Em tempos de crise climática e com mercados internacionais atrás de alimentos com sustentabilidade garantida e verificável, a pecuária argentina busca melhorar seus níveis de produtividade e rastreabilidade como forma de diminuir seu impacto ambiental.
A pecuária contribui com 20,7% dos gases de efeito estufa da Argentina, que são principalmente causados pelas emissões da fermentação entérica bovina — um processo da digestão do boi do qual se expele um subproduto do metano. As emissões da pecuária perdem apenas para o setor de energia, com 54%.
Técnicos e analistas de mercado argumentam que o setor argentino pode se tornar neutro ou mesmo com impacto positivo.
Para isso, pedem uma revisão das metodologias utilizadas para calcular as emissões da Argentina e que o carbono capturado em campos e pastagens — que servem de base à maior parte da produção pecuária do país — seja contabilizado a favor do setor.
Isso, no entanto, é questionado por órgãos ambientais, que apontam a pecuária como a atividade responsável pelo desmatamento nas províncias do norte do país, principalmente a partir de 2010. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a atividade seja classificada como sustentável, disse o Greenpeace.
As florestas, assim como os pântanos, são importantes reservatórios de dióxido de carbono, um dos principais gases causadores do aquecimento global. Mundialmente, estima-se que cerca de 20% das emissões globais são provenientes do desmatamento.
Pecuária na Argentina
A Argentina tem cerca de 52 milhões de cabeças de gado, segundo dados do Instituto da Promoção da Carne Bovina Argentina (IPCVA, em espanhol). São cerca de 130,8 mil fazendas dedicadas à pecuária, segundo o último Censo Agropecuário Nacional.
O relatório “Carne Argentina, carne sustentável”, publicado este ano pelo IPCVA, especifica que mais da metade do rebanho bovino está concentrado nas províncias de Buenos Aires, Córdoba e Santa Fé, a principal região agrícola da Argentina. As pastagens nessa região são a base de mais de 50% da produção de carne do país.
52 milhões
É a estimativa de cabeças de gado na Argentina
A Argentina produziu cerca de 3,17 milhões de toneladas de carne em 2020, das quais 900,7 mil toneladas foram exportadas, 75% para a China. Neste ano, nos primeiros três meses — mesmo com cinco meses de limites e proibições às exportações — a China continuou sendo o principal destino, com 109 mil toneladas, seguida de Israel com 11 mil toneladas e do Chile com 8.300 toneladas.
Adrian Bifaretti é engenheiro agrônomo e chefia o departamento doméstico do IPCVA. Em sua opinião, existem mercados de exportação “maduros” em termos de sustentabilidade, como o europeu ou, em parte, o americano, onde a demanda por determinados padrões “é cada vez mais forte”.
Porém, ao nível do mercado interno argentino, que consome 70% da carne produzida, esse perfil de consumo ainda não está estabelecido. “Alguns mercados internacionais estão exigindo padrões ambientais, mas por enquanto os compradores argentinos não estão pedindo isso”, disse Pablo Preliasco, diretor do programa de pecuária sustentável da Fundação Vida Silvestre Argentina.
Na China, o fortalecimento das tendências de consumo sustentável é impulsionado pelas gerações mais jovens, que se preocupam tanto com a rastreabilidade quanto com os padrões de segurança alimentar. A faixa etária de 20 a 29 anos é a que mostra mais interesse nisso.
Para Fernando Vilella, diretor do programa de agronegócio e alimentos da Universidade de Buenos Aires (UBA), embora o percentual da população chinesa que demanda carne de alta qualidade ainda seja pequeno, o surgimento de jovens consumidores mais exigentes pode mudar o cenário.
“Isso exige uma resposta em nossas exportações de gado, que devem avançar em direção à certificação e rastreabilidade desses produtos”, afirmou Vilella. “A pecuária deve construir uma marca nacional associada à produção de baixo impacto ambiental”.
Desmatamento e más práticas
Organizações ambientais apontam a pecuária como o principal motor do “novo” desmatamento na Argentina, concentrado em quatro províncias do norte: Formosa, Salta, Santiago del Estero e Chaco.
Hernán Giardini, coordenador da campanha florestal do Greenpeace, explica: “Hoje, a pecuária é a principal causa do desmatamento no país e, desde 2010, mais terras foram desmatadas com gado do que com soja. Quando olhamos para os pedidos de desmatamento no Gran Chaco, há mais para a pecuária do que para a agricultura”.
A pecuária é a principal causa do desmatamento, assim como a soja era na década de 1990 e início de 2000
O Greenpeace apontou outros problemas ambientais, incluindo aqueles associados à carne de boi sem confinamento. Eles argumentam que a alimentação animal está ligada a safras geneticamente modificadas e outras práticas insustentáveis, como o confinamento de animais e a contaminação da água e do solo.
“A pecuária não é sustentável na Argentina na maioria dos casos. É mentira que não gera desmatamento”, disse Giardini. “Atualmente é a principal causa do desmatamento, assim como a soja era na década de 1990 e início de 2000”.
O relatório anual de 2020 do Greenpeace sobre o desmatamento no norte da Argentina menciona que, na última década, essa prática “foi a principal fonte de emissões de carbono no norte da Argentina”. O documento afirma que em 2019 foram desmatados 80.938 hectares. Em 2020, ano da pandemia, essa área cresceu para 114.716 hectares, com emissões de mais de 20 milhões de toneladas de CO2 equivalente.
Observadores podem, no entanto, se animar com os anúncios feitos na cúpula do clima da ONU, a COP26, em Glasgow, incluindo a Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra — da qual a Argentina foi signatária — que promete deter e reverter a perda florestal até 2030. Em outros lugares, oito instituições financeiras prometeram US$ 3 bilhões em financiamento para a produção de gado livre de desmatamento na América do Sul, no âmbito da iniciativa Finanças Inovadoras para a Amazônia, Cerrado e Chaco (Ifacc).
Emissões são um problema-chave
A pecuária da Argentina está preparada para atender aos novos padrões do mercado de exportação? De acordo com Bifaretti do IPCVA, a resposta é positiva.
“Nosso sistema de pastagem natural tem grande capacidade de armazenar carbono e, se medido corretamente, mais é armazenado do que emitido”, afirma Bifaretti. “Esta é uma luta por sentido e comunicação que a pecuária nacional deve lutar com respaldo científico”.
Para o setor de pecuária da Argentina, o principal argumento para questionar seu suposto nível de emissões baseia-se no fato de que a maior parte da produção é feita em pastagens naturais, e não em áreas desmatadas. As pastagens argentinas, segundo o especialista do IPCVA, têm uma quantidade de carbono armazenada no solo equivalente ao que o país emite em 74 anos.
O carbono se acumula como matéria orgânica no solo e pode permanecer lá por até centenas de anos. As pastagens contribuem para isso em grande parte por meio da abundante quantidade de raízes que produzem. Dessa forma, eles podem remover o carbono da atmosfera, sequestrando-o no solo, e ajudar a mitigar o aquecimento global.
“Contabilizar o sequestro de carbono do setor, e não apenas suas emissões, é essencial para mudar a imagem da pecuária e até mesmo passar para um balanço positivo. Há uma batalha científica que o setor deve travar”, disse Bifaretti.
Os países em desenvolvimento são obrigados a enviar seus inventários de gases de efeito estufa à ONU a cada dois anos, com base em métodos sugeridos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Há um consenso no mundo científico sobre esses métodos. No entanto, a melhor forma de estimar o sequestro de carbono por florestas e pastagens ainda está em debate. É justamente essa divergência que abre o debate sobre a pecuária.
Contabilizar o sequestro de carbono do setor, e não apenas suas emissões, é essencial para mudar a imagem da pecuária
Em artigo publicado em 2019, um grupo de pesquisadores argentinos concluiu que a capacidade de sequestro de carbono das pastagens está subestimada nos inventários, e que essas terras estão de fato gerando um excedente de carbono — o que significa que as emissões produzidas pelos animais são potencialmente compensadas pela quantidade de carbono que as pastagens sequestram.
Miguel Taboada, um dos autores do artigo, argumenta que as pastagens armazenam carbono em profundidades maiores do que os 30 centímetros que o IPCC reconhece. Também existe carbono na biomassa das raízes das plantas de pastagem, algo que também não é considerado pela metodologia do IPCC.
“É uma discussão técnica ou mesmo acadêmica que, infelizmente, para alguns, se tornou uma disputa política. É válido discutir isso”, acrescentou Taboada.
Para Víctor Tonelli, analista e consultor do mercado pecuário, existe um distanciamento entre o que o consumidor europeu percebe e a realidade do sistema argentino, em que, segundo ele, “o animal passa 85% da vida ao ar livre em campos com consumo médio que não ficam abaixo de 90% de grama”. Foi sugerido que vacas alimentadas com pasto têm uma pegada de carbono menor do que aquelas alimentadas com grãos, ao estimular o sequestro de carbono do solo por meio da pastagem, embora isso continue contestado.
Para defensores como Tonelli, “há falta de trabalhos científicos publicados em periódicos internacionais, falta de conscientização dos órgãos governamentais e falta de melhor comunicação” sobre as emissões do pastoreio. Ele acrescentou que esse foi um dos motivos para a criação da Mesa Redonda Argentina de Carne Sustentável há quatro anos.
Conversão de florestas e rastreabilidade
Segundo Preliasco, da Fundação Vida Silvestre, completar o caminho para uma produção mais sustentável não exige grandes investimentos por parte dos produtores. “Exceto por alguns casos que trabalham com desmatamento ou com uma conversão de terras muito grande, a maior parte da produção pecuária [na Argentina] já é sustentável, e o maior volume de produção de carne já pode ser denominado como livre de desmatamento com facilidade”, disse o especialista.
Sobre a rastreabilidade, Tonelli mencionou que, embora “sempre haja espaço para melhorias”, a Argentina tem um sistema sólido. “É um bom sistema, mas precisamos digitalizá-lo para reduzir erros, torná-lo mais rápido e obter códigos QR nas embalagens para o consumidor”.
Além disso, o IPCVA reconhece que ainda há muito espaço para melhorias em termos de quilos por animal e por hectare. “Se a tecnologia for aprimorada, as emissões por unidade de produto serão reduzidas, mas ainda há uma lacuna tecnológica a ser preenchida”, disse Bifaretti, para quem isso não exigiria grandes investimentos. O que é necessário mais do que esse insumo, diz ele, é melhorar o manejo dos pastos.
Para Preliasco, a prioridade é parar o desmatamento e a conversão de ecossistemas e focar nos números do estoque: “Na Argentina, não aumentamos o estoque de gado há décadas. Uma política de longo prazo poderia manter os níveis atuais para não aumentar as emissões”.