Clima

Geoengenharia na América Latina pode trazer mais problemas que soluções

Nova área de pesquisa ganha força como alternativa contra mudanças climáticas, mas especialistas alertam para seus riscos
<p>Solo seco no Lago Cuitzeo, em Michoacán, no México. O governo mexicano diz que quer banir experimentos de geoengenharia do país (Imagem: Brian Overcast / Alamy)</p>

Solo seco no Lago Cuitzeo, em Michoacán, no México. O governo mexicano diz que quer banir experimentos de geoengenharia do país (Imagem: Brian Overcast / Alamy)

“Cada vez ficava mais quente”.

Assim começa O Ministério do Futuro (tradução livre), de Kim Stanley Robinson. Ao contrário de outras obras do ficcionista americano, geralmente ambientadas num futuro distante, o romance publicado em 2020 se passa em 2025 e descreve as consequências realistas das mudanças climáticas, que já impactam a vida na Terra: ondas de calor intensas e prolongadas, enchentes e caos político.

Os últimos relatórios apresentados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam que a temperatura da Terra deve aumentar em 1,5 ºC acima dos níveis pré-industriais.

O que é a geoengenharia


Também conhecida como engenharia climática, é um conjunto de técnicas projetadas para modificar o clima e aliviar os impactos do aquecimento global.

A urgência da crise climática provocou um debate entre cientistas e governos sobre os métodos para conter seu avanço. É nesse contexto que entra a geoengenharia, termo que abrange técnicas destinadas a aliviar os efeitos do aquecimento global, conforme o glossário do IPCC. 

A comunidade científica divide a geoengenharia em duas amplas categorias: a remoção de gases de efeito estufa da atmosfera – principalmente CO2 – e a modificação da radiação solar. Essas incluem uma variedade de outras abordagens – desde pintar um telhado de branco para refletir os raios do sol até injetar aerossóis na estratosfera.

“À medida que nos aproximamos de 2°C [de aumento] da temperatura global, muitos acreditam que a geoengenharia se torna uma possibilidade de gerenciar alguns dos riscos do aquecimento global. O debate mudou, e o que antes não figurava na agenda, agora está praticamente em toda parte”, diz Janos Pasztor, diretor-executivo da Carnegie Climate Governance Initiative (C2G).

A América Latina é uma das regiões menos desenvolvidas nesse campo. Poucos projetos existem, e muitos alimentam interesses comerciais em vez da agenda climática. No entanto, dadas as consequências potencialmente abrangentes da geoengenharia, mais pesquisas são necessárias para compreender o impacto dessas intervenções.

“Se não tivermos regras claras, qualquer um pode fazer o que quiser. É um debate que deve envolver todos”, acrescenta Pasztor.

Remoção de CO2 na América Latina

De acordo com o Mapa de Geoengenharia, iniciativa da sociedade civil que rastreia iniciativas afins ao tema, há atualmente 764 projetos ativos de geoengenharia em todo o mundo. A maioria está nos Estados Unidos, na Europa e na China. A América Latina e o Caribe têm apenas 22 projetos em sete países: Brasil, Argentina, México, Chile, Jamaica, Porto Rico e República Dominicana. Metade deles é dedicado à remoção de gases de efeito estufa da atmosfera, como o CO2.

Alguns são baseados em processos naturais, como o plantio de florestas. Outros são processos mistos, como a bioenergia com captura e armazenamento de carbono, que cultiva plantas para a produção de combustível e depois capta o CO2 gerado quando a biomassa é convertida em energia. Outros são puramente tecnológicos, como a captura e armazenamento de carbono, que envolve a extração química e o bloqueio do CO2 na fonte de emissão antes de entrar na atmosfera.

Gráfico mostrando a captura e o armazenamento de carbono
Bioenergia com captura e armazenamento de carbono (Ilustração: James Round / China Dialogue)

Todos são controversos em um ou outro sentido. A remoção de CO2 da atmosfera na escala necessária é cara e dispendiosa em energia e outros recursos. Além disso, sua aplicação é logisticamente difícil.

De acordo com Inés Camilloni, professora do Departamento de Ciências Atmosféricas e Oceânicas da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas da Argentina, não há projetos de geoengenharia em larga escala na América Latina. “Há técnicas mais localizadas, de curto alcance e sem qualquer impacto global”, diz.

Os projetos de geoengenharia na região são técnicas mais localizadas, de curto alcance e sem qualquer impacto global

A maioria dos projetos são iniciativas privadas de baixo impacto: eles removem o CO2 de uma ou duas indústrias. Um exemplo é o acordo entre a francesa Air Liquide e a subsidiária da Coca-Cola no Brasil. Desde 2012, a empresa europeia tem fornecido CO2 capturado e armazenado para adicioná-lo aos refrigerantes produzidos pela Coca-Cola, mas não há registro público dos volumes envolvidos.

Há também projetos de maior escala ligados a governos e empresas nacionais ou estrangeiras, como o Highly Innovative Fuels Global. Desde 2016, a HIF Global vem desenvolvendo eletrocombustíveis que utilizam energia de fontes renováveis e capturam CO2 para produzir combustíveis neutros em carbono. A empresa tem fábricas no Chile.

Barreira contra o sol

O gerenciamento da radiação solar, outra abordagem importante da geoengenharia, é complexa, diz Camilloni, que trabalha na modificação da radiação solar. “É uma das técnicas mais abrangentes e perigosas”, adverte. Camilloni explica que o objetivo principal é refletir os raios solares longe da Terra, mas a técnica é ainda menos desenvolvida do que a remoção de carbono.

“A [técnica] mais básica é pintar superfícies de branco, algo que não tem impacto global”, diz a pesquisadora. “Existem várias opções terrestres, como cobrir o gelo com uma capa, e outras no espaço, como a instalação de espelhos na atmosfera e a injeção de aerossóis estratosféricos [SAI], a técnica mais perigosa, mas a que mais tem potencial para causar um efeito global”, acrescenta.

Gráfico mostrando a injeção de aerossóis estratosféricos
Injeção de aerossóis na estratosfera (Ilustração: James Round / China Dialogue)

O efeito foi demonstrado quando o Monte Pinatubo, nas Filipinas, entrou em erupção, em junho de 1991. Mais de uma década depois, em 2005, John Church, na época pesquisador da Organização de Pesquisa Científica e Industrial da Commonwealth da Austrália, mostrou que a erupção havia interrompido brevemente o aquecimento atmosférico e oceânico. Cinzas e gases ejetados pelo vulcão formaram uma gigantesca cortina de fumaça de aerossóis na atmosfera que refletiam grande parte da luz solar para longe da superfície terrestre.

De acordo com Andy Parker, diretor-executivo da Degrees Initiative, organização que pesquisa os efeitos da modificação da radiação solar no Sul Global, a SAI pode ser realmente útil. “É a única maneira conhecida de deter ou reverter rapidamente o aumento da temperatura global se não reduzirmos nossas emissões globais de gases de efeito estufa”, aponta.

“Mas esses métodos também podem ser muito perigosos. Nós não conhecemos inteiramente os efeitos da implementação desse tipo de tecnologia. Pode haver coisas lá fora que os cientistas ainda não tenham descoberto. Sabemos que se o fizermos de maneira irrestrita ou irregular, isso pode alterar padrões meteorológicos”, acrescenta Parker.

Parker refere-se aos consideráveis efeitos colaterais que a modificação da radiação solar poderia trazer, tais como chuva ácida ou redução da camada de ozônio.

Na América Latina, a Iniciativa Degrees financiou dois projetos de pesquisa que medem os efeitos da injeção de aerossóis na estratosfera: um em Buenos Aires, liderada por Camilloni, e um na Jamaica, coordenado por Leonardo Clarke, professor no Departamento de Física da Universidade das Índias Ocidentais.

“Na bacia do Prata, nossos resultados indicam um aumento da pluviosidade. O que isto significa? Se o SAI for implementado no mundo, a Argentina terá que descobrir o que acontece com as hidrelétricas no rio Paraná e as colheitas na região”, explica Camilloni.

Clarke explica que, na Jamaica e no Caribe, de acordo com os dados coletados, “haveria um aumento da precipitação em alguns períodos do ano e mais secas em outros”. Ambos cientistas concordam que esse é o tipo de pesquisa necessária para estabelecer as regras da geoengenharia solar.

Tensão entre países

A C2G atualmente trabalha com governos e grupos de negociação climática, como o G77 mais a China, para incentivar a discussão sobre a governança da geoengenharia. No entanto, poucos estão prontos para tomar uma posição sobre o assunto no momento, diz Janos Pasztor.

“Primeiro, não há nada de concreto e, segundo, é uma questão que pode criar muita tensão entre países que poderiam implementar essa tecnologia”, explica o diretor-executivo da C2G.

Vista aérea da refinaria da Ecopetrol em Cartagena, Colômbia
Leia mais: Hidrogênio verde: América Latina avança no ‘combustível do futuro’

Na América Latina, a organização já falou com funcionários de alto escalão em Argentina, Uruguai, Chile e Colômbia – e planeja visitar Panamá, México, Costa Rica e Brasil ainda este ano.

“Os ministérios do meio ambiente nos asseguraram que há uma séria preocupação com os riscos da geoengenharia”, diz Pasztor.

Até o momento, o México é o único da região que fez uma declaração pública sobre geoengenharia, no início do ano. O Ministério do Meio Ambiente e o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia se posicionaram contra a “experimentação com geoengenharia solar” no país e disseram que implementariam uma estratégia para proibir essas práticas em todo o país.

A declaração veio após a Make Sunsets, startup climática fundada em outubro de 2022 nos Estados Unidos, conduzir um experimento de forma irregular: a empresa enviou balões injetados com partículas de dióxido de enxofre na atmosfera no estado mexicano de Baja California. O governo mexicano alega que o experimento foi conduzido “sem aviso prévio ou autorização”.

C2G acredita que a questão da geoengenharia pode surgir na conferência de mudanças climáticas COP28 nos Emirados Árabes Unidos ainda este ano.

“Queremos que os grupos de negociação latino-americanos deem as cartas”, diz Pasztor, referindo-se ao desejo de que estejam totalmente por dentro do assunto. Isso, argumenta ele, poderia gerar um debate político mais profundo na América Latina sobre o papel da geoengenharia.

No Ministério do Futuro, a geoengenharia foi uma das principais formas pelas quais a humanidade mitigou o aquecimento global. No entanto, esse futuro veio com um grande custo – milhões morreram e milhares se tornaram refugiados climáticos. No mundo real, uma pesquisa mais abrangente é extremamente necessária para evitar os perigos alertados pelos cientistas.

-->