A relação entre a Argentina e a China vem se fortalecendo há quinze anos. Entre os principais eixos da ligação está o crescente fluxo comercial, o avanço da presença de investimentos do país asiático e o apoio financeiro da moeda yuan às reservas do Banco Central. Com a pandemia, a promoção da saúde foi incorporada como um pilar da relação.
Sabino Vaca Narvaja é o embaixador argentino na China, mas na prática ele trabalha como ministro no gabinete do governo. Sua agenda inclui questões como a gestão das vacinas da Covid-19, a garantia do apoio chinês à Argentina em fóruns multilaterais e a facilitação de projetos de investimento.
No final de 2019, Vaca Narvaja foi nomeado pelo atual governo como Representante Especial para a Promoção do Comércio e dos Investimentos na Embaixada da Argentina na China. Um ano depois, assumiu o cargo de embaixador. Anteriormente, ele criou um programa de cooperação China-Argentina e publicou dois livros sobre a China.
Em entrevista exclusiva ao Diálogo Chino, Vaca Narvaja analisa a relação entre os dois países no contexto da pandemia e antecipa novos investimentos chineses na Argentina.
Diálogo Chino [DC]: Por que o presidente Alberto Fernández não fez a visita planejada à China antes da metade do ano, apesar de ter feito a turnê europeia?
Sabino Vaca Narvaja [SVN]: A razão é que a China tem uma das quarentenas mais rigorosas. Suas precauções permitem que ela seja um dos países mais seguros no que diz respeito ao contágio, mas também impedem visitas estatais, já que quase nenhum presidente ou oficial pode arcar com tantos dias de isolamento. O convite ainda está aberto, mas sujeito a protocolos de saúde.
DC: Em que medida a pandemia fortaleceu o relacionamento Argentina-China?
SVN: A China foi fundamental na ajuda ao nosso país nos momentos mais difíceis da pandemia. Em 2020, a Argentina comprou quase 1.500 toneladas de suprimentos médicos da China para fortalecer nosso sistema de saúde em uma época de escassez global. Do início do ano até julho, 6 milhões de doses da vacina Sinopharm foram adquiridas, juntamente com outras 24 milhões de doses [que serão despachadas] entre julho e setembro. Além disso, vários distritos estão na fase final de aquisição de vacinas do Laboratório Biológico Cansino. A relação entre os dois países está em um grande momento, o que fica claro pelas questões multilaterais, como o apoio da China, no âmbito do Comitê de Descolonização das Nações Unidas, à reivindicação de soberania das Ilhas Malvinas.
DC: Qual o papel da China na renegociação do empréstimo do FMI da ordem de US$ 44 bilhões, que foi concedido à Argentina em 2018?
SVN: A China tem, em várias ocasiões, apoiado as negociações da Argentina com o FMI. Para a China, isto é fundamental porque contribui para a estabilidade econômica e financeira da Argentina, que é um parceiro relevante. Por outro lado, a China provou ser um aliado-chave desde a renovação da segunda parcela do swap cambial por um montante próximo a US$ 8,5 bilhões.
DC: Há algum projeto de investimento da parceria estratégica abrangente cuja realização está aguardando a visita presidencial?
SVN: A visita de Estado será fundamental para a realização de vários projetos que fazem parte do Plano Quinquenal Integrado, como a construção da quarta usina nuclear com tecnologia Hualong, parques fotovoltaicos e eólicos, gasodutos, usinas termelétricas, linhas de transmissão e barragens. Há também projetos importantes ligados ao impulso de nossa rede ferroviária para o transporte de carga e passageiros e ao fortalecimento da conectividade do Pacífico através de corredores bioceânicos. Por outro lado, estão sendo feitos trabalhos no projeto do gasoduto Vaca Muerta-Brasil, no qual empresas chinesas estão interessadas em investir.
A Argentina deve se tornar mais do que um mero exportador de matérias-primas e tem capacidade de alcançar esse objetivo
A China precisa garantir a segurança alimentar para uma população de cerca de 1,4 bilhão, e a América Latina tornou-se um fornecedor confiável de alimentos e minerais. Entretanto, a Argentina deve se tornar mais do que um mero exportador de matérias-primas e tem capacidade de alcançar esse objetivo. Precisamos exportar mais produtos de valor agregado para a China, fazendo uso da grande capacidade financeira e tecnológica do parceiro oriental. Para isso, precisamos atrair investimentos, concentrando esses investimentos na infraestrutura e na produção de bens manufaturados.
DC: Qual é a situação do projeto de construção de uma quarta usina nuclear na Argentina, em parceria com a China?
7,9 bilhões
é o valor, em dólares, do empréstimo concedido pelo banco chinês ICBC para financiar a construção do reator HPR-1000
SVN: Os trabalhos estão bem encaminhados. A fábrica utilizará a tecnologia Hualong, uma das mais avançadas do mundo, e permitirá que nosso país continue diversificando sua matriz de geração de energia e crie cerca de sete mil empregos diretos. A proposta financeira chinesa liderada pelo Banco Industrial e Comercial da China (ICBC, em inglês) consiste em financiar 85% do contrato para a construção do reator HPR-1000, oferecendo uma taxa de juros melhor que a oferecida pelo mercado e um período de carência equivalente à duração do projeto. Trata-se de um empréstimo de US$ 7,9 bilhões, que começa a ser reembolsado oito anos depois, quando o reator começar a gerar energia.
DC: Por que se abandonou a ideia de construir uma quinta usina com um reator CANDU com água pesada e urânio natural, na qual a Argentina tem muita experiência, e, em vez disso, priorizou-se a tecnologia de urânio enriquecido e água leve, que é nova no país?
SVN: Em 2014 e 2015, foram assinados acordos para a construção de duas usinas de energia nuclear. Por um lado, uma usina CANDU, que nosso país está operando desde 1984 na província de Córdoba. De outro, um contrato para engenharia, fornecimento e construção de um reator nuclear de tecnologia chinesa de urânio enriquecido e água leve. Entretanto, o governo de Mauricio Macri, com sua política externa errática em relação à China, prejudicou os principais projetos bilaterais em andamento, começando pela tentativa de paralisar as barragens hidrelétricas na província de Santa Cruz e culminando com o cancelamento do projeto da usina nuclear CANDU.
DC: Como ficará a situação da indústria nuclear no projeto atual?
SVN: Estamos buscando aumentar a participação nacional, hoje de 40%, no contrato acordado na administração anterior. Ao mesmo tempo, seguimos as discussões sobre as condições de transferência de tecnologia para a fabricação de combustível nuclear no país. Por outro lado, estamos analisando a possibilidade de reativar o projeto CANDU, e as contrapartes chinesas estão explorando as oportunidades de a indústria nuclear argentina fornecer serviços e componentes para a extensão da vida útil das usinas nucleares CANDU que funcionam na China.
DC: Como o senhor avalia as críticas ao projeto de aumentar a produção de carne suína na Argentina por meio de investimentos chineses?
SVN: Nossa região está livre de peste suína africana, peste suína clássica e síndrome respiratória reprodutiva suína. Temos também padrões sanitários de primeira classe. Como exemplo, a Alemanha, que é do tamanho de nossa província de Buenos Aires, produz 15 vezes mais carne suína do que nosso país. Portanto, temos muito potencial para desenvolver o setor de forma segura e sustentável. O setor de carne suína tem oportunidades de exportação, não apenas para a China, mas para toda a região do leste asiático. Isto porque existe um déficit de proteína suína no mercado asiático em geral, e no mercado chinês em particular, como consequência da peste suína africana, que também afetou os seus principais fornecedores, que são a Espanha e a Alemanha.
DC: Em que consiste o plano?
SVN: Um plano estratégico está sendo desenvolvido, e ele inclui incentivos ao setor e créditos específicos para motivar potenciais investidores chineses. O aumento da produção de suínos melhoraria nossa matriz de exportação, pois estaríamos agregando valor às exportações. Hoje estamos vendendo milho e pellets de soja para a Alemanha e o Chile para que eles possam exportar porcos para a China. As granjas de suínos são altamente tecnológicas e poderiam gerar energia a partir de resíduos. A localização de novas fábricas e a expansão das existentes em todo o país estão sendo estudadas, com uma perspectiva federal que inclui pequenos produtores e contribui para as economias regionais.
DC: Recentemente, a empresa Ganfeng Lithium anunciou um investimento de US$ 600 milhões para a extração de lítio em Salta, no nordeste argentino. Como você caracterizaria o interesse da China pelo lítio na Argentina?
SVN: Países como o Peru, Brasil e Chile têm uma balança comercial positiva com a China, basicamente como resultado da exportação de minerais e seus derivados. A Argentina tem enorme potencial no setor de mineração e, em particular, possui algumas das maiores reservas de lítio. Se, além da exportação de minerais, agregarmos valor agregado, por exemplo, instalando baterias de lítio ou fábricas de veículos elétricos, estaríamos industrializando nossos minerais e avançando no desenvolvimento estratégico. Um total de 80% da produção global de lítio será destinada à eletromobilidade, e este tipo de acordo com a China nos permite antecipar a demanda. A Argentina está em posição de ser competitiva no mercado global de lítio.
DC: A melhoria nos preços das commodities teve um impacto positivo na Argentina através da entrada de divisas estrangeiras, mas também exerceu maior pressão sobre a inflação e o governo introduziu restrições às exportações de carne bovina. Que impacto as restrições estão tendo sobre os embarques para a China?
SVN: Nos últimos anos, temos visto um enorme crescimento nas exportações de carne bovina, fazendo de nós o segundo maior fornecedor da China, depois do Brasil. A maior parte dos cortes demandados pela China é pouco consumida pelos argentinos, como é o caso do garrón e do brazuelo. Portanto, esperamos que o acordo de exportação nos permita encontrar um equilíbrio entre o mercado interno e externo, mantendo nossa posição como fornecedor de carne para a China.