A crise climática e as metas argentinas para mitigá-la parecem ser um tema incômodo para o governo de Javier Milei, presidente de extrema direita que tomou posse em dezembro.
Nos corredores do prédio que abrigava o antigo Ministério do Meio Ambiente em Buenos Aires — rebaixado a uma subsecretaria pela nova administração — até a expressão “mudanças climáticas” soa como um tabu. “Usamos ‘impacto’ ou ‘gestão’”, diz Ana Vidal de Lamas, subsecretária de Meio Ambiente, ao Dialogue Earth.
Vidal de Lamas defende que, embora a crise climática seja “inegável”, ela é um fenômeno “natural e cíclico” e “sem relação com a industrialização e os seres humanos” — posição contrária ao consenso científico. E o enfrentamento de seus impactos, com as secas, enchentes e ondas de calor em todo o país, não será prioridade na agenda de Milei. “Não seremos muito proativos, mas faremos o que precisa ser feito”, afirmou.
Para analistas, a gestão argentina beira o negacionismo. “A negação das mudanças climáticas não é um ponto central do governo, mas eles flertam com a ideia”, disse Elisabeth Möhle, pesquisadora de política climática do think-tank Fundar. Milei e sua ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, têm repetidamente questionado as mudanças climáticas e a Agenda 2030 da ONU.
As declarações da cúpula do governo argentino geram preocupações — não só pelo rumo da política ambiental interna como também pelos impactos disso no cenário internacional, pondo em xeque o cumprimento das metas climáticas do país.
“Um governo instável gera imprevisibilidade, não apenas nos mercados, mas também nas organizações multilaterais, bilaterais, internacionais e regionais”, explicou Sandra Guzmán, fundadora do Grupo de Financiamento Climático para a América Latina e o Caribe. Com a nova administração, “os atores globais esperam para ver o que vai acontecer”, disse ela.
Milei revisará NDCs
Vidal de Lamas disse que, pelo menos por enquanto, a política climática da Argentina será determinada pela agenda global. Segundo ela, o governo está disposto a seguir uma linha semelhante à da gestão anterior, mas com ajustes. Uma dessas mudanças seria deixar de promover as políticas associadas à Agenda 2030.
A subsecretária do Meio Ambiente adiantou que a Argentina apresentará uma nova versão do seu plano climático, conhecido como contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), até fevereiro de 2025. Essa será a terceira atualização das NDCs argentinas — a segunda foi lançada em 2022, antes de Milei, e classificada como “criticamente insuficiente” pela plataforma Climate Action Tracker.
Caso a Argentina não cumpra os compromissos climáticos, especialistas avaliam que o país pode perder acesso a mercados importantes como o da União Europeia, que implementou leis ambientais mais rigorosas para suas importações, e a financiamentos multilaterais.
Enrique Maurtua Konstantinidis, consultor sênior de políticas climáticas, diz que a Argentina tenta convencer atores internacionais de que “não romperá nenhum acordo”, mas as declarações do governo geram dúvidas, e “a Argentina tem tudo a perder” com uma ruptura.
Na cúpula climática COP28, realizada no final de 2023, poucos dias antes da posse de Milei, a então porta-voz do novo governo, Marcia Levaggi, tentou minimizar os temores de uma possível saída argentina do Acordo de Paris. Hoje, ela ocupa o cargo de subsecretária de política externa do Ministério das Relações Exteriores.
Em junho, a Argentina teve atuação de destaque na reunião do grupo G77 + China sobre financiamento climático em Bonn, na Alemanha — importante preparação para a COP29. Também não há sinal de ruptura com o Grupo Sur, bloco de negociações sobre as mudanças climáticas que inclui Uruguai, Paraguai e Brasil, com quem enfrenta tensões diplomáticas desde a campanha eleitoral de Milei.
De acordo com Vidal de Lamas, a posição da Argentina na COP29 e na COP30 em 2025 seguirá a mesma linha vista até agora.
Compromissos climáticos mantidos
Atualmente, a pauta climática é dividida em três ministérios: Relações Exteriores, Economia e Chefe de Gabinete. Os principais nomes dessas pastas são Corina Lehmann, subsecretária de Política Externa; Mariela Beljansky, de Planejamento e Transição Energética; e Vidal de Lamas. Toda quinta-feira, as três subsecretárias se reúnem para discutir a agenda climática, avaliando o trabalho realizado e definindo ações conjuntas.
Mesmo assim, não se sabe sobre como serão implementados o Plano Nacional de Adaptação e Mitigação das Mudanças Climáticas e o Plano de Transição Energética para 2030. Lançados pela gestão anterior, eles são fundamentais para garantir que a Argentina cumpra suas metas de redução de emissões. Vidal de Lamas disse que, por lei, esses documentos devem ser respeitados. “Mas isso não muda o fato de que faremos ajustes conforme a filosofia do novo governo”, ponderou.
A implementação desses planos costuma ser o foco do Gabinete Nacional de Mudanças Climáticas, painel interministerial criado em 2016, e do Conselho Consultivo Externo, criado em 2009 para permitir a participação da sociedade civil no governo. Mas ainda não houve reunião desses órgãos, nem a confirmação de que eles serão mantidos sob a nova gestão.
Vidal de Lamas garante que essa é uma questão puramente administrativa que será resolvida nos próximos meses. “Guillermo Francos [chefe de gabinete] fará a convocação em breve”, disse ela.
Em um começo de ano conturbado, servidores de órgãos ambientais enfrentaram mudanças abruptas na estrutura governamental, com muitas demissões e renúncias. Funcionários e ex-funcionários da Subsecretaria de Meio Ambiente que pediram para ter sua identidade preservada disseram ao Dialogue Earth que a percepção geral nos primeiros meses de gestão Milei foi de desorientação sobre as políticas climáticas do país.
Elisabeth Möhle, da Fundar, disse que o corte de técnicos na gestão interna e nas negociações internacionais pode trazer empecilhos. Vidal de Lamas garante que o governo está fazendo “o mesmo trabalho com menos gente”, mas que de fato tem sido difícil “definir as linhas de trabalho”. Isso porque tem havido uma intensa reestruturação dos ministérios, incluindo a chamada Lei de Bases, controverso pacote legislativo aprovado em julho e que estabelece uma ampla desregulamentação do Estado.
“As coisas que estavam travadas vão se mover”, afirmou Vidal de Lamas. “Eu não podia falar do trabalho da subsecretaria nos próximos quatro anos enquanto as ações do governo estivessem condicionadas à aprovação dessa lei”.
Lei de Bases incentiva setores poluentes
A Lei de Bases foi duramente criticada pelos impactos que pode gerar sobre os esforços de proteção ambiental do país. Uma das principais preocupações de ambientalistas é a medida que concede isenções fiscais e aduaneiras a projetos com investimentos acima de US$ 200 milhões, beneficiando setores como silvicultura, infraestrutura, mineração, tecnologia, siderurgia, energia, petróleo e gás. Organizações ambientais também alertam para a possível desregulamentação desses mercados.
Vidal de Lamas explicou que, pela Constituição argentina, a regulação e a gestão dos recursos naturais é de responsabilidade das províncias — como ocorre com o lítio no norte do país ou as enormes reservas de petróleo e gás de xisto em Vaca Muerta, em Neuquén. Mas afirma que o governo vai buscar a aprovação de leis nacionais para definir padrões ambientais em setores como silvicultura, hidrogênio verde e mineração. No entanto, os hidrocarbonetos não serão incluídos nessa discussão, disse ela.
Em uma entrevista concedida em maio ao jornal argentino La Nación, Vidal de Lamas disse que a gestão pretende autorizar “todos os projetos de hidrocarbonetos offshore”. Já ao Dialogue Earth, ela disse que se limitará a avaliar estudos de impacto ambiental: “Sempre estaremos um passo à frente pedindo ajustes, mas não seremos um obstáculo”.
No Congresso Nacional, há disputas em relação às discussões climáticas. O partido de Milei, La Libertad Avanza, criou na Câmara um comitê ambiental que se choca com o que já está ativo no Senado e é coordenado pela oposição. Desde o início do novo governo, houve apenas uma única reunião conjunta.
Carlos D’Alessandro, deputado aliado a Milei e presidente do comitê na Câmara, disse ao Dialogue Earth que o foco na Lei de Bases atrasou a realização desses encontros. Ele garante que o comitê fará o possível para trabalhar nas políticas climáticas seguindo as posições de seu partido sobre o tema. “Meus principais objetivos são aprovar uma lei sobre embalagens e outra sobre áreas úmidas”, disse D’Alessandro.
Adaptação, mitigação e financiamento
Vidal de Lamas explicou que o governo atuará como facilitador, mas espera que as províncias e indústrias sejam protagonistas em definir políticas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e em incentivar investimentos na transição energética.
O governo espera avançar este ano com um marco regulatório para o hidrogênio verde e acenou, nas versões preliminares da Lei de Bases, à criação de um mercado de carbono. Vidal de Lamas disse que ambos estão em sua lista de ações.
Ela também planeja criar uma “mesa-redonda sobre o metano” para discutir a mitigação desse potente gás de efeito estufa, reunindo setores como energia, indústria e agricultura, junto a diferentes governos provinciais. E se reuniu com todas as províncias para conhecer seus planos de resiliência climática, mas, novamente, espera que as províncias sejam as responsáveis pelo financiamento e pela implementação de projetos.
Quem vai querer financiar um país que nega as mudanças climáticas?Cecilia Nicolini, ex-secretária de Mudanças Climáticas da Argentina
Observadores questionam a possibilidade de o país atrair financiamento climático, dado o extremismo do governo Milei. “Quem vai querer financiar um país que nega as mudanças climáticas?”, disse Cecilia Nicolini, que foi secretária de Mudanças Climáticas no governo do ex-presidente Alberto Fernández (2019-2023) e argumentou que esse negacionismo veio no “pior momento” para o país, que vive uma profunda crise econômica.
Sandra Guzmán, por outro lado, não acredita que a Argentina perca financiamento climático apesar do receio de organizações internacionais de que o governo transforme suas palavras em políticas concretas contrárias à agenda climática. Os financiadores, disse ela, “sempre reforçam que dão dinheiro aos países, e não aos governos”.