Os refletores iluminavam a abertura de um pequeno túnel no Deserto do Atacama quando Florencio Antonio Avalos Silva finalmente surgiu, comprimido dentro de uma cápsula metálica. O resgate audacioso foi transmitido pelos canais de televisão do mundo inteiro em outubro de 2010 e assistido por um bilhão de telespectadores. Antonio era um dos 33 mineiros chilenos que saíram com vida depois de passarem dois meses presos dentro de uma mina de cobre a 700 metros da superfície.
Em 2019, o mundo volta as atenções para o Chile mais uma vez, esperando testemunhar mais uma proeza extraordinária. O Chile sediará a Cúpula da APEC, onde 21 líderes de países do Pacífico se reunirão em novembro, e, um mês depois, sediará também as negociações climáticas da ONU (conhecidas como COP 25).
Os encontros terão cerca de 20 mil participantes e todos poderão ver de perto a luta do país para construir uma economia de baixo carbono. Santiago tem uma das maiores frotas de ônibus elétricos do mundo para driblar os seus graves problemas de congestionamento e poluição atmosférica.
O país é um dos mais bem posicionados do mundo para fazer isso. Seu exemplo pode inspirar outros países a imitá-lo
Como líder da COP 25, o Chile está sob forte pressão para mostrar toda a sua determinação em reduzir as emissões. As metas do país incluem uma redução de 45% até 2030, tendo como ponto de partida as emissões de 2010, e alcançar emissão zero de carbono até 2050. Tudo isso faz parte dos esforços para limitar o aquecimento global a 1,5 grau Celsius, determinado no Acordo de Paris.
Na Cúpula da APEC, o Chile se concentrará no crescimento sustentável e inclusivo, nas pautas femininas e na economia digital. Para a COP 25, o Chile encorajará os países a firmarem compromissos mais ousados para reduzir as emissões e a construírem uma base de apoio para proteger a Antártida, oceanos, florestas e a biodiversidade. O país também promove a mobilidade elétrica, as energias renováveis e a economia circular.
O presidente chileno Sebastián Piñera parece bastante comprometido com o sucesso da COP 25 e, em abril, disse que a conferência será uma excelente oportunidade para que todos os países reconheçam que é preciso confrontar as mudanças climáticas com maior ambição e urgência.
Para ajudar nos preparativos da COP, o governo chileno criou um comitê consultivo presidencial integrado por dois ex-presidentes, ex-ministros, representantes do congresso, do setor comercial, da sociedade civil e da academia. A população parece estar de acordo com as decisões do governo: uma recente pesquisa mostrou que 69% dos chilenos acredita que os eventos são muito importantes, e 68% acredita que terão um efeito positivo no país.
Em um anúncio promissor, o Chile declarou que vai buscar se tornar um país neutro em carbono até 2050. Até então, o único país latino-americano que tinha planos concretos nesse sentido era a Costa Rica. O Chile também assinou uma declaração em apoio à Coalizão de Alta Ambição, comprometendo-se a apresentar um plano nacional revisado para combater as mudanças climáticas, alinhado à meta de 1,5 grau Celsius, até 2020.
Entretanto, tudo isso representa um desafio gigantesco para o Chile, uma vez que as metas de redução de emissões do país para 2030 são consideradas altamente insuficientes pelo grupo de monitoramento Climate Action Tracker. Inúmeros grupos da sociedade civil manifestaram seu incômodo com o fato de que o governo ainda não assinou o Acordo Escazú, um compromisso regional inédito e vinculante que confere proteção aos ativistas ambientais.
A tarefa de encorajar alguns países a estabelecerem metas mais ambiciosas será árdua. Dois dos vizinhos do Chile, o Brasil e o México, parecem estar mais preocupados com a destruição da proteção da Amazônia e com o aumento da produção de combustíveis fósseis, respectivamente, do que com assumir compromissos maiores.
Apesar das dificuldades, o Chile pode liderar pelo exemplo. O país é um dos mais bem posicionados do mundo para fazer isso. Seu exemplo pode inspirar outros países a imitá-lo.
Uma das prioridades nesse sentido é o setor de energia, que causa 78% das emissões do Chile, uma vez que o país utiliza combustíveis fósseis para a geração de energia e no setor de transportes. O Chile já alcançou progressos significativos na adoção de energias renováveis e está tentando repetir a façanha com uma frota de veículos elétricos.
Você sabia…
Em 2018, o Chile apareceu em primeiro num ranking de países em desenvolvimento que avaliava sua habilidade de atrair investimento em energia limpa.
Em 2018, o Chile liderava o ranking de uma pesquisa realizada pela ClimateScope com países em desenvolvimento, devido à sua habilidade em atrair investimentos em energia limpa. No final de 2018, a participação das energias renováveis no mix energético do Chile era de 20,8%, o que representa um aumento de 17,9% sobre o ano anterior. O cenário é promissor.
No dia 4 de junho, o governo chileno e as quatro maiores companhias de geração de energia do país assinaram um acordo voluntário para eliminar, até 2040, a geração de energia a carvão, o que atualmente representa 40% de toda a energia gerada.
a COP 25 pode ser uma catalisadora e ajudar a avançar a agenda legislativa “verde” do Chile
Oito das usinas mais antigas do país, com capacidade instalada de 1047 MW, serão desativadas até 2024. Elas servirão como uma espécie de “retaguarda operacional” para emergências por um período máximo de cinco anos.
Para complicar a questão, a empresa de energia francesa Engie iniciou esse mês a operação comercial da usina a carvão Mejillones, com capacidade de 375 MW. A nova unidade começou a ser construída em 2014 e demonstrou, de forma prática, o quanto os projetos de infraestrutura demoram. Fica claro que a eliminação gradual dos combustíveis fósseis é uma empreitada altamente complexa e que precisa começar o mais cedo possível. Idealmente, novos projetos de combustíveis fósseis devem ser completamente evitados.
Apesar da eliminação gradual do carvão ser bem-vinda, a prioridade deve ser reduzir as consideráveis emissões geradas pelo aquecimento global e pela indústria. É previsto um aumento das importações chilenas de gás natural da Argentina, o que cria mais um impasse para a redução das emissões. Mas, apesar de tudo, se o Chile quiser de verdade, pode acelerar a sua transição para uma economia mais limpa e há diversas maneiras de fazer isso.
Primeiro, o Chile deve buscar antecipar a data para eliminar o carvão como fonte de energia. O ideal seria concluir essa meta até 2030. A Chile Sustentable, uma organização ambiental, afirma que é possível desativar as 28 usinas de energia a carvão – com capacidade total de 5540 MW – até essa data. Além disso, 2030 está mais alinhado com o nível de ambição exigido pelo Acordo de Paris, principalmente para os membros da OCDE, como o Chile.
O Chile também vem buscando implementar uma transição no seu setor de transporte público, que será composto por uma frota 100% elétrica. 40% dos veículos particulares do país também serão elétricos até 2050. Atualmente, Santiago conta com 203 ônibus elétricos e esse número deve alcançar 1,5 mil até 2025. É essencial garantir financiamento dos bancos de desenvolvimento multilaterais e do setor privado para adquirir mais ônibus elétricos, além de encorajar as pessoas a usarem mais o transporte público e implementar padrões mais rígidos de emissões e eficiência energética para veículos leves e pesados.
Em segundo lugar, a COP 25 pode ser uma catalisadora e ajudar a avançar a agenda legislativa “verde” do Chile. O Chile é extremamente vulnerável aos incêndios florestais e demais impactos climáticos, bem como aos conflitos causados pelos impactos sociais e ambientais das usinas e mineradoras de carvão nas “zonas de sacrifício”. Este ano, o governo apresentará uma proposta de lei para combater as mudanças climáticas. Tudo está nas mãos da administração de Piñera e dos parlamentares, que podem ou não colocar as questões de justiça ambiental e climática no centro das discussões
Em terceiro lugar, o Chile poderia unir, de forma explícita, as agendas do encontro da APEC e da COP 25, mostrando que, para alcançar o desenvolvimento sustentável, é necessário abordar em conjunto os temas relacionados ao comércio, investimentos e ações climáticas. O timing é ideal, uma vez que o Chile recentemente ajudou a criar a Coalizão dos Ministros das Finanças em prol das Ações Climáticas, o qual endossa um conjunto de princípios norteadores para os ministros das finanças de 30 países.
O projeto tem como objetivo compartilhar as melhores práticas em crescimento de baixo carbono e resiliência frente às mudanças climáticas.
Devido à transição mundial para carros elétricos e energia renovável, é provável que a demanda global pelas amplas reservas de cobre e lítio do Chile aumente. O país pode colher muitos benefícios se, durante a Cúpula da APEC, conseguir alinhar as discussões sobre comércio e políticas de investimentos com o Acordo de Paris.
O setor agrícola do Chile, que é o principal fornecedor de frutas frescas para a China, é especialmente vulnerável aos impactos do clima, principalmente a falta de água e as enchentes, e precisará de um apoio mais robusto do setor público e privado para se tornar mais resiliente e se adaptar.
Cada vez mais pessoas acreditam que as ações climáticas são complementares ao crescimento econômico. Isso significa que, se o governo do Chile anunciar um plano de ação climática para 2030, alinhado à meta de 1,5 grau Celsius, poderia passar uma mensagem ainda mais forte para o setor privado, o que poderia impulsionar os investimentos em baixo carbono no curto prazo.
$5,3bilhões
O valor que o Chile economizaria se investisse em ter uma matriz energética 100% de energia renovável até 2050
Os benefícios de tudo isso parecem valer muito a pena. Uma análise sugeriu que alcançar 100% de energia renovável na rede elétrica do país até 2050 é uma meta que pode economizar ao Chile 5,3 bilhões de dólares por ano em combustíveis fósseis, criar 11 mil empregos verdes e prevenir 1500 mortes prematuras causadas pela poluição atmosférica.
O presidente Piñera afirma que o Chile está fortemente comprometido com o multilateralismo. Enquanto a ordem mundial liberal se desgasta e se desintegra devido aos conflitos internacionais e à hostilidade do presidente Trump em relação aos acordos globais, precisamos de países que estejam dispostos a reforçar a estrutura das instituições globais e a intensificar seus compromissos climáticos.
O anúncio de uma nova meta de redução de emissões para 2030, alinhada à meta de 1,5 grau Celsius, pode garantir o sucesso da Cúpula da APEC e da COP 25. Isso seria bom não apenas para o Chile, mas também para o resto do mundo, que pode até decidir seguir o exemplo do país.