Diversos incêndios florestais atingiram o centro e o sul do Chile nas últimas semanas, sendo os da região de Valparaíso os mais letais da história recente do país. Até o dia 12 de fevereiro, pelo menos 131 pessoas haviam morrido em decorrência dos incêndios, mais de 300 estavam desaparecidas e mais de 40 mil foram afetadas, segundo fontes oficiais.
O presidente chileno, Gabriel Boric, descreve os últimos incêndios como “a maior tragédia” que o país enfrentou desde o terremoto de 2010, que deixou 525 mortos e afetou cerca de dois milhões de pessoas. Embora as chamas na região de Valparaíso já tenham sido contidas, o trabalho de reconstrução será complexo — até agora, 20 mil toneladas de escombros foram removidas.
O Diálogo Chino conversou com Miguel Castillo, professor do Laboratório de Incêndios Florestais da Universidade do Chile, para entender as principais causas dos incêndios. Castillo explica que vários fatores contribuíram para a tragédia — entre eles, a silvicultura — e defendeu a necessidade de um plano governamental abrangente de recuperação e prevenção de futuros desastres.
Resposta tardia aos alertas
Em situações de emergência, a população chilena recebe um alerta em seus telefones por meio do Sistema de Alerta de Emergência (SAE), gerido pelo Serviço Nacional de Prevenção e Resposta a Desastres. Esse sistema de alerta é integrado a todos os dispositivos móveis e emite notificações com orientações de evacuação em zonas de risco.
O presidente Boric garante que os alertas foram enviados, mas acredita que a evacuação foi difícil devido à veloz dispersão das chamas: em algumas áreas, o fogo se alastrou a mais de dez quilômetros por hora (km/h) — mais rápido do que a maioria das pessoas consegue andar. Porém, algumas vítimas disseram não ter recebido o alerta, levando o governo a pedir uma investigação sobre o funcionamento do sistema.
No Chile, temos a cultura de terremotos, enchentes e secas. Mas não temos uma cultura de incêndiosMiguel Castillo, professor do Laboratório de Incêndios Florestais da Universidade do Chile
Castillo diz que, embora o sistema de alerta tenha funcionado na maioria dos casos, ele não informou às pessoas para onde deveriam fugir. “O alerta do SAE deve ser acompanhado de uma instrução preventiva sobre como agir”, observa. “No Chile, temos a cultura de terremotos, enchentes e secas. Mas não temos uma cultura de incêndios”.
Muitas pessoas em Valparaíso também decidiram ficar em casa e não seguir as instruções de evacuação “na esperança de que o fogo não as alcançasse e também para proteger suas propriedades” contra roubos, acrescenta Castillo. Mas, segundo ele, essa decisão gerou ainda mais problemas: “Quando elas tentaram fugir, não conseguiram”.
Falhas no planejamento urbano
Na região mais afetada, Valparaíso, a infraestrutura urbana é outro fator que explica a escala dos incêndios. Segundo Castillo, a população aumentou significativamente nos últimos anos, e hoje se expande para zonas de risco em encostas. Além disso, muitas dessas casas podem ter sido construídas com materiais inflamáveis, como madeira.
“Os carros de bombeiros não conseguiam apagar os incêndios devido à falta de estradas ou porque ficavam presos em ruas estreitas”, disse o pesquisador.
Além disso, explica Castillo, algumas moradias nas áreas devastadas estavam localizadas em pontos onde originalmente havia aceiros — espaços de terra sem qualquer material ou vegetação para impedir a propagação do fogo: “Os municípios foram avisados do risco. Mas, uma vez que as casas são instaladas, é difícil removê-las”.
A ministra do Desenvolvimento Social e da Família, Javiera Toro, calcula que a reconstrução das casas leve “alguns anos”. Na opinião de Castillo, reconstruir a área como era antigamente “seria irresponsável” em razão do risco contínuo de incêndio. Em vez disso, este seria o momento oportuno para melhorar o planejamento urbano.
Fatores climáticos
Um estudo de 2020 do Centro de Pesquisa sobre Clima e Resiliência (CR2) constatou que, desde 2010, os incêndios florestais no centro-sul do Chile aumentaram em número de ocorrências e área queimada se comparados aos das três décadas anteriores. A duração média da temporada de incêndios também se estendeu.
Nos primeiros dias de fevereiro, quando os incêndios eclodiram, a América do Sul enfrentava uma onda de calor que elevou as temperaturas na região de Valparaíso a 33 °C. Ao mesmo tempo, a região registrou rajadas de vento de até 60 km/h, o que permitiu que as chamas se espalhassem rapidamente.
Desde 2010, o Chile vem sofrendo com uma seca severa provocada por fatores humanos e climáticos, mas em 2023 houve mais chuvas do que o normal. Isso permitiu a regeneração da grama e dos arbustos, que são facilmente inflamáveis, diz Castillo: “Essa vegetação se somou à carga de combustível de outros anos que não havia queimado”.
Desde a década de 1960, a temperatura média no Chile aumentou em média 0,13 °C por década. O estudo da CR2 estima que esse aumento gradual da temperatura, impulsionado pelas mudanças climáticas, contribuiu para 20% da área queimada entre 1985 e 2016 no centro-sul do Chile. E as projeções climáticas, aponta o estudo, são desanimadoras: o risco de incêndios deve aumentar ainda mais.
Espécies invasoras
Nos últimos 40 anos, a zona centro-sul do Chile, a mais afetada pelos incêndios, foi transformada em vastas plantações florestais de espécies exóticas, especialmente pinheiros e eucaliptos, introduzidas para a produção de madeira e celulose. De fato, a área agora tem mais hectares de plantações florestais do que de florestas nativas.
O CR2 destacou no relatório que as plantas exóticas podem modificar a dinâmica dos incêndios florestais, aumentando a velocidade de propagação, bem como sua extensão, frequência, intensidade e sazonalidade. Cerca de 70% das plantas exóticas no Chile são provenientes de regiões onde os incêndios florestais ocorrem com frequência, como a América do Norte e a Austrália.
“Em um cenário de mudanças climáticas no qual as condições de temperatura e umidade aumentarão a frequência, extensão e intensidade dos incêndios florestais, a expansão da vegetação exótica pode exacerbar os impactos nos ecossistemas naturais e no bem-estar humano, aumentando o risco de incêndios florestais”, avalia a pesquisa do CR2.
Castillo observa que as empresas de silvicultura ampliaram seus investimentos em projetos de prevenção de incêndios, mas seus esforços ainda são vistos como insuficientes pelo próprio governo. Durante os incêndios, Boric levantou a necessidade de uma melhor regulamentação da silvicultura, mas a Sociedade de Fomento Industrial, que representa o setor, rebateu as falas do presidente, argumentando que a indústria florestal “não tem qualquer relação com esses acontecimentos”.
Dúvidas sobre incêndios intencionais
Pelo menos alguns incêndios recentes no Chile podem ter sido provocados intencionalmente, afirmou a ministra do Interior e da Segurança Pública, Carolina Tohá. Boric garantiu que, se os responsáveis pelos incêndios forem identificados, “eles serão encontrados e terão de enfrentar o repúdio da sociedade e o peso da lei”.
Conforme o estudo da CR2, os incêndios no Chile são causados principalmente pela ação humana, seja deliberadamente ou por acidente. A ocorrência e o risco de incêndios estão ligados à proximidade de centros urbanos, estradas, locais de lazer e ferrovias.
Dos incêndios registrados entre 1985 e 2018, só foi possível determinar a causa de 89% deles, diz o CR2. Desses, 56% foram acidentais, 32% intencionais, 11% sem causa conhecida e menos de 1% naturais — estes últimos causados principalmente por raios. Na zona centro-sul, os incêndios foram majoritariamente acidentais.
Incêndios intencionais apresentam desafios para a segurança e a prevenção, diz Castillo, que observou que os sistemas de prevenção tiveram um aumento significativo em seu orçamento. “Eles foram modernizados, e o Chile é agora uma referência regional”, disse o pesquisador. “Mas o que foi conquistado com a modernidade se perde com a intencionalidade. Você pode ter pessoas muito preparadas para o primeiro tipo de resposta, mas um grupo pode provocar um incêndio por outros meios”.