Clima

Com a crise climática, a dengue pode se estender pelo ano todo?

Recorde de surtos em 2024 na América do Sul evidencia conexão entre mudanças climáticas e doença transmitida por mosquitos
<p>Profissional de saúde atende pacientes com dengue em centro médico no Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano (Imagem: Alamy)</p>

Profissional de saúde atende pacientes com dengue em centro médico no Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano (Imagem: Alamy)

Há pelo menos seis meses, o número recorde de casos e mortes por dengue tem ganhado manchetes na Argentina, no Brasil, no Peru e em outros países sul-americanos. 

A doença é a infecção viral mais comum transmitida por mosquitos do gênero Aedes, com potencial de atingir cerca de 3,9 bilhões de pessoas em mais de 129 países, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS). No último verão no hemisfério sul, os mosquitos encontraram as condições perfeitas para se reproduzir e sobreviver na América do Sul, como altas temperaturas e focos de água parada.

Um relatório recente sobre mudanças climáticas e saúde na América do Sul, publicado pelo grupo de especialistas independentes Lancet Countdown, mostra que o potencial de transmissão da dengue pelo mosquito Aedes aegypti aumentou 54% entre as décadas de 1951-1960 e 2013-2022. As conclusões do estudo também são consistentes com a disparada nos casos de dengue na região desde o começo de 2024. 

A doença — cujos sintomas geralmente incluem febre, dor de cabeça, cansaço, vômito e erupções cutâneas — é vista como uma ameaça sazonal em muitos países sul-americanos, mas o contínuo aumento das temperaturas e da umidade impulsionado pelas mudanças climáticas pode elevar sua incidência.

Com a chegada do outono e do inverno na América do Sul, o Dialogue Earth conversou com especialistas e cientistas sobre o futuro da dengue na região, a possibilidade de a doença tornar-se uma constante ao longo do ano devido à crise climática, bem como as medidas necessárias para combatê-la.

Clima, dengue e sistemas de saúde

A última publicação da Lancet Countdown sobre o tema, relatório que destaca os vínculos entre as mudanças climáticas e a saúde na América do Sul, sustenta que as condições climáticas adequadas para a reprodução dos vetores da doença — ou seja, os mosquitos — e a alta nos casos de dengue “reforçam um vínculo entre o clima e a incidência de dengue na população”.

As altas temperaturas, as chuvas e a umidade contribuem para a transmissão da dengue, pois geram condições ideais para o ciclo de vida do mosquito. A reprodução do Aedes aegypti ocorre em locais sombreados e úmidos, preservando os ovos e as larvas. Quando adultos, os mosquitos também precisam de umidade para sobreviver por mais tempo.

Mas não são apenas os períodos de chuva que criam as circunstâncias ideais para o vetor: as estiagens também podem representar uma oportunidade para a reprodução do mosquito, pois é nos períodos de seca que as pessoas costumam armazenar água parada.

Fenômenos climáticos como o El Niño e La Niña podem trazer ainda mais impactos. O El Niño provoca um aquecimento acima da média das águas do Oceano Pacífico, alterando os ventos e aumentando a incidência de chuvas na porção mais austral da América do Sul. O La Niña, por sua vez, é caracterizado por uma queda nas temperaturas da superfície do Pacífico Equatorial próximo à costa da América do Sul, provocando baixa precipitação no sul do continente. Em outras áreas, como a Amazônia, esse processo é inverso: o El Niño provoca seca e La Niña, fortes chuvas.

No último El Niño, presente desde meados de 2023 até o começo de junho deste ano, o fenômeno trouxe ciclones, fortes chuvas e inundações ao sul do Brasil, norte da Argentina e centro-sul do Chile. Tudo isso favoreceu a propagação dos mosquitos Aedes, afetando também a capacidade de resposta dos sistemas de saúde. 

Por outro lado, a seca prolongada nos anos de La Niña força a população a coletar e armazenar água — muitas vezes usando métodos inseguros, como recipientes abertos ou não esterilizados.

Pessoas sentadas em frente a uma casa destruída pelas fortes chuvas e inundações em Estrela, no Rio Grande do Sul
Pessoas sentadas em frente a uma casa destruída pelas fortes chuvas e inundações em Estrela, no Rio Grande do Sul, em setembro de 2023. O aumento da precipitação associada ao fenômeno El Niño pode contribuir para a reprodução do mosquito Aedes aegypti e a disseminação da dengue (Imagem: Alamy)

Considerando a evidente ligação entre a dengue e mudanças climáticas, especalistas ressaltam a necessidade de melhorar a capacidade de resposta dos sistemas de saúde pública. Andrés Lescano é autor da Lancet Countdown South America e coordenador do centro de pesquisa de doenças emergentes e mudanças climáticas na Universidade Cayetano Heredia, no Peru. Ele explicou que, ao comparar os eventos de El Niño e as epidemias de dengue, é possível perceber que os casos “já estavam aumentando muito antes” da chegada do fenômeno climático. 

“O El Niño simplesmente transforma um problema de saúde em uma tragédia”, disse Lescano. “Os surtos de dengue crescem ao longo de semanas e meses. Para haver um surto, há aspectos de saúde pública em condição vulnerável”.

Para Andrea Hurtado Epstein, coordenadora de mudanças climáticas para a América Latina da Health Care Without Harm, o impacto da crise climática na área da saúde não está sendo tratado com a devida urgência. “As circunstâncias sob as quais os sistemas de saúde foram planejados mudaram e vão mudar ainda mais”, disse ela.

Resposta fraca à dengue

Embora a dengue não seja uma doença recente na América do Sul, as medidas adotadas contra os novos grandes surtos de dengue na região têm sido insuficientes, segundo especialistas. Essa doença viral pode ser evitada por meio de proteção, prevenção e iniciativas comunitárias. Porém, nem todos os países afetados têm seguido essa abordagem.

Mulher coloca mosquiteiro na janela de casa em Girardot, Colômbia
Mulher coloca mosquiteiro na janela de casa em Girardot, Colômbia. A dengue pode ser combatida com medidas preventivas, como manter recipientes fechados e usar repelentes (Imagem: Organização Pan-Americana de Saúde / Flickr, CC BY-NC)

Na Argentina, mais de meio milhão de casos foram registrados até agora só neste ano — três vezes mais do que o registrado em 2022-2023, segundo dados do Ministério da Saúde do país. No entanto, a resposta do governo tem sido fraca. A administração do presidente Javier Milei, radical de extrema-direita que tenta cortar todo tipo de gasto público, eliminou as campanhas estatais sobre a prevenção da doença, geralmente transmitidas no verão em canais de TV, emissoras de rádio e jornais impressos. 

Uma vacina contra a dengue produzida pelo laboratório japonês Takeda já está disponível na Argentina, mas só pode ser obtida de forma particular e a um custo bastante elevado, pois não faz parte do programa de vacinação nacional. Nos primeiros dias de maio, o Ministério da Saúde anunciou que daria início a um plano de vacinação pública com foco nas regiões mais afetadas, mas ainda não foram divulgados os detalhes dessa campanha. 

A vacina de duas doses oferece proteção contra os quatro vírus da dengue e já havia sido aprovada pela Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica em 2023, bem como pelas agências regulatórias de União Europeia, Reino Unido, Brasil, Colômbia, Noruega, Islândia, Malásia, Indonésia e Tailândia. Em 10 de maio, a vacina foi pré-certificada pela OMS, que a considerou segura e eficaz. A organização recomenda seu uso em pessoas de 6 a 16 anos em áreas com alta incidência de dengue.

No Brasil, a vacina japonesa contra a dengue foi incorporada ao calendário nacional de vacinação. Em fevereiro deste ano, em meio ao surto, foi iniciada a vacinação de pessoas de 10 a 14 anos nos dez estados mais afetados — essa é a faixa etária com o maior número de internações. 

Ao mesmo tempo, um estudo clínico nacional tenta entender a reação da vacina em adultos de 18 a 40 anos. Espera-se que mais de seis milhões de doses cheguem do Japão ao Brasil ao longo do ano, vacinando aproximadamente três milhões de pessoas. Só na primeira metade de 2024, o Brasil já registrou um recorde de mais de 5,8 milhões de casos prováveis e mais de 3,7 mil mortes confirmadas pela doença.

Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu a vacina contra a dengue em uma coletiva de imprensa em Brasília
Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu a vacina contra a dengue em uma coletiva de imprensa em Brasília. Quase seis milhões de casos prováveis de dengue foram registrados no Brasil desde o início do ano (Imagem: Antonio Cruz / Agência Brasil)

No Peru, a doença também atingiu um recorde histórico: mais de 248 mil casos foram registrados só este ano, número que triplicou em comparação com o mesmo período do ano passado. Sem vacinação à vista, o Ministério da Saúde peruano concentrou-se em medidas de prevenção, como campanhas, controle de focos de mosquitos e pulverização de inseticidas. 

O Paraguai registrou sua primeira epidemia de dengue entre 1989 e 1990. Desde que o surto atual começou, em setembro de 2023, as autoridades registraram mais de 47 mil casos prováveis (incluindo 45 mil confirmados). O país também não tem vacinas para a doença. Porém, segundo o Ministério da Saúde paraguaio, há conversas em andamento com a Organização Pan-Americana da Saúde sobre a possível compra do imunizante.

Andrea Hurtado, da Health Care Without Harm, diz que, além das ações de cada país, é necessária uma resposta regional para o problema: “Estima-se que 500 milhões de pessoas nas Américas corram risco de contrair dengue e, portanto, deve haver uma resposta coordenada na região para aproveitar o conhecimento existente e criar sistemas de alerta precoce”.

Pobreza, fator de risco para a dengue

Além do clima quente e úmido do verão, os altos índices de pobreza da América do Sul têm sido um fator crítico para a disseminação da dengue. Conforme dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, quase um terço da população da região vive na pobreza. Embora não seja uma condição exclusiva para a disseminação da infecção, para muitos cientistas esse é um fator de risco especialmente para a dengue grave.

O armazenamento inseguro de água, o acesso insuficiente a repelentes e o uso reduzido de mosquiteiros e equipamentos de ar condicionado — sobretudo devido aos altos custos envolvidos — contribuem para o alto índice de dengue nas zonas mais pobres da América Latina.

Agente do serviço de dedetização fumiga bairro de Padre Mugica, em Buenos Aires
Agente do serviço de dedetização fumiga bairro de Padre Mugica, em Buenos Aires, na tentativa de evitar a disseminação da dengue e do coronavírus, em março de 2020. O bairro é uma das áreas mais pobres e densamente povoadas da capital argentina (Imagem: Alamy)

Tomás Orduna, médico argentino especialista em doenças infecciosas tropicais e ex-presidente da Sociedade Latino-Americana de Medicina do Viajante, cita outro motivo que reforça a ligação entre as condições de vida em zonas pobres e a dengue: a expansão desordenada de bairros densamente povoados, com mais criadouros de mosquitos por quilômetro quadrado devido à má gestão de resíduos. 

“Nós, humanos, criamos os locais de reprodução perfeitos em nossas casas e bairros para que o Aedes sobreviva e se reproduza”, explicou o especialista.

O futuro da dengue: doença o ano todo?

Em muitos países sul-americanos, a dengue tem sido vista como uma doença sazonal. Geralmente, ela chega no início do verão e recua com o frio do outono. No entanto, especialistas destacam que este ano a dengue pode deixar de ser uma doença de verão, espalhando-se até mesmo no inverno. Embora os casos tenham começado a diminuir, eles persistem.   

“Os períodos de transmissão agora são mais longos, não é mais apenas durante os meses com altas temperaturas”, observou o pesquisador Andrés Lescano. “Costumávamos ter invernos relativamente longos com temperaturas relativamente baixas, com poucos mosquitos. As temperaturas eram tão baixas em alguns lugares que os poucos ovos remanescentes morriam. Agora, as temperaturas não são tão baixas, e os mosquitos podem sobreviver”.

Falhamos globalmente e não fizemos o suficiente em nível estatal, comunitário e individual para eliminar os locais de reprodução do Aedes aegypti
Tomás Orduna, médico especialista em doenças infecciosas tropicais

Em entrevista à CNN Radio Argentina em abril, o especialista em doenças infecciosas Rogelio Pizzi disse que um problema com a dengue é que o mosquito Aedes já se adaptou ao clima local, com transmissão viral em 19 províncias argentinas. 

Na mesma linha, Orduna disse que, no nordeste do país, a dengue já havia deixado de ser um problema sazonal: “Começou em janeiro de 2023 e continua até hoje, todos os meses houve casos autóctones [adquiridos localmente]”.

Para os especialistas, os cenários futuros indicam novos surtos por longos períodos na região. “Falhamos globalmente e não fizemos o suficiente em nível estatal, comunitário e individual para eliminar os criadouros do Aedes aegypti”, destacou Orduna.