Clima

Opinião: Mudanças climáticas no Ártico servem de alerta para o Sul Global

Derretimento de gelo no Ártico se intensifica, trazendo riscos ambientais e alterando o cenário geopolítico até em países subdesenvolvidos, escreve Felipe Arango García
<p><span style="font-weight: 400;">Gaivotas-tridáctilas perto do arquipélago norueguês de Svalbard. Os impactos na camada de gelo do Ártico têm implicações para além do círculo polar (Imagem: David Coleman | Have Camera Will Travel / Alamy)</span></p>

Gaivotas-tridáctilas perto do arquipélago norueguês de Svalbard. Os impactos na camada de gelo do Ártico têm implicações para além do círculo polar (Imagem: David Coleman | Have Camera Will Travel / Alamy)

Em setembro de 1846, os navios expedicionários britânicos HMS Erebus e HMS Terror ficaram presos no Ártico canadense enquanto navegavam pela Passagem do Noroeste, rota marítima entre a Europa e a Ásia. Com a embarcação rodeada por gelo, a tripulação esperava seguir viagem no verão, mas a camada congelada não recuou. Todos os tripulantes morreram.

Em 2016, 170 anos depois, um cruzeiro da Crystal Cruises fez história como a primeira embarcação de seu tipo a navegar pela Passagem do Noroeste.

Esses dois episódios revelam como o derretimento do Ártico tem avançado rapidamente em pouco tempo. Em 2019, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertou que a extensão do gelo marinho no Ártico está diminuindo progressivamente com o passar dos anos. Recentemente, foram registradas algumas das maiores reduções dos últimos mil anos — com picos de derretimento geralmente no mês de setembro. As geleiras da Groenlândia, maior massa de gelo do hemisfério norte, perderam um terço de seu volume desde 1978.

Mas qual é a relevância do degelo acelerado em um lugar inóspito e distante, onde a noite dura seis meses e para onde a maioria das pessoas provavelmente jamais irá? Uma resposta simples é que os impactos das mudanças climáticas no gelo do norte também afetam o hemisfério sul, representando um risco para todo o planeta.

Aumento do nível do mar e inundações

O derretimento glacial nas regiões polares ameaça o futuro de muitas zonas costeiras. De acordo com uma pesquisa de Laura Larocca, professora assistente da Escola de Futuros do Oceano da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, o recuo das geleiras na Groenlândia e na Antártida tem contribuído para o aumento de 21% no nível do mar desde a virada do século. 

Até 2100, a elevação do nível do mar deverá atingir de 28 a 101 centímetros. Os valores exatos dependerão do sucesso nos esforços de redução das emissões de gases de efeito estufa. Alguns dos aumentos mais significativos do nível do mar serão vistos nas planícies litorâneas rasas.

Isso não ocorrerá apenas no Norte Global, em países como os Estados Unidos, mas também no Sul Global. As nações do Sudeste Asiático, como Tailândia, Camboja, Indonésia e Filipinas, serão fortemente afetadas, assim como os países do Mar do Caribe e Bangladesh, no sul da Ásia.

Sand bags lined along beach
Sacos de areia protegem a praia em San Pedro, Belize. Toda a região caribenha pode ser duramente atingida pela elevação do nível do mar nos próximos anos, como já ocorre em algumas ilhas (Imagem: Global Vibes / Alamy)

Os signatários do Acordo de Paris firmaram o compromisso de conter o aumento da temperatura média global para menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais. Um estudo publicado em 2018 pela revista científica Environmental Research Letters, do Reino Unido, estimou que, se as metas não forem cumpridas, a elevação do nível do oceano custará US$ 14 trilhões à economia global em danos causados por enchentes recorrentes até 2100. Isso se deve principalmente à vulnerabilidade da infraestrutura básica, como usinas de energia, instalações de tratamento de água, cabos subterrâneos de comunicação e redes de transporte, incluindo portos e ferrovias.

Perturbação do ecossistema polar

Algumas espécies marinhas do Atlântico Norte ameaçadas pelo aquecimento de seus habitats têm migrado em direção ao Ártico, em busca de águas mais frias. Isso tem duas consequências: a competição por alimento e espaço com espécies vulneráveis e com seres nativo dessas áreas; e o declínio das populações de peixes, um dos pilares econômicos de países como Islândia, Noruega e Espanha.Os oceanos absorvem o dióxido de carbono (CO₂) emitido pelos combustíveis fósseis. O enorme fluxo de água doce proveniente do derretimento das geleiras pode reduzir a salinidade do oceano e desestabilizar as próprias correntes oceânicas, vitais para essa absorção de carbono e para a regulação do clima global. Isso, por sua vez, quebra o ciclo do CO₂, aumentando sua concentração na atmosfera e agravando o aquecimento global. Além disso, a baixa salinidade do oceano pode desacelerar a Corrente do Golfo, afetando o inverno na Europa e a biodiversidade do Golfo do México e do Atlântico Norte.

Mas os estragos não param por aí. A Corrente do Golfo influencia significativamente as condições climáticas em boa parte das nações em desenvolvimento. A desaceleração significaria um aumento nos eventos climáticos extremos na América do Sul, no Caribe, na Índia e na África Ocidental. As enchentes ou secas nessas regiões colocam em risco a segurança alimentar e a vida de centenas de milhões de pessoas.

Geopolítica da transição energética

Estima-se que aproximadamente 13% (90 bilhões de barris) das reservas globais de petróleo convencional ainda não comprovadas e 30% das reservas de gás natural convencional não comprovadas estejam sob a tundra e o gelo do Ártico. Além disso, o Ártico contém minerais essenciais, como níquel, zinco e cobre.

Embora esses recursos permaneçam inacessíveis devido ao clima extremo, eles estão localizados parcialmente nas Zonas Econômicas Exclusivas pertencentes a EUA, Canadá, Noruega, Rússia e Dinamarca. O restante está localizado em uma zona internacional com 2,8 milhões de quilômetros quadrados, no Oceano Ártico central. Países do mundo todo assinaram o Tratado de Alto-Mar no ano passado para regulamentar essa zona internacional, mas o acordo só será válido legalmente após a ratificação de pelo menos 60 países.

Caso o degelo polar libere o acesso a esses recursos, novos cenários geopolíticos poderão se desenhar, com diferentes consequências. Por um lado, os países com acesso soberano a esses recursos poderiam sofrer pressão política para “refossilizar” suas economias, deixando de lado quaisquer estratégias de descarbonização. Por outro, potências não árticas, como a China e a Índia, estão buscando alianças comerciais, especialmente com a Groenlândia e a Rússia, para a exploração de terras raras — minerais essenciais para muitos dispositivos de alta tecnologia — além de hidrocarbonetos nas costas e Zonas Econômicas Exclusivas (ZEEs) desses países. Seria uma forma de se antecipar estrategicamente a essa nova exploração de combustíveis fósseis para reforçar sua própria segurança energética.

Novo xadrez global

O derretimento do gelo no Ártico representa mais do que grandes riscos ambientais. Ele remodelará o tabuleiro de xadrez geopolítico global, provocando tensões sobre o acesso a recursos energéticos e rotas marítimas. 

Nesse contexto, a cooperação internacional e a governança serão cruciais para gerenciar os desafios e as oportunidades de uma região no epicentro das mudanças climáticas. Para os países do Sul Global, o Polo Norte deve ser um motivo de enorme preocupação — afinal, são eles que pagarão o preço pelas decisões e medidas tomadas sobre o Ártico.