não foram em momento algum convidados para o chamado processo “aberto” da Cúpula dos Sistemas Alimentares. O CFS também conta com um Painel de Especialistas de Alto Nível totalmente independente que contribui com relatórios para apoiar o processo de elaboração de políticas. E o painel está sob ameaça com a proposta de introdução de uma “Interface da Política Alimentar com a Ciência” (uma espécie de IPCC para alimentos). Finalmente, embora os pequenos produtores sejam responsáveis por 70% do abastecimento mundial de alimentos, as soluções para a atual crise alimentar apresentadas pela cúpula são a tecnologia industrial, as “soluções baseadas na natureza” e a agricultura regenerativa em vez dos 10 Princípios de Agroecologia previamente acordados pela FAO.
Tudo isso explica por que os movimentos sociais têm realizado uma contra-cúpula global e boicotado a Pré-Cúpula de Sistemas Alimentares.
Robert Hii, editor na organização Certified Sustainable Palm Oil (CSPO) Watch
O óleo de palma é fundamental para a segurança alimentar global. Seu alto rendimento, versatilidade e acessibilidade econômica fizeram dele um cultivo ideal para países que buscam a autossuficiência em óleos comestíveis, especialmente aqueles onde a agricultura desempenha um papel fundamental na economia socioeconômica.
Com cerca de três milhões de pequenos proprietários de terras contribuindo com cerca de 30% do óleo de palma produzido a cada ano, os pequenos proprietários são um dos principais interessados na indústria global do setor. Mas mais trabalho é necessário para apoiar os pequenos produtores nas 5 linhas de ação da cúpula. Por exemplo, o óleo de palma atende ao objetivo da Linha de Ação 2: produzir alimentos nutritivos com menos recursos, aumentando a eficiência da terra. Mas, neste momento, isso está enfraquecido por conta da baixa eficiência da colheita, lacunas de rendimento, volatilidade de preços e a falta de apoio aos pequenos proprietários.
Outro exemplo está relacionado à Linha de Ação 4, que visa a “contribuir para eliminar a pobreza, garantindo o emprego pleno e produtivo para todos os atores da cadeia de produção de alimentos”. Hoje, há uma desigualdade gritante na distribuição do lucro ao longo dessa cadeia. Os pequenos proprietários, mesmo aqueles certificados sob esquemas de sustentabilidade, estão em desvantagem. O óleo de palma pode trazer prosperidade sem práticas caras ou de exploração intensiva e, seguindo a linha de ação 5, tem sido uma ferramenta eficaz para a paz na Colômbia pós-conflito. Para garantir que o óleo de palma possa cumprir todos os 17 ODS que dependem de sistemas alimentares saudáveis e equitativos, pequenos agricultores não podem mais ser deixados para trás. Isto será fundamental para tornar o óleo de palma um sistema-modelo na produção sustentável e responsável de commodities.
Lauren Baker, diretora sênior de programas da Global Alliance for the Future of Food
Estamos muito animados com o crescente apoio da FAO à agroecologia. Uma série de relatórios e atividades trazem evidências de que a agroecologia é uma solução climática fundamental: o centro de pesquisa em Agroecologia da FAO; o grupo de trabalho em agroecologia e ODS; o trabalho avaliando o desempenho agroecológico através de ferramentas e dados. Tudo isso é crucial para lidar com as mudanças climáticas a partir de uma perspectiva de mitigação e adaptação. Os sistemas alimentares contribuem com 25- 35% das emissões de gases de efeito estufa e requerem uma transição das práticas com alto impactos climáticos para práticas regenerativas, o que torna o foco na agroecologia essencial.
A iniciativa da FAO de impulsionar a agroecologia tem servido para apoiar governos a aumentar sua escala em várias regiões. A África Ocidental é um exemplo interessante. A assistência técnica que eles fornecem neste sentido é essencial e precisa manter os 13 princípios da agroecologia no centro deste trabalho.
A FAO também realiza um relevante trabalho sobre sistemas alimentares de cidades e regiões. A importância desse trabalho fica ainda mais clara na pandemia da COVID-19, em que notamos a fragilidade das cadeias de produção globais e o aumento da dependência e do interesse em sistemas alimentares regionais. Os governos subnacionais desempenham um papel crucial na segurança alimentar e em possibilitar economias alimentares locais.
O maior desafio é manter o ritmo e o progresso. Há sinais positivos e um trabalho importante está acontecendo. É fundamental aproveitar o momento para que a comunidade global estabeleça sistemas alimentares sustentáveis e equitativos, como forma de alcançar nossas aspirações no clima, biodiversidade e equidade.
Nick Jacobs, diretor do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food) & Chantal Clément, diretora-adjunta da IPES-Food
Nos últimos anos, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) tem sido instrumental na redefinição de sistemas alimentares sustentáveis.
Em seu último relatório sobre a fome no mundo, a FAO enviou uma mensagem clara e firme: as taxas crescentes de fome estão nos distanciando dos ODS. A FAO também nos lembrou que a fome não é apenas uma questão de calorias. A segurança alimentar só pode ser alcançada pondo fim à pobreza e construindo sistemas alimentares resilientes, inclusivos e sustentáveis.
A FAO também ajudou a mostrar que segurança alimentar e sustentabilidade são duas faces da mesma moeda. Eventos recentes — de incêndios, enchentes e pandemias — mostraram que as crises climáticas e de biodiversidade já estão aqui. A segurança alimentar depende claramente da resiliência dos ecossistemas e das comunidades agrícolas frente a choques crescentes. Ao redor do mundo, os agricultores estão usando a natureza para construir essa resiliência através da diversidade (de culturas, espécies, paisagens e meios de subsistência). Os 10 elementos da agroecologia da FAO fornecem uma ferramenta operacional para promover esses sistemas transformadores. E a iniciativa da FAO para aumentar a escala da agroecologia está ajudando Senegal, México, Colômbia e muitos outros países a implementar políticas de transição agroecológica.
A cúpula só será bem-sucedida na medida em que produzir uma visão clara da transformação do sistema alimentar, enraizada nas mudanças que estão acontecendo na prática
A Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares oferece uma oportunidade para a transformação do sistema alimentar. Mas há também o risco de que a cúpula — com foco em uma miríade de ‘soluções’ e coalizões de vários investidores — possa comprometer o progresso. A cúpula só será bem-sucedida na medida em que produzir uma visão clara da transformação do sistema alimentar, enraizada nas mudanças que estão acontecendo na prática. E desde que os governos e as agências da ONU se sintam obrigados a agir.
Cristina Pita, pesquisadora-chefe do grupo Criando Mercados Sustentáveis do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED, em inglês)
A ONU mudou o paradigma ao começar a olhar para os alimentos como um todo, da produção ao consumo. Olhar para os complexos sistemas socioeconômicos e de governança em torno dos alimentos é crucial para alcançar os ODS.
Os alimentos de oceanos, rios e lagos desempenham um papel vital nos sistemas alimentares, mas muitas vezes não são incluídos na conversa sobre segurança alimentar e nutrição global. É crucial reconhecer sua importância, especialmente os alimentos provenientes da pesca artesanal em pequena escala e da aquicultura. Ao todo, 3,3 bilhões de pessoas no mundo obtêm 20% de sua proteína animal do peixe. Para as pessoas em regiões costeiras e insulares, são mais de 50%. Mais de 660 milhões de pessoas, a maioria no sul global, dependem da pesca e da aquicultura para seu sustento — isto é, 10% da população mundial. Hoje 177,5 milhões dessas pessoas trabalham na pesca e aquicultura comercial, e metade delas são mulheres.
A Cúpula de Sistemas Alimentares precisa assegurar a inclusão ativa e representativa dos pequenos produtores de alimentos aquáticos e de subsistência, para apoiá-los e protegê-los, incluí-los na tomada de decisões e nas políticas, e proporcionar-lhes oportunidades econômicas equitativas. As Diretrizes Voluntárias para Garantir a Pesca Sustentável em Pequena Escala, endossadas pela FAO, fornecem as diretrizes políticas fundamentais para erradicar a fome e a pobreza, priorizando os direitos daqueles que dependem da pesca em pequena escala e da aquicultura para subsistência e promovendo sistemas alimentares sustentáveis. A cúpula deve incentivar a ampliação de sua implementação.
Benedikt Haerlin, diretor da Fundação para o Futuro da Agricultura e vice-presidente da Convenção Agrícola e Rural Europeia (ARC2020)
Entre os progressos mais importantes que a FAO teve em direção a sistemas alimentares seguros e sustentáveis está seu recente trabalho na agroecologia e o entendimento dos desafios conjuntos, que alguns chamam de sindemia, de subnutrição e a crise global do clima e da biodiversidade. A FAO tinha cautelosamente aberto a cabeça e promovido ações em direção à soberania alimentar, com deliberações e acordos inclusivos entre governos, empresas, organizações agrícolas, comunidades indígenas e sociedade civil, dentro de seu Comitê sobre Segurança Alimentar Mundial.
Entretanto, um novo conceito corporativo de múltiplos investidores na Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares — impulsionado por iniciativas do Fórum Econômico Mundial, alguns governos, instituições globais e fundações privadas — gera preocupações. Uma abordagem tecnocrática e produtivista de cima para baixo pode novamente assumir o controle da hierarquia da FAO e de um novo órgão científico e de elaboração de políticas proposto recentemente. Tem sido um processo longo e sinuoso compreender que a fome, a desnutrição, a destruição ambiental e sociocultural só podem ser superadas pela base, pela cooperação respeitosa e pela autodeterminação democrática, que começa e termina a nível comunitário.
É de partir o coração ver uma nova narrativa de que “inovações tecnológicas disruptivas, engenharia social e parcerias público-privadas resolverão os problemas”, abusando da linguagem dos sistemas participativos de alimentação para vender histórias e soluções antigas e criando mais problemas do que resolvem. Pessoalmente, isso me levou a me retirar do processo da cúpula junto a milhares de organizações de agricultores e de sociedade civil e cientistas em todo o mundo. Esperamos encontrar soluções melhores e criar uma cooperação transparente, respeitosa e digna de confiança.