Energia

Crise hídrica pressiona produtores rurais a migrar para energia solar

Com receio de racionamento de energia e aumento na conta de luz, agricultores e pecuaristas adotam sistema sustentável e autossuficiente
<p>Instalação de energia solar avança no meio rural em meio à intensificação da crise hídrica no Brasil (Imagem: Björn Wylezich / Alamy)</p>

Instalação de energia solar avança no meio rural em meio à intensificação da crise hídrica no Brasil (Imagem: Björn Wylezich / Alamy)

Nos próximos meses, a propriedade de 34 hectares da produtora Sara Dal Pozzo Callegaro, no município de Matelândia, na região Oeste do Paraná, terá sua paisagem alterada. O galpão utilizado para a ordenha das 80 vacas leiteiras, que rende 1,1 mil litros de leite por dia, e o espaço com capacidade para 21 mil frangos por lote vão ganhar a companhia de uma usina fotovoltaica com 85 painéis solares.

1,3 mil vezes


é o quanto cresceu a capacidade instalada dos sistemas fotovoltaicos no meio rural nos últimos cinco anos

A decisão da família Callegaro em investir R$ 177 mil na instalação de uma usina fotovoltaica passa, entre outras questões, por tentar driblar as consequências da crise hídrica que atinge o Brasil. A falta de chuvas sazonais tem reduzido o nível dos reservatórios das hidrelétricas, responsáveis por 63,8% da geração de energia do país.

Com isso, as termelétricas tiveram que suprir a demanda brasileira, o que, além de aumentar as emissões de CO2, resulta no aumento da conta de luz — com uma sobretaxa de 52% a cada 100 kWh a partir de julho — e  traz, ainda, a possibilidade de severos racionamentos de energia elétrica.

A família enxergou na energia solar uma oportunidade econômica e de autossuficiência energética. “Com a energia gerada pela usina solar, será possível atender à demanda do aviário, do galpão da pecuária leiteira e das duas casas [uma da família e outra de funcionários]”, ressalta Callegaro. Hoje, a propriedade rural gasta, em média, 6 mil kWh por mês, levando a conta de luz a girar em torno de R$ 3 mil por mês. Com a instalação fotovoltaica, a conta vai ser zerada.

Até mesmo a nova igreja da cidade, que está em construção, vai ter painéis solares

Assim como os Callegaro, milhares de produtores rurais estão migrando para o uso da energia solar em busca de um respiro para o bolso e a garantia no fornecimento de energia. Nos últimos cinco anos, a capacidade instalada dos sistemas fotovoltaicos cresceu 1,3 mil vezes no meio rural, saltando de 0,58 MW para 791,32 MW (entre junho de 2016 e junho de 2021). Mas o setor rural ainda representa 13% da potência instalada no Brasil, de acordo com dados de 2020 da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar).

“O mercado está aquecido, com uma procura bastante grande. E a crise hídrica contribui para isso. O anúncio em maio do governo federal para a bandeira vermelha [indicando o aumento da tarifa] fez aumentar a procura por parte dos produtores rurais”, destaca Kleber Rissardi, sócio-proprietário da Esco Iguassu, que há quatro anos instala painéis solares e vem acompanhando o boom do mercado.

“O preço dos painéis é atraente e permite um retorno do investimento em poucos anos. Praticamente todos são chineses, com tecnologia de ponta. Em relação ao sistema fotovoltaico, o que vem da China é referência mundial e está contribuindo para o desenvolvimento do setor no Brasil”, complementa.

Luciane May e sua família posam na frente de um trator.
Luciane May e sua família durante a colheita do milho (Imagem: Carlos Guimarães Filho)

Os painéis solares também passaram a fazer parte do cenário de Campo Verde, município majoritariamente rural do Mato Grosso. Nos rotineiros passeios de bicicleta por lavouras de soja e milho da região, a produtora Luciane May  percebe que o número de usinas solares vem aumentando.

“Cada vez mais o pessoal está aderindo a esse tipo de energia limpa. Muitos dos nossos vizinhos já os colocaram. Até mesmo a nova igreja da cidade, que está em construção, vai ter painéis solares”, conta May.

Na propriedade que ela gerencia ao lado do pai e dois irmãos, a instalação de uma usina solar com 70 painéis está programada para agosto, logo após o término da colheita da segunda safra anual de milho. O sistema vai abastecer a propriedade da família, outras duas áreas arrendadas e três casas na cidade.

“Desde 2019, a nossa conta de luz tem subido muito por conta da alta da tarifa. No último ano, mais do que dobrou. Então, fazendo as contas, o valor da conta de luz hoje permite pagar o financiamento da instalação e ainda sobra dinheiro”, explica May. “É um movimento coletivo [a instalação de sistemas fotovoltaicos] que está acontecendo por aqui”.

Economia e preservação

Além da economia financeira e a redução dos riscos de racionamento de energia, a sustentabilidade é um dos fatores que atrai alguns produtores rurais a investir na energia fotovoltaica, como no caso dos Callegaro.

“Já fazemos o reaproveitamento de água por meio de cisternas e a preservação de nascentes dentro da propriedade. Ações de baixo impacto ambiental sempre estiveram no nosso radar. A usina solar é mais uma. E, por ser uma energia limpa, fizemos questão de colocá-la”, destaca a produtora.

A usina hidrelétrica de Itaipu
A usina hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná entre o Brasil e o Paraguai. Os níveis dos reservatórios estão baixos, limitando a geração de energia (Imagem: Caio Coronel / Itaipu Binacional / 2020)

Mas a preocupação com as mudanças climáticas não costuma pautar as decisões de agricultores que optam pela transição energética. “Sem dúvida, o principal motivo para a instalação de energia solar nas propriedades é a redução dos gastos, principalmente em produtores de frango, suínos e leite, que consomem muita energia. Até existe uma preocupação de preservar o meio ambiente, algo comum em outros países. Mas no Brasil é preciso desenvolver mais essa cultura”, diz Rissardi, da Esco Iguassu.

A crise hídrica e o consequente aumento da conta de luz em 2021 não é um episódio isolado. O aumento da demanda de energia e os riscos climáticos, com a redução de chuvas sazonais, preocupam o setor elétrico há alguns anos. E cientistas alertam que governos devem considerar as mudanças climáticas na decisão de construir usinas hidrelétricas, pois elas podem se tornar insustentáveis, ambiental e economicamente.

US$3,5 bilhões


é o quanto custa, anualmente, a destruição dos biomas à indústria da soja

Por isso, diversificar a matriz energética brasileira pode reduzir a pressão sobre o sistema elétrico, além de minimizar impactos ambientais relacionados às hidrelétricas, segundo a consultora e pesquisadora independente da área de meio ambiente Rafaela Flach.

“É preciso virar essa chave”, diz Flach. “O sistema fotovoltaico não exige a construção de grandes empreendimentos [como os reservatórios das hidrelétricas] e aumenta a autonomia do produtor. Ele tem liberdade de manejar a energia que produz. Vejo um potencial grande [da energia solar de abastecer o meio rural brasileiro]”.

Um estudo recente, desenvolvido por Flach em parceria com outros pesquisadores e publicado na revista World Development, mostra que o desmatamento, principalmente da Amazônia e do Cerrado, aumenta a temperatura do ambiente e reduz a precipitação pluviométrica local, podendo ressecar o solo e prejudicar o agronegócio. O grupo de pesquisadores estimou que a destruição dos biomas custe US$ 3,55 bilhões ao ano à indústria da soja.

Sabemos que a Amazônia é importante para todo o país, inclusive para a Região Sul, pois tem influência nas precipitações e chuvas

O Cerrado e a Amazônia, atualmente, sofrem com altas de desmatamento, o que tem preocupado os produtores rurais. Para Sara Callegaro, apesar da distância desses biomas de sua propriedade [baseada em área de Mata Atlântica, que tem apenas 7% de sua cobertura original], os reflexos acabam por impactar as lavouras.

“Sabemos que a Amazônia é importante para todo o país, inclusive para a Região Sul, pois tem influência nas precipitações e chuvas. Os produtores já estão tendo essa percepção”, afirma a produtora. “Há consequências econômicas e sociais para a agropecuária. Precisamos minimizar esses efeitos para mitigar os prejuízos, antes que esses tenham causas irreversíveis”.

Luciane May, cuja propriedade está numa área de Cerrado, faz coro à colega do Paraná. “Com o aumento do desmatamento, as chuvas são reduzidas. Os produtores ficam prejudicados, tanto no plantio, com o solo seco, como na colheita, pois isso reduz a produção”, ressalta a agricultora.

Taxação do sol

Apesar do franco crescimento dessa energia solar, há obstáculos para o setor no Brasil. Um deles é a chamada “taxação do sol”, um apelido que se dá a uma revisão normativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que na prática aumentaria a tarifa de quem tem painéis instalados. Ela ainda não é aplicada, mas continua a preocupar os adeptos do modelo.

Na visão do setor, qualquer imposto cobrado dos produtores rurais que optarem pela energia solar seria um tiro no pé. “Nos próximos anos, a tendência é continuar muito forte [o avanço do mercado]. A única ameaça é a questão regulatória. Se não tiver taxação, o mercado vai continuar crescendo. Se ela ocorrer, não inviabiliza, mas vai aumentar o tempo de retorno do investimento”, diz o sócio-proprietário da Esco Iguassu, Kleber Rissardi.

Painel solar refletindo as nuvens
Esco Iguassu vê um mercado crescente para painéis solares em fazendas brasileiras (Imagem: divulgação)

Outra questão para o setor passa pela insegurança jurídica no Brasil. Muitas pessoas que investiram em painéis solares ou pensam em fazer isso temem mudanças nas regras, segundo Rissardi. “Existe essa insegurança, mas o pessoal sabe que se entrar agora está garantido, por conta do direito adquirido, por 30 anos, que é o tempo útil do equipamento. Quem investir depois, se mudar a legislação, terá que usar as novas regras”, afirma o empresário.

Ainda, um desafio para o setor, este de ordem mundial, é a redução ou falta de insumo para a produção dos painéis solares em meio à pandemia. Na China, a falta do fornecimento de vidro, por exemplo, tem atrasado a entrega de painéis. Desde o início da pandemia, a demanda por vidro aumentou em 50% no país asiático.