A forma como produzimos, transportamos, consumimos e desperdiçamos alimentos está destruindo a natureza, degradando o solo e poluindo o ar e a água. Hoje, o desorganizado sistema alimentar global é responsável por um terço das emissões de CO2.
Enquanto produzimos mais alimentos do que nunca, a ONU informou, em julho de 2021, que 811 milhões de pessoas ainda passam fome. Isso é mais de uma em cada dez pessoas. Perversamente, a maioria são agricultores e seus filhos.
Portanto, à primeira vista, é uma boa notícia que a ONU sediará uma Cúpula de Sistemas Alimentares nesta quinta-feira, 23. O objetivo é transformar o sistema alimentar para garantir o fornecimento de alimentos nutritivos e benéficos para o meio ambiente, além de aumentar sua resistência a choques ambientais e econômicos.
Mas basta levantar a tampa da cúpula para encontrar a fervura. As partes interessadas estão profundamente divididas sobre como consertar o sistema alimentar, e muitos têm preocupações sobre a própria cúpula.
Críticas e boicotes à Cúpula
Guterres foi além e nomeou como enviada especial Agnes Kalibata, presidente da Aliança para uma Revolução Verde na África, que promove sementes comerciais de alta tecnologia.
Os organizadores da cúpula também ignoraram um órgão-chave da ONU: o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS, em inglês), que abrange 125 países-membros, tem mecanismos de participação da sociedade civil, povos indígenas e setor privado e, além disso, um órgão consultivo científico — o painel de especialistas de alto nível.
Deixado de lado, o CFS formou seu próprio grupo científico e nomeou líderes de cinco “caminhos de ações” — com “propostas que mudariam o jogo” da cúpula.
Há muitos críticos. Eles incluem centenas de ONGs, acadêmicos, o relator-especial da ONU sobre o Direito à Alimentação (e seus dois predecessores) e cientistas, incluindo membros da cúpula. Em julho de 2021, milhares de pessoas participaram de um fórum realizado por organizações que boicotam a pré-cúpula.
Para críticos, a cúpula marginaliza os direitos humanos; não reconhece que a dominação corporativa dos sistemas alimentares e a fraca governança são causas dos problemas que a cúpula quer resolver; e que ela permitirá às corporações exercer maior controle sobre a alimentação e sobre a própria ONU.
A ONU rejeita as críticas. Ela tem enfatizado que as estruturas formais de liderança não incluem empresas, apenas redes empresariais. Aponta que mais de cem mil pessoas já participaram de diálogos coordenados por 147 países e 900 atores independentes, cujos resultados estão disponíveis online.
Representantes de pequenos agricultores, povos indígenas, jovens e mulheres estiveram envolvidos nas propostas de ação da cúpula, gerando mais ideias para melhorar os sistemas alimentares do que os participantes do setor privado. Estes grupos também tiveram papéis importantes na pré-cúpula em julho.
Mas um assento à mesa não significa ter poder decisório. Participantes — incluindo Anne Nuorgam, presidente do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU — expressaram preocupação com a falta de clareza sobre quem está decidindo os resultados da cúpula. Em agosto, o presidente da área de ação de governança da cúpula renunciou, citando preocupações sobre a transparência e a responsabilidade na tomada de decisões.
Ciência versus sistemas alimentares
O conteúdo da cúpula também é contestado. Há foco no aumento da produção e da resiliência de alimentos, impulsionando o desenvolvimento e a adoção de tecnologias — desde culturas biotecnológicas e a agricultura de precisão até coberturas de nanopartículas que prolongam a vida útil dos produtos.
Mas tem havido menos atenção no redesenho dos sistemas alimentares, que resolveria barreiras estruturais como o acesso a financiamento, reconhecimento legal da posse de terras e políticas corporativas que prendem os agricultores pobres a modos problemáticos de produção de alimentos. A ciência ocidental se mantém firme enquanto o conhecimento tradicional desenvolvido ao longo de milênios permanece à margem, apesar dos crescentes apelos para sua integração a conselhos políticos.
Críticos dizem que o foco na inovação tem promovido a agenda corporativa da agricultura intensiva voltada para os mercados de exportação, em vez de sistemas alimentares locais diversos e resilientes.
Esse ponto crítico é particularmente visível em torno da agroecologia. Há evidências crescentes de que este modo de agricultura pode aumentar a renda e a segurança alimentar, enquanto aumenta a biodiversidade e a resiliência de agricultores e armazena carbono. São pontos que a cúpula vai promover. Mas os defensores da agroecologia tiveram que lutar por um lugar na pré-cúpula de julho.
Quando dez países, incluindo Costa Rica, assinaram uma carta exigindo isto, eles tiveram que esperar semanas por uma resposta positiva. Eles ficaram desapontados quando — apenas alguns dias antes da pré-cúpula — receberam um lugar no evento paralelo à noite, competindo com 17 sessões paralelas. Apesar disso, o evento agroecológico teve a maior participação presencial e online de todos os eventos pré-cúpula.
A agroecologia também foi proeminente em muitas das propostas de ação e dos diálogos. Mas seus apoiadores dizem que ela está sendo minada por campanhas de desinformação apoiadas por interesses particulares na agricultura de alta produtividade, que vêem o crescente apoio à agroecologia como uma ameaça.
Os países que apoiam a agroecologia estão agora formando uma coalizão que seguirá um conjunto de 13 princípios agroecológicos identificados pelo painel de especialistas de alto nível — como solicitado por aqueles que boicotam a cúpula.