Energia

Global Gateway: Europa mira em energia e minérios da América Latina

Bloco europeu promete bilhões de euros à infraestrutura da região por meio de plano estratégico visto como resposta à iniciativa chinesa BRI
<p>Parque eólico em Canoa Quebrada, no Ceará. União Europeia planeja cofinanciar projetos de energia solar e eólica no Brasil como parte de sua nova estratégia global de investimento em infraestrutura (Imagem: Stefan Ember / Alamy)</p>

Parque eólico em Canoa Quebrada, no Ceará. União Europeia planeja cofinanciar projetos de energia solar e eólica no Brasil como parte de sua nova estratégia global de investimento em infraestrutura (Imagem: Stefan Ember / Alamy)

A União Europeia (UE) vem demonstrando mais interesse econômico e estratégico na América Latina, o que traz uma oportunidade para impulsionar investimentos na transição energética de ambas as regiões. 

Em junho, a UE prometeu investir 45 bilhões de euros (cerca de R$ 240 bilhões) em 130 projetos da América Latina e do Caribe. As obras na região serão implementadas nos próximos quatro anos e estarão concentradas em setores como energias renováveis, lítio, hidrogênio verde, rede elétrica, transporte e saúde. 

“A parceria estratégica entre as duas regiões é mais importante do que nunca”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pouco antes da cúpula conjunta do bloco europeu com a Celac, grupo de 33 países da região, onde ocorreu o anúncio oficial dos investimentos. 

Na mesma ocasião, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, ressaltou que “poucas vezes tinha visto tanto interesse político e econômico dos países da UE em relação à América Latina”.

O novo impulso nas relações bilaterais ocorre num momento peculiar em que a Europa reavalia seus laços internacionais e sua segurança energética. Desde a invasão da Rússia à Ucrânia, em 2022, o bloco tenta “reduzir os riscos” da dependência comercial da China.

As obras vêm sob o selo Global Gateway, uma estratégia europeia lançada em 2021 para investir internacionalmente em infraestrutura. Ela tem sido interpretada como uma resposta do bloco à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, em inglês), da China, que enviou bilhões de dólares para projetos de infraestrutura em países da América Latina e do Caribe na última década.

Impulso à transição energética?

A União Europeia já é o principal investidor na América Latina e no Caribe e o terceiro maior parceiro comercial da região, atrás dos Estados Unidos e da China. Por sua vez, a América Latina é o quinto maior parceiro comercial da UE, atrás justamente da China e dos EUA, além de Reino Unido e Suíça.

O otimismo cresce em relação à Global Gateway diante da perspectiva de uma transição “verde e justa”, uma vez que o bloco europeu busca a liderança no desenvolvimento industrial e tecnológico da transição energética e se coloca a favor da descarbonização. 

“Podemos fornecer know-how em desenvolvimento ambiental”, disse o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, na cúpula UE-Celac.

No Brasil, entre as iniciativas previstas pela Global Gateway, há o cofinanciamento de projetos de energia solar e eólica, com o apoio do Banco Europeu de Investimento (BEI) e a participação de Dinamarca, Alemanha, Espanha, Holanda, França e Portugal.

No México, o objetivo é desenvolver a capacidade local de construção de usinas de energia solar, veículos elétricos e a produção de baterias no estado de Sonora, no norte do país, também com o apoio do BEI e de Dinamarca, Espanha e França.

Na Argentina, a UE se comprometeu a apoiar projetos de energia renovável e a expandir e modernizar a rede elétrica do país, com financiamentos de bancos internacionais e com a participação de Espanha, França e Itália.

O desenvolvimento do hidrogênio verde é outro foco da nova onda de investimentos europeus. A Comissão Europeia e bancos internacionais devem apoiar o Chile no objetivo de abastecer 15% do mercado global de hidrogênio até 2050, além de ajudar o Brasil a atingir sua meta de produzir 500 mil toneladas de hidrogênio verde até 2030.

Até o Uruguai assinou um memorando de entendimento com a UE durante a cúpula para produzir hidrogênio verde, setor que pode representar até 2% do PIB do país até 2040, segundo cálculos do governo uruguaio.

“A Europa tem enorme necessidade de diversificar sua matriz energética, e há grande interesse no hidrogênio verde”, avalia Gustavo Castagnino, diretor de assuntos corporativos da Genneia, empresa de energia renovável da Argentina. “Assim como os EUA e a China, a UE visa garantir relações especiais com mercados estratégicos”.

A Europa tem enorme necessidade de diversificar sua matriz energética
Gustavo Castagnino, diretor de assuntos corporativos da Genneia

A Global Gateway também representa mudanças no atual formato de cooperação entre duas regiões. Antes, instituições europeias investiam em projetos de gestão de resíduos, tratamento de esgoto e proteção da biodiversidade na América Latina. Agora, esperam-se projetos em mais áreas e com outros atores, como a iniciativa privada. 

Em entrevista ao Diálogo Chino, Luca Pierantoni, da delegação da UE na Argentina, disse que “o objetivo é que o setor privado desempenhe um papel central” na cooperação. As empresas europeias, diz ele, devem investir na região “com a ajuda de um sistema de garantias e seguros da UE” e o bloco oferecerá crédito e subsídios aos países.

Recursos estratégicos

Além do hidrogênio, a UE tem grande interesse no lítio, essencial para suprir veículos elétricos, painéis solares e baterias. 

As salinas do Triângulo do Lítio, formado por Argentina, Bolívia e Chile, representam cerca de 60% das reservas globais do minério.

Um memorando de entendimento assinado por Chile e EU se concentra justamente em operações de lítio. E recentemente, europeus fecharam acordos semelhantes com outros países mineradores, como Argentina (junho de 2023), Namíbia e Cazaquistão (ambos em novembro de 2022), Ucrânia (julho de 2021) e Canadá (junho de 2021).

Estima-se que a demanda por lítio, impulsionada pela eletrificação do transporte, aumentará cinco vezes até 2035.

Manifestante segura placa com os dizeres ‘o lítio é nosso, vamos defendê-lo’ em Santiago do Chile
Manifestante segura placa com os dizeres ‘o lítio é nosso, vamos defendê-lo’ em Santiago do Chile. Argentina, Bolívia e Chile detêm 60% das reservas globais do minério, crucial para a transição energética (Imagem: Ivan Alvarado / Alamy)

Diante dessa perspectiva — e em razão de investimentos americanos, europeus e chineses —, a produção cresce no Triângulo do Lítio. Na Argentina, a expectativa é de que as exportações de lítio aumentem oito vezes nos próximos três anos.

A produção de lítio, porém, tem enfrentado resistência de organizações sociais e comunidades próximas aos locais de mineração, que alertam para os riscos e impactos ambientais de sua exploração. Também é discutida a contribuição do lítio para as economias regionais — algo que o Chile aborda em sua nova estratégia para o metal.

De acordo com Pierantoni, a UE terá cuidado ao abordar essas preocupações: “O lítio é um dos focos de trabalho da agenda entre a União Europeia e os países da região. O objetivo é ter uma presença maior no setor, e queremos fazer isso à maneira europeia, ou seja, com a adesão estrita às regulações ambientais e por meio do diálogo com os diferentes atores envolvidos”.

O gás natural também é um recurso estratégico, considerado pela UE um combustível de transição para zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050. Desde que cortou as importações do combustível vindos da Rússia, em razão de sua invasão à Ucrânia em 2022, a UE tem buscado expandir sua produção doméstica e fechado acordos com novos fornecedores para o gás natural.

Uma minuta de um acordo divulgada em junho indica ainda um compromisso da Argentina de fornecer gás natural à Europa. O acordo se baseia na perspectiva de aumento da produção dos campos de Vaca Muerta, na província de Neuquén, uma das maiores reservas globais de petróleo e gás não convencional. 
No entanto, o aumento da capacidade argentina de exportar gás exigiria um grande investimento, por exemplo, em usinas de liquefação — com o qual a UE não se comprometeu. Sua exploração também é alvo de críticas por analistas: para eles, a UE deveria concentrar investimentos em energias renováveis na Argentina.

Alternativa ao Cinturão e Rota?

A Global Gateway é “uma reação à expansão da presença da China no Sul Global”, segundo Margaret Myers, diretora de Ásia e América Latina do Diálogo Interamericano.

Nos dez anos desde seu lançamento, a BRI, principal iniciativa chinesa para o investimento em infraestrutura, já entregou US$ 1 trilhão no mundo todo.

Dos 148 países que integram a iniciativa, 21 são da América Latina e do Caribe. Além disso, a China tem acordos de livre-comércio com Chile, Costa Rica, Equador e Peru, além de acordos de parceria estratégica com Argentina, Brasil, Chile, Equador, México, Peru e Venezuela. Com isso, o comércio entre China e América Latina aumentou 26 vezes nos últimos 20 anos, atingindo uma balança de US$ 450 bilhões em 2022.

Entre 2005 e 2022, as duas principais instituições financeiras de desenvolvimento da China — o Banco de Exportação-Importação da China e o Banco de Desenvolvimento da China — concederam mais de US$ 136 bilhões em empréstimos para projetos estatais na América Latina e no Caribe.

O setor de energia tem sido o foco dos investimentos chineses na região, com projetos de hidrelétricas, usinas solares e eólicas, campos de petróleo e gás, além de redes de transmissão elétrica. A mineração, principalmente de cobre e lítio, também é uma área importante de cooperação e investimento.

Trabalhadores instalam painéis solares da PowerChina em usina em Cafayate, província de Salta, Argentina
Trabalhadores instalam painéis solares da PowerChina em usina em Cafayate, província de Salta, Argentina. O setor de energia tem sido o foco dos investimentos chineses na América Latina e no Caribe (Imagem: Martin Zabala / Alamy)

Myers acredita que, embora os investimentos chineses tenham ficado mais verdes nos últimos tempos, ainda é difícil avaliar o compromisso da China com a transição energética da América Latina. Olhando para o futuro, “certamente as empresas chinesas seguirão buscando acesso a minerais, como lítio e cobalto, essenciais para cadeias produtivas”, acrescenta Myers.

Resta saber se a UE vai sustentar investimentos de longo prazo como fez a BRI. Também é difícil garantir que a China continue com esses planos, já que os empréstimos caíram nos últimos anos, e o país asiático parece mais preocupado em resolver seus próprios problemas econômicos. Para a América Latina, no entanto, a Global Gateway pode representar um complemento — e não necessariamente uma concorrência — aos projetos chineses.

“Pode haver tensões entre os projetos europeus e chineses”, diz Sergio Cesarin, pesquisador sobre a China no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina. “Mas os governos da região devem ser capazes de gerenciar os investimentos externos em prol do desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida”.