Depois que mais de 60% da população chilena rejeitou em 2022 a proposta de uma Constituição progressista, o governo tenta novamente pautar o debate para reescrever o texto de 1980, um legado da ditadura de Augusto Pinochet.
O processo começou em 2019, quando milhares de chilenos saíram às ruas em protesto contra várias questões sociais e políticas, incluindo o aumento do custo de vida. A onda de manifestações também levou a um referendo no qual a maioria esmagadora da população apoiou a necessidade de reescrever sua Constituição.
Desde então, houve uma pandemia, uma mudança de governo — do empresário Sebastián Piñera para o jovem de esquerda Gabriel Boric — e uma proposta de Constituição fracassada. Agora, 50 conselheiros eleitos pelos chilenos deliberam sobre as alterações do texto, que será novamente submetido a um plebiscito no final do ano.
Após a derrota do ano passado, o governo Boric definiu um novo processo, acordado com a oposição, no qual os partidos políticos são os protagonistas na reformulação do documento — ao contrário do que se viu na Constituinte anterior, com ampla representação de forças apartidárias.
Em janeiro, o Congresso chileno nomeou uma comissão com 24 especialistas para escrever o rascunho da nova Constituição. Esse texto já foi disponibilizado ao público e serve de base para o trabalho do Conselho Constitucional.
Mas há preocupações com os rumos da nova Carta Magna: o partido Republicano, legenda de extrema-direita criada por José Antonio Kast (derrotado na última eleição presidencial), conquistou 23 das 50 cadeiras do Conselho. Isso não lhe garante maioria, mas sim poder de veto, já que são necessários 30 votos para aprovar um artigo.
Diante desse cenário, analistas acreditam que o meio ambiente e as mudanças climáticas terão um espaço reduzido na nova proposta de Constituição do Chile.
A proposta dos especialistas
Um levantamento recente do think tank chileno Espacio Público sobre o atual processo constituinte mostrou que 89% dos entrevistados classificam a proteção ambiental como “muito importante” na nova Constituição. Essa questão foi a segunda mais relevante, atrás dos direitos sociais, com 91% dos votos.
Alexis Cortés, professor de sociologia da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago, foi um dos especialistas indicados pelo Congresso para redigir o rascunho. Segundo ele, a proposta atende às demandas públicas, com um capítulo sobre proteção ambiental, sustentabilidade e desenvolvimento.
“O debate foi bastante difícil, mas conseguimos chegar a um consenso bastante valioso”, diz Cortés. “Embora seis artigos [sobre meio ambiente] seja pouco, em termos qualitativos representam um avanço substancial e colocam o país em uma posição de destaque nessas questões”.
A proteção ambiental ainda é vista como uma ameaça ao desenvolvimento econômicoPilar Moraga, diretora do Centro de Direito Ambiental da Universidade do Chile
Para os advogados ambientais que acompanharam o debate constitucional, o texto é muito menos ambicioso do que o proposto no projeto rejeitado, mas traz alguns avanços em comparação com a Constituição de 1980.
Se, por um lado, o atual projeto permite a privatização da água por meio de concessões, por outro reconhece o direito humano à água e seu caráter de bem público. Há 13 anos, o Chile sofre com uma crise hídrica que prejudica o abastecimento e causa tensões em várias regiões.
Esse reconhecimento legal “poderia ajudar a resolver os problemas da água, porque os interesses privados devem estar alinhados com o interesse público e o bem comum”, explica Ezio Costa, advogado e diretor da organização de direito ambiental Fima.
No entanto, Pilar Moraga, diretora do Centro de Direito Ambiental da Universidade do Chile, diz que o avanço da Constituição será limitado. “O status quo é mantido, o que, diante da crise climática que vivemos, cria uma lacuna muito grande”, afirma.
Moraga ressalta que, na comissão de especialistas escolhida pelo Congresso, não havia um único membro com experiência em direito ambiental. “A proteção ambiental ainda é vista como uma ameaça ao desenvolvimento econômico, e essa tensão fica evidente entre os partidos políticos e os especialistas indicados”, diz.
Domínio da extrema-direita
Pouco antes da posse do novo Conselho Constitucional, o próprio Boric endossou abertamente a nova proposta de Constituição: “Os especialistas fizeram um trabalho muito sério. Ninguém ficou totalmente satisfeito, ninguém ganhou 100%, mas é um texto aceitável para todos os que fizeram parte de sua deliberação”. O presidente chileno acrescentou que votaria a favor do texto.
Diante do triunfo do Partido Republicano, a estratégia de Boric e seus aliados foi comemorar as pequenas vitórias do projeto, explica Moraga: “A proposta da comissão de especialistas estabelece parâmetros muito rasos para a proteção legal do meio ambiente. Considerando a formação do Conselho Constitucional, esse avanço mínimo terá de ser defendido. O primeiro desafio é não retroceder”.
Há algumas semanas, 31 parlamentares de direita — liderados por representantes republicanos — rejeitaram uma declaração que reconhecia o impacto da atividade humana sobre as mudanças climáticas, mostrando o quão dura será a disputa.
Os conselheiros eleitos já receberam o projeto e poderão propor emendas, que finalmente serão analisadas em plenária.
A Unidade pelo Chile, aliança de partidos que inclui a coalizão do governo Boric, tem apenas 16 assentos no conselho, e há apenas um representante dos povos indígenas. Além da maioria das cadeiras, a ultradireita detém a presidência do conselho.
Para Cortés, sociólogo do grupo de especialistas, será difícil aprovar os artigos ambientais. Os republicanos, diz ele, “poderiam muito bem escrever ou reescrever a Constituição”. Apesar da receptividade a essas propostas em um primeiro momento, as chances de se manterem no texto final são baixas, avalia.
Ninguém ficou totalmente satisfeito, mas é um texto aceitável para todosGabriel Boric, presidente do Chile
Ambientalistas seguem pressionando por melhores e mais abrangentes dispositivos ambientais na Constituição. Porém, questões como a criação de uma ouvidoria ambiental, garantias de proteção ambiental e direitos de acesso a informações ambientais não foram incluídos no novo rascunho.
Embora menos amplo e inclusivo em relação à tentativa anterior, o atual processo constituinte ainda tem bastante participação popular: foram 54 propostas de artigos apresentadas por cidadãos. Ezio Costa, da Fima, acredita que várias organizações estão se articulando “para apresentar melhores projetos de lei, garantir assinaturas e, com sorte, incluí-los na nova Constituição”.
O conselho constitucional terá até 7 de novembro para negociar emendas e apresentar uma proposta final, com um plebiscito marcado para 17 de dezembro.