Mais de 200 instituições financeiras em todo o mundo já têm políticas de combate ao carvão, nas quais elas vêm deixando de financiar novos projetos e cortando os investimentos dos existentes. O gás natural, por outro lado, ainda é apresentado por alguns setores como uma alternativa mais limpa que o carvão e um “combustível de transição” para uma economia de baixo carbono. Mas essa visão é controversa, e projetos de gás enfrentam vários desafios, como o vazamento de emissões de metano.
A demanda por gás natural cresceu substancialmente nos últimos anos, e a tecnologia para sua extração continua a amadurecer. Muitos países apoiam projetos de gás para garantir sua segurança energética, e as perspectivas de investimento podem soar promissoras. Como observado no último relatório Banking on Climate Chaos, empresas de gás natural liquefeito (GNL) atraíram quase 50% mais financiamento em 2022 do que em 2021.
No entanto, muitos projetos de gás natural fracassaram ao redor do mundo, e as características que eles têm em comum precisam ser levadas em conta. De acordo com um relatório de 2021 da organização Global Witness, a União Europeia (UE) desperdiçou quase 440 milhões de euros em projetos de infraestrutura de gás que fracassaram ou podem fracassar — e isso não é um problema exclusivo da região. Esse é um desafio para o setor como um todo e deveria soar um alarme para futuros investimentos em gás.
Lucro estimado é irrealista
Em todo projeto de gás natural, os valores de retorno sobre o investimento são meticulosamente calculados no estágio de avaliação. O lucro real, no entanto, está fortemente sujeito a flutuações de oferta e do preço do combustível, o que pode fazer com que os projetos sejam suspensos e até mesmo cancelados.
A geração de eletricidade a partir do gás é, em geral, duas a três vezes mais cara que a do carvão. Isso porque os custos de transporte e distribuição são altos, representando até 85% do custo da energia gerada pelo gás. As flutuações no preço do GNL e a volatilidade das taxas de câmbio aumentam as incertezas, já que a maioria dos países depende de importações para o fornecimento do combustível.
Em julho de 2021, duas usinas de gás financiadas pela China em Mianmar interromperam suas operações, segundo o site local de notícias Irrawaddy. As unidades, alimentadas por GNL importado da Malásia, tornaram-se financeiramente insustentáveis após pouco mais de um ano de operação. Os motivos incluíam o aumento do preço do gás nos mercados internacionais, a desvalorização do kyat, moeda de Mianmar, em relação ao dólar, o declínio na demanda de eletricidade e a incapacidade do governo de pagar os fornecedores, disse uma fonte do Ministério de Energia de Mianmar ao Irrawaddy.
A VPower, uma das proprietárias das usinas, se desfez de dois de seus três projetos de energia a gás em Mianmar, levando o governo a perder parte do investimento de US$ 800 milhões nos projetos.
O caso de Mianmar não é isolado. Os retornos econômicos de muitas usinas de gás natural que dependem de GNL importado são altamente suscetíveis a mudanças geopolíticas.
Após a invasão da Rússia à Ucrânia em 2022, os preços do GNL subiram em todo o mundo, já que, para reduzir sua dependência do fornecimento russo, a Europa importou mais dessa commodity de outras regiões, de acordo com uma análise do Instituto de Economia Energética e Análise Financeira (IEEAF). Os Estados Unidos lucraram com a exportação de mais GNL para a Europa, o que levou o preço do gás no mercado interno dos EUA ao valor mais alto em quase uma década, de US$ 8,04/MMBtu (milhões de unidades térmicas britânicas) naquele ano, contra US$ 1,96/MMBtu em 2016.
Oleodutos paralisados
Diferentemente do carvão, as usinas de gás geralmente exigem investimentos em terminais e gasodutos de GNL, a fim de garantir um fornecimento estável do combustível. Em alguns casos, os projetos de gasodutos são cancelados ou suspensos devido a custos mais altos do que o esperado, além de preocupações socioambientais e políticas.
Isso aconteceu, por exemplo, em 2020, com um gasoduto que corta a Bulgária, Romênia, Hungria e Áustria. O projeto foi paralisado porque ninguém quis se comprometer a comprar o gás sem a confirmação da produção, e os responsáveis pelo projeto não queriam avançar sem a garantia de compra. Consequentemente, o projeto de 430 milhões de euros foi cancelado após concluída sua primeira fase.
Nos Estados Unidos, a holding de energia Duke Energy cancelou, desde 2013, projetos de gasodutos que somam US$ 11,6 bilhões em vários estágios de desenvolvimento devido ao aumento dos custos, ações judiciais ambientais e retornos abaixo do esperado.
Mas o exemplo recente e de maior destaque de um gasoduto extinto talvez seja dos gasodutos Nord Stream. Nesse projeto, quatro tubulações de gás natural passam sob o Mar Báltico, ligando a Rússia à Alemanha. O projeto de 16,9 bilhões de euros foi cofinanciado por empresas da Rússia, Alemanha, França, Holanda e Austrália.
Os dois dutos que constituem o Nord Stream 1 entraram em operação em 2011, mas a Rússia interrompeu o fornecimento de gás em 2022, após a invasão da Ucrânia. Os outros dois, chamados Nord Stream 2, foram concluídos em 2021, mas nunca entraram em operação. A situação se tornou ainda mais complicada depois que supostos ataques levaram ao rompimento de três dos quatro dutos.
Demanda pressionada por energias renováveis
A participação do gás natural no mercado vem diminuindo com os avanços das energias renováveis. De acordo com o think tank Ember e o IEEAF, a energia gerada de fontes eólica e solar na UE excedeu a do gás pela primeira vez em 2022 — e a diferença segue aumentando.
Além disso, os picos de eletricidade (das 16h às 20h) estão sendo reduzidos pelo notável desenvolvimento da energia distribuída — fontes de geração de energia menores, gerenciadas pelo próprio consumidor.
Nos cenários estudados pela IEEAF, a energia solar em telhados e o comércio de baterias podem reduzir entre 67% e 92% os picos de eletricidade. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, essa curva se achata, e a demanda pela energia de transição, como o gás, também cai.
Residências na Austrália, por exemplo, já gastaram cerca de 25 bilhões de dólares australianos (R$ 81 bilhões) em geração distribuída, e esse valor deve aumentar pelo menos seis vezes na próxima década.
Além disso, as usinas de combustíveis fósseis são criticadas pelos altos valores que cobram para regular o pico de demanda. Em março de 2023, por exemplo, o jornal britânico Guardian informou que a usina a gás de Coryton, em Essex, Reino Unido, produz energia a 1,95 libras por quilowatt-hora — bem acima da média de 0,2 a 0,4 libras. Essa tarifa exorbitante causou revolta, principalmente depois do aumento da eletricidade com a invasão russa na Ucrânia. Meses depois, o Ofgem, órgão regulador do Reino Unido para os mercados de gás e eletricidade, anunciou novas regras para evitar lucros excessivos.
Sem CO₂, mas com metano
Os compromissos de transição energética de vários países, sem dúvida, vêm restringindo os combustíveis fósseis. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente rejeita o uso do gás natural como primeira opção para combater as mudanças climáticas devido às suas emissões de gases de efeito estufa.
Usinas de gás natural emitem 50% menos CO₂ do que as de carvão, mas o metano proveniente desses projetos vem há muito sendo subestimado. Como gás de efeito estufa, ele tem 80 vezes a potência do CO₂ nos primeiros 20 anos após atingir a atmosfera.
Se levarmos em conta o vazamento de metano como parte de uma análise de emissões do ciclo de vida do gás natural, isso pode colocar em xeque a ideia de que ele seja uma fonte de energia limpa. Um estudo publicado no ano passado no periódico Environmental Research descobriu que, mesmo com o vazamento de metano a uma taxa de apenas 0,2%, as emissões de carbono do carvão e do gás são praticamente as mesmas em um período de 20 anos. E quando as diferentes taxas de vazamento são levadas em consideração, as emissões do ciclo de vida do gás natural podem superar as do carvão.
A tecnologia de coleta de dados sobre emissões de metano evoluiu nos últimos anos. O monitoramento por satélite agora permite um exame mais minucioso do possível vazamento de metano em projetos de gás. A UE e os EUA começaram a impor limites mais rígidos para as emissões de metano. Embora seja improvável que isso leve ao fechamento das usinas de gás, as adaptações necessárias nos projetos aumentam seus custos operacionais, enfraquecendo a competitividade em relação a outras fontes de energia.
Enquanto isso, novos projetos terão cada vez mais que arcar com responsabilidades ambientais. Na África do Sul, por exemplo, as emissões de metano tornaram-se um argumento central em várias contestações legais a projetos de gás natural propostos. É de se esperar que esses projetos enfrentem mais restrições à medida que a crise climática se intensifica, e o regime regulatório para emissões de carbono se torna mais rigoroso.
O avanço dos projetos de gás, que geralmente dependem de corporações transnacionais para investir e operar, também pode ser significativamente prejudicado pela oposição local.
O projeto de GNL do grupo francês TotalEnergies, em Moçambique, é o primeiro projeto do tipo no país, mas a “corrida do gás” na província de Cabo Delgado provocou a resistência da sociedade civil. A campanha “Say No to Gas! in Mozambique” (Diga não ao gás em Moçambique), formada por uma aliança de organizações nacionais e internacionais, argumenta que as emissões de gases de efeito estufa e a atividade extrativista associada ao projeto terão um impacto devastador e irreversível em terra e mar.
Eles alertam para os riscos a espécies criticamente ameaçadas de extinção e ao Arquipélago de Quirimbas, uma reserva da biosfera da Unesco, além da possível contaminação do solo e da água, o que prejudicaria a saúde dos moradores. O projeto foi paralisado após pressões de grupos ativistas, que agora cobram que bancos e investidores parem de financiá-lo.
Como muitos projetos de gás natural demonstraram, termos como “combustível de transição” e “energia limpa” são slogans de relações públicas para frear o declínio de empresas de gás. Os projetos podem parecer oportunidades de investimento atraentes, mas há uma série de problemas pela frente. O impacto de fatores geopolíticos e o câmbio flutuante sobre o preço e a estabilidade do fornecimento de gás, juntamente com o apetite global por uma transição de baixo carbono, pode reduzir os lucros de projetos de gás a ponto de eles serem engavetados ou cancelados. Considerando a lista de projetos fracassados e os riscos de tais investimentos, eles precisam ser analisados sob uma perspectiva de longo prazo para evitar perdas graves.
Este artigo foi originalmente publicado no China Dialogue.