Para muitas cidades na América Latina, o transporte é sinônimo de congestionamentos e poluição. O setor é a maior fonte de emissões de carbono, além de ser o que mais cresce, na região. Aproximadamente 50 mil latino-americanos morrem prematuramente todos os anos devido às doenças respiratórias.
Apesar disso, existe uma janela de oportunidade para a região abraçar a eletrificação dos veículos. Os primeiros passos nessa direção já estão sendo dados, e várias cidades, da Argentina à Colômbia, começaram a trocar seus ônibus a diesel por modelos elétricos, comprados principalmente de fabricantes chineses.
Em uma entrevista ao Diálogo Chino, Lisa Viscidi, diretora do Programa de Energia, Mudanças Climáticas e Indústrias Extrativas do Dialogo Interamericano, explicou que a região já fez mudanças expressivas, mas precisa fazer mais. Mas, ela alerta, o coronavírus pode atrasar significativamente o progresso nessa área.
Diálogo Chino [DC]: Por que a transformação do setor de transportes é tão necessária na América Latina?
Lisa Viscidi [LV]: A questão mais urgente é a poluição do ar. É algo que afeta todos. É tangível. As pessoas sentem na pele. A poluição causa milhares de mortes na região todos os anos e, na opinião da maioria, é a questão mais urgente. Quanto às mudanças climáticas, podemos afirmar que o setor é a maior fonte de emissões na região. Implantar o transporte elétrico é a maneira mais viável de lidar com essas questões. Os benefícios seriam inclusive econômicos e isso fica claro quando consideramos os veículos que circulam durante a maior parte do dia, como ônibus e táxis. Ajudaria os países a reduzirem os gastos com combustível. As maiores despesas com os veículos elétricos são aquelas iniciais, mas depois os benefícios superam os gastos, principalmente nos países que dependem do petróleo.
DC: O quanto o setor de transportes contribui para as emissões?
LV: O transporte é uma das maiores fontes de emissões, além de ser o que mais cresce. Em outras regiões, onde os países dependem do carvão, a eletricidade é uma fonte muito maior de emissões. Mas, na América Latina de um modo geral, a eletricidade é uma fonte de energia de baixo carbono, uma vez que a região usa fontes renováveis, principalmente a energia hidrelétrica. Mas a região depende muito do petróleo para abastecer o setor de transportes, com exceção de alguns biocombustíveis no Brasil. A motorização está crescendo em um ritmo acelerado e o número de pessoas que compra carros está aumentando rapidamente.
DC: O que diferencia a América Latina de outras regiões em termos das possibilidades de melhorar o setor de transportes?
LV: O setor de transportes, como um todo, tem muitos problemas, e eles precisam ser solucionados. Além do congestionamento e outros problemas de trânsito, ele é uma grande fonte de emissões e poluição. Precisamos eletrificar os veículos, principalmente aqueles de uso coletivo, e implementar melhorias para que as pessoas possam se deslocar a pé e de bicicleta. O compartilhamento de bicicletas também pode ajudar, bem como delimitar áreas restritas à circulação de carros. O sistema de rodízio de veículos com base nos números da placa não teve sucesso. O problema dos transportes é grave e precisa ser enfrentado.
DC: Quais foram os avanços que você observou na região em termos de eletrificação?
LV: Vimos grandes avanços em um punhado de países que antes contavam com poucos veículos elétricos. Em alguns países, os avanços aconteceram mais no transporte público; em outros, no transporte privado. Houve um crescimento muito grande no uso de ônibus elétricos em Santiago do Chile – o maior crescimento fora da China –, mas muito pouco no de carros elétricos. O uso de carros elétricos na Colômbia, por outro lado, vem crescendo todos os anos. Bogotá introduziu ônibus elétricos na Transmilenio, por exemplo. Mas, se considerarmos o tamanho das cidades da região, veremos que o número de veículos elétricos ainda é muito pequeno.
DC: Quais são as opções de financiamento para os ônibus elétricos?
LV: Uma das questões mais importantes nos esquemas de ônibus é o financiamento deles. Uma coisa muito interessante que aconteceu é que algumas cidades descobriram formas alternativas de financiar a compra dos ônibus. Elas conseguiram fundos do setor privado e não precisaram depender dos empréstimos de bancos multilaterais de desenvolvimento ou mesmo dos seus próprios bancos nacionais. Essa tendência começou em Santiago, e algo bastante parecido aconteceu em Bogotá, onde a conversão da Transmilenio será realizada por meio de fundos de private equity. Se o setor privado está financiando os esquemas de ônibus, claramente há um bom modelo de negócios aí, que proporciona bons resultados.
DC: Apesar de algumas histórias de sucesso na eletrificação do transporte público, a maioria das cidades lidou com muitos obstáculos. Esses obstáculos permanecem ou a região já conseguiu vencê-los?
LV: Os obstáculos ainda estão lá, na maioria dos casos. O crescimento é significativo em poucos países. Na região como um todo, os veículos elétricos ainda são uma parte pequena da frota de veículos. O preço continua senda a maior barreira e a crise gerada pelo coronavírus vai criar dificuldades para o setor de veículos elétricos na América Latina. Não estamos mais vendo os benefícios fiscais que atraíam os consumidores para este tipo de veículo. A aceitação deles vai diminuir devido à crise. A infraestrutura é outro grande obstáculo, uma vez que não há pontos de recarga suficientes. Santiago tem um número razoável deles, mas muitas cidades não têm o suficiente. Houve melhorias no âmbito das políticas. A gente pode até esperar o setor privado ou os consumidores a tomarem a iniciativa, mas os governos precisam ter uma estratégia também.
DC: O petróleo barato impede a eletrificação dos transportes?
LV: Cada país usa uma política diferente para o preço dos combustíveis. Em alguns países, os preços vão cair muito, mas em outros, onde há menos liberalização, não haverá uma grande flutuação. Quem está comprando carros elétricos não é motivado pelo preço dos combustíveis. No transporte público, porém, a realidade é outra. As autoridades municipais precisam analisar os custos, mas isso é feito ao longo da vida útil do veículo e não apenas num momento inicial. O preço do petróleo flutua muito durante a vida de um ônibus, estimada em 20 anos. As cidades não devem basear a sua análise nos preços de hoje.
DC: Você foi coautora de um relatório em 2018 que descobriu que, se a atual frota de ônibus e táxis em 22 cidades latino-americanas fosse substituída por uma com veículos elétricos, a região economizaria até US$ 64 bilhões em combustível até 2030, além de evitar a emissão de 300 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Houve alguma mudança nessa projeção devido ao contexto atual?
LV: Todos os cálculos relacionados à energia e ao transporte precisam ser revistos levando em conta o que vem acontecendo. O petróleo está mais barato do que na época em que fizemos os cálculos e o uso dos transportes também mudou bastante. Não está claro como as pessoas vão circular depois do coronavírus. Em um primeiro momento, pode haver um receio maior em usar o transporte público, o que levaria a um declínio nesse setor. Também haverá mais pessoas trabalhando de casa e andando menos de carro.