Energia

O futuro das hidrelétricas frente à crise climática na América Latina

Mapa do Diálogo Chino traz detalhes sobre usinas e variação de chuvas para a região, revelando implicações potencialmente negativas para projetos existentes e planejados
<p>Linhas de transmissão saindo da hidrelétrica de Itaipu. A região Sul do Brasil deve ter aumentos de índice de pluviosidade no futuro (Imagem: Jose Luis Stephens / Alamy)</p>

Linhas de transmissão saindo da hidrelétrica de Itaipu. A região Sul do Brasil deve ter aumentos de índice de pluviosidade no futuro (Imagem: Jose Luis Stephens / Alamy)

As hidrelétricas são a principal fonte de geração de energia da América Latina, respondendo por 45% do total da oferta da região — muito acima da média mundial de 16%. Mas essa fonte está sujeita aos efeitos negativos das mudanças climáticas.

A variação das chuvas, o aumento das temperaturas, o derretimento das geleiras e os efeitos climáticos extremos, entre outras consequências do aquecimento global, podem afetar a eficiência das hidrelétricas. Isso deve forçar governos e investidores a se adaptar e a avaliar a viabilidade de novas hidrelétricas.

45%


do total da oferta de energia da América latina tem como origem as hidrelétricas, um valor quase três vezes maior do que a média global

Com a região avaliando possíveis caminhos para a sua transição energética, o Diálogo Chino lança um mapa interativo exclusivo com grande parte das usinas hidrelétricas da América Latina, detalhando sua capacidade de energia instalada, status e propriedade. O mapa também cruza dados de variação de chuvas em cenários de aquecimento de 2°C, 3°C e 4°C.

Ele detalha 439 usinas hidrelétricas em 24 países da América Latina e Caribe para os quais conseguimos coletar dados. Devido ao grande número de projetos no Brasil, definimos a capacidade mínima instalada em 100MW. Por motivos semelhantes, o mínimo para a inclusão de dados do México foi de 50 MW. Para a América Central e Caribe, 30MW.

Os dados de localização e status das usinas foram compilados pelo cruzamento de fontes oficiais, operadoras, associações industriais e comunicados à imprensa. As informações sobre a variação de chuvas são do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), grupo internacional de cientistas climáticos.

A energia hidrelétrica tem impactos que levantam sérias questões sobre sua sustentabilidade, que vão desde o desmatamento e a ocupação de terras indígenas, viabilidade financeira e influência sobre o fluxo dos rios. Nosso mapa visa mostrar onde o futuro de longo prazo da hidrelétrica é posto em dúvida — e onde, ao contrário, há potencial para sua expansão.

Hidrelétricas da América Latina

A geografia e a meteorologia da América Latina explicam o uso massivo da energia hidrelétrica: quatro de suas maiores bacias hidrográficas cobrem cerca de dois terços do continente. A maior parte está localizada no leste dos Andes e escoa em direção ao Oceano Atlântico. Inúmeras geleiras também alimentam as hidrelétricas.

Apesar de várias instituições multilaterais de financiamento do desenvolvimento terem concordado em retirar as hidrelétricas de seus portfólios de investimentos nos últimos anos, megaprojetos ainda estão em execução. Em 2020, por exemplo, o Brasil ultrapassou a China e se tornou o país com o maior aumento anual de capacidade hidrelétrica instalada, após adicionar os 4.919 MW da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

Já na Colômbia, a hidrelétrica de Ituango deve começar a operar ainda em 2022, atendendo a 17% da demanda de energia do país. Enquanto isso, a Argentina avança com as mega hidrelétricas Kirchner-Cepernic, que devem aumentar em 5% a capacidade energética do país.

Mas as mudanças climáticas representam um novo desafio para uma região historicamente dependente das hidrelétricas. Nas últimas décadas, as chuvas aumentaram nas regiões costeiras dos países andinos, como Equador e Colômbia, enquanto diminuíram em grande parte da América Central, sul do Chile e sudoeste da Argentina.

Um estudo da Agência Internacional de Energia (AIE) avaliou os impactos climáticos sobre mais de 86% da capacidade hidrelétrica instalada na América Latina, concentrando-se em 13 países com as principais instalações. Ela constatou que a capacidade hidrelétrica da região deve diminuir até o final do século devido às mudanças climáticas. Quanto maior a concentração de emissões de gases de efeito estufa, mais forte será o impacto negativo sobre a geração de energia.

No entanto, os efeitos variam dependendo de cada país. A região andina deve ver um aumento na capacidade hidrelétrica, enquanto demais áreas da América do Sul e Central veriam uma diminuição.

“Como outros tipos de infraestrutura, o setor hidrelétrico está começando a experimentar os impactos das mudanças climáticas”, afirmou a Associação Internacional de Energia Elétrica (IHA) por email. “A disponibilidade de água e a geração de energia hidrelétrica podem ser afetadas por mudanças nos padrões hidrológicos e eventos climáticos extremos. Em algumas áreas, no entanto, essas mudanças podem aumentar a produção de energia hidrelétrica”.

Vencedores e perdedores

Apesar de sofrer com uma megaseca, o Chile é o país do Cone Sul com o maior número de hidrelétricas planejadas, entre elas Los Lagos e San Pedro, no sul, e Nido de Águila e Los Cóndores, na região central.

Fica evidente no mapa elaborado pelo Diálogo Chino que o Chile será o país mais afetado pela diminuição de chuvas. No cenário atual, elas têm sido mais curtas e intensas. Dados da consultoria Systep mostram que a geração hidrelétrica chilena caiu nos primeiros três meses do ano em comparação com 2021, em parte devido à seca.

As porções Norte, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil também devem ficar mais secas — representando uma ameaça a biomas vulneráveis como a Amazônia e o Cerrado. As maiores usinas estão no Norte, o que traz riscos à segurança energética do país.

É preocupante que o país esteja planejando três grandes usinas hidrelétricas na bacia do rio Tapajós, no estado do Pará, região que pode ter mais de 40 dias secos consecutivos sob o cenário de aquecimento de 4°C, além de 15% menos precipitação.

As hidrelétricas em planejamento não são o único problema. As usinas de Belo Monte (11.233 MW) e Tucuruí (8.535 MW), também no Norte, podem enfrentar a redução de fluxo de água e de geração e eficiência energética, provocando o aumento na conta de eletricidade e no uso de termelétricas para atender à demanda do país, como aconteceu em 2021.

O país, contudo, não deve ser afetado de maneira homogênea pelas mudanças climáticas. As regiões Sul e Sudeste devem enfrentar um aumento da precipitação, impondo a urgente necessidade de ações de mitigação e adaptação climática para lidar com as enchentes em grandes centros urbanos.

Enquanto isto, o mapa também mostra que o leste da Colômbia verá uma queda notória na precipitação sob todos os cenários de aquecimento. Das 34 usinas hidrelétricas identificadas no país, 29 são funcionais, uma está em construção e quatro estão planejadas. Já a Bolívia deve ver uma queda moderada na precipitação, em meio aos planos de expansão da capacidade hidrelétrica nos próximos anos.

O Uruguai, a maior parte do Paraguai e do Peru, o nordeste da Argentina e o Equador deverão ver um aumento da precipitação sob todos os cenários de aquecimento. No Equador, 92% da energia veio de hidrelétricas no ano passado, com projetos como Toachi Pilatón e Coca Codo Sinclair imersos em problemas de gestão. Já o Peru tem grandes esperanças em relação à energia hidrelétrica, com metade dos projetos no mapa funcionando ou sendo considerados.

A hidrelétrica representa 10% da energia total do México, com a maioria de suas usinas construídas entre os anos de 1950 a 1960. Muitas acumularam sedimentos, o que causa problemas para atingir sua capacidade instalada. Por isso, o atual governo tem se concentrado na modernização de equipamentos para gerar mais eletricidade.

A hidroeletricidade é um dos pilares dos planos energéticos do governo mexicano, considerada um elemento fundamental para a transição energética, apesar dos problemas de capacidade reduzida devido à seca.

O caminho a seguir

Para se antecipar e recuperar de impactos climáticos adversos, a energia hidrelétrica latino-americana precisa ser mais resiliente ao clima, segundo especialistas. Isso pode beneficiar a gestão hídrica, atuando como um amortecedor contra a variabilidade da água, além de apoiar a transição energética da região.

A AIE recomenda que os governos mobilizem investimentos na modernização de hidrelétricas obsoletas, já que mais de 50% da capacidade instalada na região têm mais de 30 anos (a vida útil padrão de uma usina é de 30 a 80 anos). A AIE também sugere que os governos incluam os impactos climáticos sobre a energia hidrelétrica em suas estratégias de adaptação climática. Apenas seis dos 13 países analisados pela agência já o fizeram.

Vista aérea de uma usina de energia solar no deserto do Atacama, no Chile.
Saiba mais: Mapeamento das energias renováveis da América Latina

Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) avalia que a hidrelétrica não deve ser, necessariamente, descartada em razão de questões climáticas, visto que as medidas de adaptação podem contornar os principais desafios. No entanto, ele argumenta que as mudanças climáticas devem ser um fator-chave ao se planejar novos empreendimentos.

Os benefícios de sistemas elétricos resilientes são maiores do que os custos na maioria dos cenários climáticos. Estima-se que para cada dólar investido em infraestrutura resistente ao clima, seis podem ser economizados. Se as ações necessárias para a resiliência forem adiadas por dez anos, o custo quase dobrará.

“Em muitos locais, o aumento da água pode ser mais bem gerenciado por meio de uma infraestrutura como a hidrelétrica. Não apenas a maioria das instalações é robusta por muitas décadas, mas a maioria das usinas também é construída para o controle de enchentes, secas e para a irrigação”, disse a IHA.

 

Dados compilados por Emilio Godoy, Damián Profeta, Jorge Chávez e Sarita Reed, com o apoio de Robert Soutar, Fermín Koop, Flávia Milhorance, Alejandra Cuéllar, Jack Lo, Lívia Machado Costa e Marina Bello. Mapa elaborado por Julia Janicki.