Gabriel Boric foi eleito presidente do Chile em dezembro de 2021 prometendo “um desenvolvimento compatível com o meio ambiente”. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, lidera as pesquisas eleitorais para as eleições de 2022 no Brasil trazendo consigo a promessa de combater o desmatamento da Amazônia e retomar a agenda climática do país. Gustavo Petro, favorito para as eleições da Colômbia de 29 de maio, garante que, se eleito, vai frear a exploração petrolífera e investir na transição energética do país. A nova onda rosa na América Latina, com líderes aspirantes e recém-eleitos mais progressistas, pode resultar em uma onda verde, renovando a agenda ambiental da região — uma das mais vulneráveis às mudanças climáticas, segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU.
Para especialistas consultados pelo Diálogo Chino, embora haja esperança e expectativa, há também ceticismo sobre o potencial de líderes desenvolvimentistas adotarem políticas climáticas e ambientais relevantes. Acima de tudo, há uma enorme oportunidade de provar essas credenciais progressistas na arena climática.
A nova ‘onda rosa’ pode unir meio ambiente e desenvolvimento?
Um olhar sobre a história da esquerda latino-americana mostra que o progressismo político não garantiu avanços no clima.
“A primeira pergunta que devemos fazer é: podemos fazer uma correlação entre governos progressistas com a luta contra a mudança climática na região?”, questiona Matías Franchini, professor de relações internacionais da Universidade de Rosário, na Colômbia, e estudioso em políticas climáticas no continente. Essa relação, diz ele, está mais clara nos Estados Unidos e na Europa do que na América Latina.
De fato, governos conservadores recentes no Chile e na Colômbia tiveram ganhos notáveis no clima, lançando projetos de energia renovável e metas de redução de emissões mais ambiciosas. No entanto, o governo do ex-presidente chileno Sebastián Piñera foi criticado por mostrar uma liderança fraca como coanfitrião das negociações climáticas da COP25 em Madri. Além disso, tanto ele quanto o colega colombiano Iván Duque não conseguiram garantir que suas propostas de transição para economias mais verdes fossem participativas ao não ratificarem o Acordo de Escazú. O tratado regional é considerado como o ponto de partida de uma corrida rumo a altos padrões ambientais, transparência e participação cívica regional. Boric já o ratificou.
Franchini cita o exemplo do México, onde o ex-presidente conservador Felipe Calderón (2006-2012) promoveu mais avanços ambientais do que o atual mandatário, o político de esquerda Andrés López Obrador (conhecido como AMLO), parece que conseguirá.
Com essa nova geração, temos uma chance de finalmente deixar para trás essa dicotomia entre meio ambiente e desenvolvimento
Calderón, posteriormente, foi diretor da Comissão Global sobre Economia e Clima, iniciativa que assessora países sobre desenvolvimento econômico e risco climático. Já AMLO se notabilizou por deixar de ir à Cúpula do Clima de Glasgow. “Chega de hipocrisia e modismo, o que é preciso fazer é combater a desigualdade monstruosa que existe no mundo”, afirmou ele na ocasião, em uma fala que coloca em lados opostos as lutas contra a desigualdade e o aquecimento global.
Seu governo também vem sendo criticado por investir bilhões de dólares na construção da refinaria de Dos Bocas, dando um novo impulso à economia petrolífera em busca do que ele chama de “soberania energética”. Ele também se chocou com o setor de energias renováveis ao promover uma reforma constitucional que prioriza termelétricas.
Tatiana Roque, professora de filosofia e matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é cautelosa. Em seu livro O dia em que voltamos de Marte, Roque critica o desenvolvimentismo que a esquerda latino-americana tem defendido. Mentalidades como a de AMLO, diz ela, pertencem a uma era passada.
“Precisamos ficar atentos para não reproduzir a mesma visão do passado, principalmente essa visão desenvolvimentista muito marcante na América Latina que incorpora uma visão de futuro que não dialoga com a urgência das mudanças climáticas”, diz Roque.
A esquerda latino-americana ainda não adotou essa perspectiva, em parte por causa de sua profunda dependência econômica da produção de commodities prejudiciais ao meio ambiente, como soja, gado, petróleo e metais, Roque acrescenta: “Ficamos muito vulneráveis para fazer essa transição [verde] por causa das commodities”.
A onda rosa dos anos 2000
A última onda progressista na América Latina começou nos anos 2000 e trouxe ao poder lideranças como Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Néstor e Cristina Kirchner (Argentina), além do próprio Lula e de sua sucessora Dilma Rousseff. Em geral, esses governos se beneficiaram da alta global dos preços de matérias-primas, impulsionada em grande parte pela demanda chinesa, para investir em políticas de redução de desigualdade e pobreza.
O papel das commodities
A alta global dos preços de matérias-primas nos anos 2000, impulsionada em parte pela demanda chinesa, criou um ciclo econômico positivo, mas privilegiou um modelo de desenvolvimento que marginalizou pautas ambientais na América Latina. Agora, com uma possível nova onda verde, pode ser a chance de incluir o desenvolvimento sustentável na linha de frente.
“Essa primeira onda, que vai de 2003 a 2014, coincidiu com um grande ciclo de commodities, o que foi totalmente definidor dos sucessos e fracassos dos governos”, reforça Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise.
Ainda assim, Alencastro é otimista. Ele argumenta que a guinada progressista anterior olhava para o passado, combatendo os resquícios de ditaduras militares e a influência dos Estados Unidos na região. Hoje, ele diz que a esquerda latino-americana será pressionada a priorizar o desenvolvimento sustentável: “O que diferencia a primeira e a segunda onda é justamente a política climática. Sem um ciclo positivo de commodities, a esquerda será obrigada a ousar mais. A economia verde vem ocupar esse vazio”.
Sem um crescimento econômico assegurado pela commodities, há a oportunidade de se buscar novas formas de desenvolvimento e de afastar os países latino-americanos da dependência das exportações de matérias-primas. No Brasil, por exemplo, setores progressistas e ligados ao debate sobre o aquecimento global vêm indicando a necessidade de zerar o desmatamento da Amazônia e, ao mesmo tempo, desenvolver uma bioeconomia capaz de gerar renda mantendo a floresta em pé.
Chile e Colômbia no centro das atenções na América Latina
As atenções estão especialmente voltadas para Boric e Petro. O chileno escolheu como ministra do meio ambiente a renomada cientista climática Maisa Rojas, diretora do Center for Climate and Resilience Research, vinculado à Universidade do Chile, coautora de relatórios do IPCC e que trabalhou com o governo anterior na presidência chilena da COP25 – transferida para Madri por conta dos protestos massivos no país.
“Com essa nova geração, temos uma chance de finalmente deixar para trás essa dicotomia entre meio ambiente e desenvolvimento. É uma oportunidade de isso acontecer”, argumenta Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, think tank de políticas sobre o clima. “Mas ainda temos os relutantes, como as lideranças mexicanas, que vão fazer o mínimo possível”.
Matías Franchini diz que, nos últimos 20 anos de alternância entre Michelle Bachelet, de centro-esquerda (2006-2010 e 2014-2018), e Sebastián Piñera, de centro-direita (2010-2014 e 2018-2022), o Chile construiu uma política estatal bem-sucedida de descarbonização. O objetivo é alcançar a neutralidade de emissões em 2050, e o país já vem investindo em reflorestamento e energias limpas. Está previsto que, até 2025, 20% da produção de energia venha de fontes renováveis não convencionais, como a eólica ou solar. “Boric não representa uma ruptura, e sim a continuação de uma tendência”, explica.
Embora pertença a uma geração anterior de lideranças progressistas, Petro representa a principal oportunidade da Colômbia de ter o primeiro governo de esquerda de sua história. A Colômbia, criticou o presidenciável, “lamentavelmente” migrou do modelo cafeicultor para o do petróleo e carvão. Hoje, cerca de um terço das exportações da Colômbia depende do complexo petrolífero – China e Estados Unidos são seus principais compradores.
A agenda climática ganhou relevância na Colômbia a partir do governo Juan Manuel Santos (2010-2017), que incorporou a questão no histórico acordo de paz com as Farc. Assinado em 2016, o documento se comprometeu com o reassentamento de comunidades vulneráveis, reflorestamento de zonas afetadas pelo conflito, combate à mineração ilegal, entre outras promessas.
A agenda ganhou novo impulso no governo de Duque. O atual presidente assegurou na última Cúpula do Clima, de 2021, que o país reduzirá 51% das emissões até 2030 e alcançará a neutralidade de carbono em 2050.
Para atingir esses objetivos, é preciso conter o desmatamento na Amazônia colombiana, que aumentou desde que as FARC desocuparam áreas florestadas. Pouca atenção tem sido dada à reforma do setor de energia. Planos de transição para as energias renováveis envolvem o aumento do uso de gás natural, e a Colômbia tem recursos escassos. O apoio à indústria petrolífera também permanece.
“Nesse sentido, o discurso de Petro é mais interessante, mas pouco realista em termos políticos”, argumenta Franchini, que vê com ceticismo a proposta de paralisar novos projetos da indústria de petróleo. “O espaço para Petro fazer uma transição rápida é difícil em termos políticos e econômicos”.
O caminho pode ser desafiador, mas ambientalistas na Colômbia ganharam um estímulo com a recente escolha de Francia Márquez como companheira de chapa de Petro. Incansável ativista ambiental cujo trabalho lhe rendeu o prêmio Goldman – apelidado de “Nobel Verde” – Márquez pode se tornar a primeira vice-presidente negra do país e liderar a defesa de causas socioambientais.
Líder brasileiro pode mudar o jogo?
Se eleito em outubro, Lula, que governou o Brasil entre 2003 e 2011, será o único líder que terá participado dos dois momentos de ascensão da esquerda latino-americana. Seu governo foi ambíguo na área ambiental. Marina Silva, sua então ministra do Meio Ambiente, conduziu um plano que reduziu em mais de 80% o desmatamento da Amazônia. O petista também chamou atenção na Cúpula do Clima de Copenhague, em 2009, ao cobrar comprometimento com um acordo global.
A política estatal englobou o agronegócio, que se expandiu a partir da alta do ciclo das commodities na primeira década dos anos 2000. Foi nessa época que a China se tornou a principal compradora de soja e minérios brasileiros, e, na sequência, principal parceira comercial do país. Em 2021, o país importou cerca de US$ 87,3 bilhões em bens e serviços do Brasil.
O desmatamento da Amazônia voltou a aumentar em 2012 na gestão Rousseff e vem batendo recordes desde 2019 sob o governo de Jair Bolsonaro, que promove um desmonte da política ambiental e climática do Brasil.
O que esperar então de um potencial novo governo Lula?
As opiniões se dividem. Alencastro não tem dúvidas de que Lula, por ser um político veterano e inserido nos círculos internacionais, saberá fazer um discurso ambiental mais ambicioso: “É um líder que acompanha as tendências globais e sabe sentir as transformações do mundo. Ele já entendeu muito bem que a questão climática é algo que precisa ser incorporado do ponto de vista programático”.
O petista também vem dando declarações de que uma eventual terceira gestão se centrará em fazer a transição para uma economia verde. “Precisamos pensar no meio ambiente, na Amazônia, mas também no esgoto da favela. Nós vamos levar muito a sério a questão ambiental. Hoje, desenvolvimento, crescimento econômico e investimento têm que estar ligados à questão ambiental”, ele tuitou em fevereiro.
É essencial promover um novo ‘pacto verde’, que promova a transição ecológica para uma economia de baixo carbono
Um pré-plano de um potencial governo Lula, elaborado pela Fundação Perseu Abramo, vinculado ao PT, diz ser “imprescindível, além de combater a devastação ambiental provocada pelo atual governo, promover um Green New Deal, um novo ‘pacto verde’, que promova a transição ecológica para uma economia de baixo carbono”.
“Esse pacto verde vai acontecer por vontade ou à força. Ou essa transição vai ser pactuada e planejada, ou ela vai acontecer com perdas e danos, porque vai ser imposta”, explica Unterstell, para quem faltam sinais mais claros da direção que Lula pretende adotar e de quem ele chamará para sua equipe. “Estamos numa década que não é uma questão de bom mocismo, de pôr selinho verde. Estamos tratando de uma outra crise. Os mercados já estão se redirecionando de uma maneira que tende a ser avassaladora”, acrescenta.
Roque acredita que o principal papel de Lula será devolver ao Brasil relativa normalidade democrática e desenvolver políticas que deem as bases para um projeto ambiental mais ambicioso: “Não acho que Lula vá priorizar um novo modelo de desenvolvimento baseado na urgência de combater as mudanças climáticas. Mas ele pode ser a saída desse momento completamente excepcional que vivemos e essencial para desenvolver políticas que vão além do próprio Lula”.