AAprimeira fábrica de células para baterias de lítio da América Latina deve entrar em operação nas próximas semanas, na Argentina. Com isso, o país busca melhorar sua posição nos mercados regionais de transporte elétrico e armazenamento de energia, dando um passo além da extração do mineral.
A industrialização da produção de lítio na Argentina faz parte de uma estratégia para gerar valor agregado a partir do mineral, plano defendido pelo governo de Alberto Fernández, que termina sua gestão no dia 10 de dezembro para dar lugar ao presidente eleito Javier Milei. Mas o otimismo em relação a esses projetos não é compartilhado por todos os atores do setor. Alguns veem o movimento mais como um desejo do que uma realidade concreta, ainda mais considerando que se trata de uma dura corrida para tentar competir com os líderes globais na produção de baterias elétricas, como a China, os Estados Unidos e a Europa.
A empresa Y-TEC, de economia mista, abrirá sua primeira fábrica de baterias de lítio na cidade de La Plata, na província de Buenos Aires. A instalação chega após vários anos de pesquisa em laboratório e US$ 10 milhões de investimentos que permitiram à empresa testar a viabilidade do projeto em uma unidade-piloto.
“Este é um marco para nós”, comemora o presidente da Y-TEC, Roberto Salvarezza, em conversa com o Dialogue Earth. A inauguração da fábrica, diz ele, mostra o progresso que a empresa fez para alcançar um “conhecimento total da tecnologia” que permitisse a produção em escala industrial.
A fábrica deve gerar, anualmente, cerca de 15 megawatts-hora (MWh) de bateria, equivalente à eletricidade necessária para abastecer 2,5 mil residências ou 400 veículos elétricos por 12 meses, afirma a Y-TEC. Inicialmente, a empresa não deve trabalhar com a indústria de automóveis, e sim, com o armazenamento de energia para radares militares portáteis e áreas rurais remotas não conectadas à rede elétrica.
“Estamos diante de um evento histórico, pois encerra-se o debate sobre a possibilidade de fabricar baterias elétricas na Argentina”, defende Hernán Letcher, vice-presidente da YPF Litio, controladora da estatal Y-TEC. “Agora o debate é outro: a qual mercado vamos levá-las. Acho que podemos fabricar baterias para o armazenamento de energia renovável em comunidades isoladas e, no futuro, visar o mercado regional de eletromobilidade”.
Atualmente, a Argentina tem três instalações industriais que produzem carbonato de lítio, principal componente das baterias de íon-lítio. Mas há ao menos outros 38 projetos em fase inicial, a maioria no noroeste do país, que podem iniciar a produção nos próximos cinco anos. Em 2022, foram produzidas 33 mil toneladas de carbonato de lítio na Argentina — cerca de 5% da produção mundial. Em razão da vasta disponibilidade de recursos minerais do país, essa posição pode aumentar rapidamente: estima-se que o país abrigue quase 25% das reservas globais de lítio — só fica atrás da Bolívia.
Conforme dados do Ministério de Economia da Argentina, 42% da produção nacional de lítio em 2022 foi exportada para a China, líder mundial na fabricação de veículos elétricos e, portanto, com uma grande demanda de importação do metal. Por sua vez, a China tem investido fortemente em projetos de lítio na Argentina, com empresas chinesas envolvidas nos diversos projetos ainda em fase exploratória — como a Ganfeng Lithium, sócia de uma usina de lítio em Cauchari-Olaroz, na província de Jujuy.
Dúvidas do setor privado
Porém, o otimismo do governo argentino em relação à perspectiva de gerar valor agregado na produção de lítio contrasta com a cautela (e até mesmo o ceticismo) das mineradoras. Representantes do setor conversaram com o Dialogue Earth sobre a necessidade de pensar no desenvolvimento a longo prazo e disseram que primeiro o país deveria se firmar como um produtor confiável de carbonato de lítio. Isso, por si só, já exige grandes investimentos e melhorias técnicas.
Para Jorge González, diretor nacional de Promoção e Economia da Mineração, a criação de um projeto de produção de carbonato de lítio requer no mínimo dois anos de trabalho — sem incluir o período de prospecção — e exige um investimento médio de US$ 400 milhões, dependendo de sua escala.
Fora as discussões sobre a industrialização do lítio, as mineradoras desconfiam muito do governo de Fernández que, segundo elas, tentou abocanhar parte de seus negócios. Os representantes dessas empresas se recusaram a dar entrevista, argumentando ser um tema sensível. Porém, em conversas extraoficiais, alguns deles manifestaram aversão aos projetos de lei que estipularam cotas da produção voltadas para o mercado interno, com um preço menor do que o valor de exportação.
A mais recente dessas propostas foi apresentada em maio por deputados federais da coalizão peronista, a Frente de Todos (agora União pela Pátria). O projeto de lei propôs que o lítio fosse considerado um “recurso estratégico” e de “interesse público nacional”, garantindo ao Estado a prioridade na compra do mineral extraído. O setor privado ficaria apenas com o excedente.
A iniciativa, porém, é rechaçada pelas províncias onde a produção está concentrada e que, segundo a Constituição da Argentina, são as proprietárias legítimas desse recurso: essas províncias estabeleceram legislações diferentes, geralmente menos intervencionistas e mais abertas ao capital privado.
Uma das vozes céticas aos planos do governo sainte é José Gustavo Castro, um dos principais especialistas em lítio no país e vice-presidente da Câmara de Mineração da província de Salta. Ele criou cursos sobre produção de lítio e mineração sustentável em várias universidades da Argentina.
Embora Castro elogie o progresso da Y-TEC em adicionar valor agregado à cadeia do lítio por meio de pesquisa e desenvolvimento, ele alerta que “é muito improvável que a Argentina se torne um país competitivo a médio prazo na fabricação de baterias”.
Há um abismo tecnológico entre ter lítio e fabricar baterias. É como dizer que, por termos alumínio em Puerto Madryn, deveríamos fabricar Boeings 747José Gustavo Castro, vice-presidente da Câmara de Mineração de Salta
“Todos os dias há novidades nessa área, e estamos muito atrás das megafábricas de China, Coreia, Japão, Estados Unidos e Europa”, acrescenta Castro. “Para fins práticos, nossa vantagem é a produção de carbonato de lítio e, a partir disso, podemos fazer muito em termos de geração de pesquisa, desenvolvimento e conhecimento”.
Para Castro, a Argentina possivelmente sofre com o peso de sua herança industrialista, o que, segundo ele, cria uma pressão social para a fabricação de baterias: “É quase como se fosse um pecado não fazê-lo, mas isso não condiz com a realidade”.
“Há um abismo tecnológico entre ter lítio e fabricar baterias”, explica o especialista. “É como dizer que, por termos produção de alumínio em Puerto Madryn [no sul da Argentina], deveríamos estar fabricando Boeings 747”.
A cientista de materiais Eleonora Erdmann, pesquisadora da Universidade de Salta, diz que a atenção dada à industrialização do lítio muitas vezes desvia o foco do que deveria ser a prioridade: a produção de lítio de alta qualidade, como carbonato de lítio, hidróxido de lítio e cloreto de lítio. Ela explica que apostar na produção de alta qualidade pode tornar o setor mais resiliente diante dos avanços tecnológicos e das rápidas mudanças do mundo globalizado.
Além de saber se o país consegue competir no mercado regional de baterias, há outro debate em torno da tecnologia escolhida para a produção na fábrica de La Plata. Para Saúl Feilbogen, advogado especializado em lítio que presidiu a cúpula Argentina & LATAM Lithium, realizada em novembro em Buenos Aires, é possível que novas tecnologias em breve ultrapassem a bateria de íon-lítio produzida pela Y-TEC.
Atualmente, há dois tipos principais de baterias em competição. As baterias de fosfato de ferro-lítio (LFP, na sigla em inglês) usam pequenas folhas de fosfato de ferro, material muito mais barato, mas que oferece menor performance para veículos elétricos. Outro tipo de tecnologia é a NCA: baterias que usam um cátodo [o eletrodo positivo do circuito de baterias] feito de óxidos de níquel, cobalto e alumínio. Esses materiais são mais caros, difíceis de obter e têm um impacto ambiental maior. A grande vantagem das NCAs, no entanto, é a maior capacidade que oferecem em comparação com as LFPs do mesmo tamanho.
“A tecnologia está se inclinando para baterias de cobalto, níquel e óxido de alumínio”, diz Feilbogen. “Se isso virar o padrão, a Argentina ficará de fora da corrida, porque são materiais muito caros e escassos”.
Quando questionada pelo Dialogue Earth, a Y-TEC argumenta que as baterias de LFP têm sido escolhidas por marcas do setor automotivo como Tesla, Volkswagen e Ford. “Atualmente, a Europa está construindo grandes fábricas desse tipo”, diz Roberto Salvarezza, presidente da empresa. “Ninguém investe milhões de dólares se estiver pensando em uma mudança tecnológica a curto prazo. É a tecnologia mais barata, a mais segura e a que tem a vida útil mais longa”.
Qual será o futuro do lítio na Argentina?
Embora represente um primeiro passo no desenvolvimento tecnológico da Argentina, uma fábrica com capacidade anual de 15 MWh está muito abaixo da escala média global da indústria, em que a capacidade instalada chega a ser cem vezes maior, como forma de garantir rentabilidade ao negócio.
A capacidade de armazenamento global de baterias de lítio em 2022 foi de 1,57 terawatt-hora (TWh) — sendo 1,2 TWh só na China, que tem fábricas de baterias de lítio com capacidade de armazenamento de muitos gigawatts-hora anuais, assim como EUA e Europa.
A Y-TEC reconhece seu estágio inicial de desenvolvimento e elaborou um plano para atingir uma escala maior a longo prazo. O próximo grande passo será dado em 2024, quando uma segunda fábrica de baterias com capacidade de 75 MWh deverá entrar em operação na cidade de Santiago del Estero, na região norte do país. Com isso, a empresa estima que conseguirá atender à demanda de armazenamento de energia renovável por comunidades afastadas da rede elétrica pública, bem como suprir os radares móveis das Forças Armadas.
“Para a próxima etapa, estamos conversando com todos os membros do setor interessados em realizar a produção dos cátodos e com potenciais parceiros para a produção das células da bateria, a fim de aumentar a escala dessa produção”, diz Salvarezza, Y-TEC.
Na mesma linha, Hernán Letcher, da YPF Litio, diz que o próximo passo será melhorar a qualidade do processo e reduzir custos. “A Argentina tem uma vantagem no fornecimento para o mercado sul-americano porque, além de lítio, tem fábricas de montagem de carros”, avalia.
Os planos da Y-TEC enfrentam um cenário de incertezas após a vitória de Javier Milei no segundo turno das eleições no país, em 19 de novembro. Durante a campanha, Milei anunciou repetidamente sua intenção de privatizar a YPF, petrolífera com 51% de participação do governo, e todas suas unidades sem fins lucrativos — como a Y-TEC — para facilitar o processo.
Um dia após a vitória de Milei, a YPF viu suas ações subirem em razão de declarações de uma fonte anônima da equipe dele em entrevista à Reuters indicando a possível privatização: “Ainda estamos tentando ver todos os negócios ou atividades de que a YPF participa e em quais ela deve se concentrar. Mas ainda estamos em um estágio preliminar”.
Milei também é um defensor da não interferência do Estado no setor de lítio do país, o que significa que o processo de industrialização ficaria nas mãos da iniciativa privada.