A União Europeia (UE) precisa reduzir a pegada de carbono de seus transportes — responsáveis por um quarto das emissões de CO2 do bloco — para cumprir sua meta de neutralidade climática até 2050. Para isso, quer colocar 30 milhões de veículos elétricos (VEs) em suas estradas até 2030. Mas isso requer uma enorme quantidade de lítio — componente essencial para as baterias dos veículos elétricos.
Em um plano estratégico publicado em setembro de 2020, a Comissão Europeia (o braço executivo da UE) estimou que o bloco precise de 18 vezes mais lítio em 2030, em comparação com a oferta atual, para atender à demanda das baterias de VEs.
Mas a UE não produz lítio. Ela depende de sua importação: 78% vêm do Chile, 8% dos EUA e 4% da Rússia. Portanto, uma questão importante para a Europa é como obter a quantidade necessária desse mineral.
Hoje o Chile produz 44% da oferta global de lítio, seguido pela China, com 39%.
A saída da UE seria explorar novas minas em reservas de seu próprio território, e já existe uma gama de projetos de mineração surgindo em toda a Europa.
Pegada do lítio
O problema do plano é que a mineração de lítio provoca impactos no solo, na água, no ar e até aumenta as emissões de CO2, as quais, ironicamente, a UE quer frear. A corrida por lítio, segundo ambientalistas, é difícil de conciliar com a meta do bloco de ser líder mundial em controle de mudanças climáticas e legislação ambiental.
“Não é apenas uma dicotomia, eu diria que é uma hipocrisia, porque neste momento estamos lidando com uma questão de superconsumo que está impulsionando a crise ecológica e climática”, disse Diego Francesco Marin, especialista em justiça ambiental do European Environmental Bureau (EEB), uma rede de organizações da sociedade civil.
A corrida pelo lítio é difícil de conciliar com o desejo da UE de ser um líder mundial no controle do clima
Marin mencionou planos da mineradora anglo-australiana Rio Tinto de abrir uma mina subterrânea de lítio no vale de Jadar, na Sérvia. A empresa garante que poderia, com isso, produzir o suficiente para atender às necessidades da UE por décadas. Mas a principal atividade econômica da região é a agricultura, as pessoas normalmente vivem vidas de baixo impacto e são muito apegadas à terra.
“Este projeto está sendo vendido de uma perspectiva ambiental como se nos levasse à transição verde e à neutralidade de emissões, mas a um custo enorme”, disse Marin. A multinacional Rio Tinto não quis comentar.
Em resposta, uma autoridade da UE disse ao China Dialogue que a importância econômica e o risco de fornecimento de lítio aumentaram “significativamente” desde a última análise, em 2017.
“Dada a relevância econômica e tecnológica deste recurso, bem como as dependências externas que ele gera, é nossa responsabilidade garantir que a economia europeia possa se beneficiar de uma oferta sustentável e contínua de lítio”, disse o funcionário.
Nova matéria-prima crítica
O plano estratégico foi crucial para as mineradoras, pois pela primeira vez colocou o lítio em sua lista de matérias-primas essenciais, que ganham um tratamento especial na estratégia industrial da UE. Por exemplo, elas podem ser subsidiadas para além dos níveis normalmente permitidos pela lei de auxílios estatais da UE.
Isto foi motivado pelas rupturas nas cadeias de abastecimento globais como resultado da pandemia de Covid-19. A isso se somam as crescentes tensões geopolíticas, notadamente com a China, alimentando temores sobre a continuidade das cadeias de abastecimento.
Johanna Lehne, diretora sênior de políticas do think tank E3G de sustentabilidade, disse: “Há uma sensação crescente de que a China pode instrumentalizar no futuro a dependência de outros países sobre esses materiais, dado o atual contexto geopolítico”.
Essas matérias-primas também formam uma parte importante da estratégia industrial da UE, anunciada em março, de promover a transição verde e digital (para a qual o lítio também é crucial) e criar empregos e crescimento dentro da Europa.
Padrões elevados
A indústria de mineração diz que a extração de lítio é mais limpa do que anteriormente e que, graças à legislação ambiental do bloco europeu, produzir na Europa seria uma forma mais responsável de garantir seu abastecimento.
“A mineração na Europa está de acordo com os mais altos padrões e respeito à legislação”, disse Rolf Kuby, diretor da associação da indústria Euromines.
Muito depende, porém, de sua implementação. “Pensamos que, em comparação com a maioria dos lugares do mundo, os padrões na UE são mais altos. Isto não significa que não haja nenhum problema com as operações de mineração”, comentou Sara Matthieu, membro do Parlamento Europeu que advoga pela agenda ambiental.
Muito depende também do tipo de mineração. O projeto EuGeLi, na Alsácia, liderado pelo grupo minerador francês Eramet, extrairia lítio de salmouras subterrâneas para produzir energia geotérmica.
“A questão crítica para a mineração de lítio é o consumo de água em áreas que já estão sobrecarregadas”, disse Christel Boies, diretora-executiva da Eramet. “Temos 12 patentes sobre uma tecnologia que reduz significativamente o impacto do uso da água. Existem tecnologias, como a nossa, que são realmente compatíveis com o meio ambiente”.
De acordo com o Conselho Europeu de Energia Geotérmica, tais métodos são mais limpos porque a extração é feita no subsolo, não há liberação de fluidos ou gases e, ao utilizar a energia geotérmica renovável, são neutros em emissões.
O chefe de política do conselho, Sanjeev Kumar, disse que esse método poderia evitar na Europa o que se vê no Chile, ou seja, enormes áreas dedicadas à extração de lítio. Ele disse ainda que há grande potencial, por exemplo de a fábrica Vulcan Energy Resources, no Vale do Reno, na Alemanha, produzir lítio suficiente para suprir 400 milhões de veículos elétricos.
No entanto, isto não responde, segundo Marin, da EEB, a uma pergunta crucial: “Quem são as pessoas da área que serão severamente afetadas por esses projetos? Porque todos os projetos de mineração têm uma pegada ecológica”.
Demanda de lítio
As projeções da demanda de lítio refletem as políticas e ambições atuais.
“Com base em diferentes tecnologias, o uso de lítio poderia ser bastante reduzido, ou baseado no [aumento] do transporte público, ou apenas repensando como projetamos nossas cidades”, disse Marin, acrescentando: “Se minerarmos mais lítio, nos limitamos à tecnologia porque não há necessidade de uma alternativa”.
Um relatório recente da OCDE prevê que as emissões totais de CO2 provenientes dos transportes, dadas as políticas atuais, aumentarão em 16% até 2050, em comparação com os níveis de 2015. “As reduções esperadas de emissões dessas políticas serão mais do que compensadas pelo aumento da demanda de transporte”, segundo o relatório.
Políticas mais ambiciosas (incluindo mobilidade compartilhada e melhor planejamento urbano) nas cidades, por exemplo, poderiam trazer uma redução de 22% na atividade do transporte urbano em comparação com as projeções atuais, e uma consequente redução nas emissões de CO2 de até 80% em tais áreas.
Existem também alternativas de lítio para veículos elétricos, incluindo “veículos movidos a hidrogênio produzido de forma sustentável”. No entanto, analistas dizem que é preciso haver mais pesquisa nessa área.
“O veículo a hidrogênio pode competir por uma fatia do mercado, mas devido aos custos, às restrições tecnológicas e de infraestrutura, é muito mais provável que o elétrico se sobreponha”, disse Maria Pastukhova, analista de políticas públicas do E3G.
As baterias de sódio são uma alternativa atraente às de lítio, pois as propriedades químicas são similares. O sódio está mais amplamente disponível e sua pegada ecológica é menor, embora Pastukhova lembre que as baterias de sódio ainda são mais pesadas e menos potentes.
“Nos últimos anos, temos visto algum desenvolvimento. Ainda assim, essa tecnologia ainda não está madura e precisa de muito mais investimento em pesquisa e desenvolvimento antes de poder competir com o lítio no mercado”.
Ela defende que a UE “adote uma abordagem mais holística” para o setor de transportes. "Os carros, sejam eles a combustão ou elétricos, continuam sendo carros. Eles ocupam espaço e têm uma forte pegada de carbono. O planejamento inteligente da cidade, o impulso ao ciclismo e a distâncias mais curtas feitas a pé, a escritórios remotos, etc., são necessários”.
Além de alternativas a veículos individuais, ambientalistas argumentam não haver atenção suficiente, na estratégia da Comissão Europeia, à reciclagem dessas matérias-primas. Enquanto a UE procura se livrar de sua dependência do petróleo, ela corre o risco de substituí-la por uma dependência do lítio.
Uma proposta para um novo regulamento de baterias foi publicada em dezembro passado, o que deve estimular a reciclagem. A Rio Tinto, por exemplo, anunciou em maio um acordo com a InoBat, empresa de tecnologia de baterias, para produzir componentes que podem ser reciclados no final de sua vida útil — imitando o ciclo da natureza onde tudo pode ser reutilizado de alguma forma ou devolvido ao meio ambiente sem causar danos (o chamado cradle-to-cradle).
O que está claro é que os europeus são apegados a seus veículos individuais. Um relatório publicado em junho pela Agência Europeia do Meio Ambiente mostrou que a média de emissões de novos veículos aumentou em 2019, liderada por um apetite por veículos SUV. Ativistas dizem que isto torna mais urgente a circulação de veículos elétricos, apesar da necessidade de tanto lítio.
“Ao usar lítio e cobalto em baterias para construir veículos elétricos [...] são economizados enormes volumes de combustíveis fósseis necessários para abastecer veículos com motores a combustão”, disse Henrike Hahn, membro da bancada verde do Parlamento Europeu.
Para os residentes das muitas áreas onde a Europa está pressionando pela construção de minas, esses argumentos não mudam o fato de que eles perderão suas terras e um modo de vida estabelecido há milênios para garantir o conforto daqueles que estão nas cidades, explicou Marin.
“A razão pela qual eu chamo isso de hipocrisia é porque dizemos sim, vamos atingir a neutralidade de carbono, mas estamos recriando estas questões que são coloniais num sentido em que as pessoas nas periferias são destinadas a prover o consumo do núcleo que, nesse caso, seriam as grandes cidades europeias”.