Nota do editor: Esta reportagem sobre as ameaças induzidas pela mudança climática às geleiras do Chile é a quarta de uma série que traça o perfil do Chile e seus desafios em relação às mudanças climáticas antes das negociações sobre o clima da COP25 em Santiago, em dezembro.
Com um território extenso e estreito, o Chile possui 4% das geleiras do mundo e 80% dos glaciares da América do Sul, localizados na Cordilheira dos Andes. Trata-se de uma das reservas de água mais importantes do mundo, mas tudo pode mudar rapidamente com os efeitos do aquecimento global.
O país sede da COP25 sobre mudanças climáticas, o evento anual das Nações Unidas mais importante sobre o tema, está trabalhando num novo inventário de suas geleiras. Com apenas metade do diagnóstico avançado, já se sabe que o prognóstico é grave.
Com exceção de três, todas as massas de gelo presentes no Chile estão retrocedendo, e muitas delas já se fragmentaram, acelerando o derretimento de maneira ainda mais dramática. Atividades industriais como mineração se somam à lista de ameaças.
Nesse contexto, o Chile está discutindo no Congresso uma lei que busca proteger as geleiras e que, se aprovada, faria do país o segundo do mundo a ter uma lei como essa. O primeiro foi a Argentina, em 2011.
Avaliação em processo
Apesar de ser o país mais importante da região em termos de geleiras, o conhecimento que se tem sobre essas formações naturais está muito longe do ideal.
“Não sabemos exatamente quantas massas de gelo temos, nem o volume real delas”, assegura Francisco Ferrando, acadêmico do Departamento de Geografia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Chile.
Até agora o inventário contabiliza mais de 24 mil geleiras com uma superfície de um hectare ou mais.
Com exceção de três, todas as massas de gelo presentes no Chile estão retrocedendo, e muitas delas já se fragmentaram
“Muitas estão se fragmentando, e encontramos até nove pedaços provenientes de uma mesma massa de gelo”, conta Gino Casassa, chefe da Unidade de Glaciologia e Neves da Direção Nacional de Águas do Chile.
Esses casos extremos continuarão a ser monitorados, afirma o glaciólogo, mesmo quando esses fragmentos forem menores do que o tamanho mínimo permitido pela tecnologia utilizada para fazer o inventário.
“No Chile há um aumento de temperatura relativamente moderado pela forte influência do Oceano Pacífico, mas nas zonas montanhosas a situação é diferente. É lá onde estão as geleiras”, explica o especialista.
Esse é um dos fatores que propicia o derretimento das massas de gelo. Além disso, a geografia extensa do Chile tampouco ajuda na proteção das geleiras. Podem-se encontrar glaciares nas altas montanhas do norte e centro do país, mas também em grandes extensões ou campos de gelo na Patagônia. Essa dispersão dificulta o estudo.
As mudanças climáticas são a ameaça mais forte. Todos os modelos predizem que as precipitações no norte e centro do Chile diminuirão de maneira significativa, conta Fabrice Lambert, professor do Instituto de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do Chile e pesquisador do Centro de Ciência do Clima e Resiliência CR2.
Além disso, a cota de altura onde agora cai chuva em vez de neve é cada vez mais alta. Assim, quanto menor quantidade de precipitação, também é menor a possibilidade de transformar a água em gelo.
Em agosto, o Instituto Antártico Chileno publicou um estudo sobre as precipitações de neve nas altas montanhas ao leste da cidade de Santiago. Desde o fim da década de 1970, a precipitação de neve caiu três centímetros por década, resultando numa redução anual dos degelos de entre 8,54 e 15,14 gigatoneladas, o equivalente ao consumo de água de todo o Chile durante 14 anos.
Efeito humano
Outro fator de pressão sobre as geleiras são as atividades humanas. Num país minerador como o Chile — onde 45% de todas as exportações provêm da mineração — isso tem uma importância significativa.
“As atividades mineradoras geram diferentes tipos de contaminantes que podem afetar as geleiras”, explica Francisco Ferrando. Como as minas estão a céu aberto, os efeitos nas massas de gelo são muito diversos, dependendo da distância.
Há muitos depósitos de materiais descartados de atividades de mineração sobre os glaciares rochosos, por exemplo. “Isso gera uma sobrecarga e desestabiliza a estrutura do gelo”, acrescenta o cientista.
Segundo o informe da Cochilco, o impacto da mineração sobre as geleiras é de aproximadamente 35 milhões de metros cúbicos.
Por isso, está em discussão no Congresso um projeto de lei que busca proteger as geleiras. Embora haja certo consenso entre os parlamentares e autoridades a respeito da necessidade de proteção, o projeto não está isento de polêmica. Caso seja aprovada, a lei não só restringiria futuros projetos de mineração, mas também fecharia quatro minas que atualmente estão em funcionamento.
As minas de Los Bronces, Los Pelambres, Codelco División Andina e El Teneinte, no centro do país, teriam que encerrar suas operações. Cerca de 35 mil empregos diretos seriam extintos, além de outros 100 mil indiretos. Um estudo da Comissão Chilena do Cobre (Cochilco) analisou os impactos da lei e estimou que a produção mineradora do Chile se reduziria em 30%.
Isso ocorreria porque a lei não considera apenas a proteção das geleiras, mas também do ambiente periglacial (solos congelados) e do permafrost (tipo de solo ou rocha com uma fração permanentemente congelada). A área protegida seria muito mais extensa. Além disso, a regulação seria retroativa.
Segundo o informe da Cochilco, o impacto da mineração sobre as geleiras é de aproximadamente 35 milhões de metros cúbicos.
Debate sobre o projeto
“Esse projeto de lei é um bom começo, mas há várias coisas que precisam melhorar”, opina Francisco Ferrando. “O Chile é um país minerador, e isso não pode ser ignorado”, acrescenta.
Gino Casassa, por outro lado, afirma não estar convencido de que seja necessária uma lei específica para proteger as geleiras.
“Enquanto apenas um país tem esse tipo de lei, várias outras nações são exemplos de proteção sem um sistema regulatório específico, como o Canadá, a Suíça ou a Noruega”, afirma. Temos que melhorar e fortalecer as leis ambientais que o Chile já tem, acrescenta Casassa, e também se pode optar pela mineração subterrânea.
Atualmente, 86% das geleiras são parte das Áreas Silvestres de Protegidas, e o resto está protegido pelo Sistema de Avaliação de Impacto Ambiental. Isso não é suficiente, segundo a geógrafa Fernanda Miranda, da Fundação Terram.
“A representatividade das geleiras nas áreas protegidas é muito baixa e, além disso, ainda temos que fazer o inventário de muitas delas”, explica. Mas esse não é o único problema. “Essas superfícies também não representam a realidade da zona norte e centro do país”, acrescenta.
Embora 88% das geleiras do Chile estejam concentradas no extremo sul — nos campos de gelo da Patagônia —, o resto se encontra em sua maior parte no norte e centro do país, onde têm importância crucial para a segurança hídrica do país.
Além disso, continua a geógrafa, a opção pela mineração subterrânea em torno das geleiras é discutível. “Nenhuma parte do mundo tem experiência com isso”, afirma.
Em toda essa discussão há outros fatores que foram deixados de lado e que também causam uma pressão negativa sobre as geleiras.
O carbono negro que vem das grandes cidades como Santiago também pode ser uma fonte de ameaça, conta Fabrice Lambert. Dados obtidos pelo cientista demonstram a presença desse contaminante na neve de alta montanha, mas faltam dados para determinar seu impacto.
Independentemente da aprovação ou não do projeto de lei, ele serve para que o tema seja discutido pelo público mais amplo, opina Fernanda Miranda. “Sobretudo porque as geleiras estão ausentes do processo da COP25”, afirma.