Energia

Combustíveis fósseis serão ativos irrecuperáveis na América Latina?

Região tem escolhas difíceis para a década: continuar a investir em petróleo e gás ou iniciar transição em linha com metas de Paris
<p>Refinaria de petróleo da empresa estatal mexicana Pemex em Cadereyta, na periferia de Monterrey (Imagem: Alamy)</p>

Refinaria de petróleo da empresa estatal mexicana Pemex em Cadereyta, na periferia de Monterrey (Imagem: Alamy)

A imagem apocalíptica do oceano em chamas no Golfo do México em julho, após a ruptura de um duto aquático, lembrava cenas de O Senhor dos Anéis. Mas a dependência mundial de combustíveis fósseis e seu desastroso impacto sobre o aquecimento global estão longe de ser uma fantasia.

A queima de carvão, petróleo e gás é a fonte dominante de emissões de gases de efeito estufa, impulsionando o aumento da temperatura média global, que já subiu cerca de 1,1 ºC acima dos níveis pré-industriais. A última avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas deixa claro que as atividades humanas são as responsáveis por isso.

A Agência Internacional de Energia diz que, para atingir o objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento a 1,5º C, os países não podem aprovar novos campos de petróleo e gás, nem construir novas usinas a carvão. No entanto, um relatório da ONU mostra que os países planejam aumentar a produção de combustíveis fósseis em 2% ao ano, o que até 2030 seria mais que o dobro do limite de produção para se manter a meta de 1,5º C.

Os países da América Latina e do Caribe têm escolhas difíceis pela frente. Eles podem continuar a financiar os combustíveis fósseis ou embarcar em uma transição energética ordenada e justa, seguindo as metas do acordo do Acordo de Paris e buscando uma recuperação sustentável da pandemia. Esse último item oferece uma oportunidade de adicionar 1% ao crescimento regional e criar 15 milhões de novos empregos na região, de acordo com o relatório de perspectivas macroeconômicas do BID para 2021.

Entre os combustíveis fósseis e a energia limpa

Por um lado, muitos países dependem da demanda de combustíveis fósseis para a receita fiscal, já que cerca da metade do que é produzido na região é exportado. De 2013 a 2018, em média 8% das receitas públicas no Equador, 6,6% em Trinidad e Tobago, e 5,4% no México, dependeram da exploração de petróleo e gás natural.

Com o recente aumento dos preços do petróleo e a urgente necessidade de resgatar as economias, muitos países da região têm investido em combustíveis fósseis. Esses receberam consideravelmente mais fundos do que as energias renováveis. Embora algumas empresas petrolíferas tenham melhorado sua eficiência energética e reduzido sua queima de gás, o setor energético da região ainda não está alinhado com os objetivos do Acordo de Paris de zerar as emissões até 2050.

A chamada transição justa é crucial para garantir que as políticas relacionadas ao clima não exacerbem a desigualdade e a pobreza

Por outro lado, o crescimento da energia renovável e da mobilidade elétrica representa um desafio para as economias dependentes de combustíveis fósseis. A energia renovável já é mais barata do que os combustíveis fósseis para a maioria dos novos usos, e três quartos da nova capacidade de geração de eletricidade no mundo vêm de energias renováveis. O aumento nas vendas de veículos elétricos também mostra a nova direção mundial.

Emissões comprometidas


Emissões comprometidas são aquelas geradas pelas atuais usinas de energia de combustíveis fósseis durante sua vida útil, de 30 a 40 anos

O sexto relatório de avaliação do IPCC afirma que, para termos uma chance de 66% de limitar o aquecimento global em 1,5º C, o mundo pode gastar até 360 Gt de CO2, o equivalente a nove anos de emissões aos níveis atuais.

Como cresce a pressão para manter viva a meta de 1,5 ºC, os países da região podem seguir a liderança de nações como Costa Rica e Chile de acelerar esforços de descarbonização, o que poderia reduzir drasticamente a demanda de combustíveis fósseis.

Se o mundo se mantiver fiel a essa meta, as reservas de óleo seriam deixadas no subsolo.  Essas reservas seriam ativos irrecuperáveis, o que poderia levar a uma perda significativa de receitas para os países exportadores de petróleo e aqueles dependentes da receita tributária do consumo de combustíveis fósseis, especialmente dos transportes.

A velocidade da transição energética

O conceito de emissões comprometidas é útil para avaliar o impacto da infraestrutura nas mudanças climáticas. As emissões comprometidas são aquelas geradas pelas atuais usinas de energia de combustíveis fósseis durante sua vida útil, de 30 a 40 anos.

As emissões comprometidas pelas atuais usinas elétricas na América Latina e no Caribe são incompatíveis com o Acordo de Paris. Se todas as usinas elétricas de combustíveis fósseis planejadas e anunciadas na região fossem construídas, a maioria delas de gás natural, as emissões comprometidas excederiam em 150% o limite estabelecido.

A única maneira de reduzir as emissões comprometidas é fechar as usinas elétricas existentes e substituí-las por de energia renovável, e deixar as reservas de gás natural, petróleo e carvão no subsolo. Fazer isso de forma rápida exigiria inativar unidades antes do final de sua vida útil, incorrendo em custos para os proprietários dos ativos e trabalhadores.

150%


É o quanto as emissões comprometidas aumentariam na América Latina se todas as usinas elétricas de combustíveis fósseis planejadas e anunciadas na região fossem construídas

Políticas governamentais podem tornar ativos irrecuperáveis. A eliminação dos subsídios ao diesel impõe um novo custo às empresas de táxis e ônibus, reduzindo suas receitas futuras e, portanto, o valor de seus negócios. A transição tecnológica também pode levar a ativos ociosos: por exemplo, se novas usinas de energia renovável reduzirem a competitividade de antigas usinas a carvão, diesel ou gás natural.

A desvalorização abrupta dos ativos pode criar vários graus de instabilidade nos mercados financeiros, o que, por sua vez, pode levar a instabilidades macroeconômicas. Os ativos irrecuperáveis também poderiam criar instabilidades políticas devido a uma rápida perda de riqueza entre os proprietários dos ativos e os trabalhadores afetados. Se as metas de redução de emissões do Acordo de Paris forem atingidas, o valor global dos ativos ociosos associados a projetos que ainda não recuperaram seu investimento inicial é projetado em US$ 304 bilhões em 2035, dos quais US$180 bilhões correspondem às indústrias de petróleo e gás.

Um documento do BID mostra que, em cenários consistentes com a meta de 1,5 ºC, a produção de petróleo na América Latina precisa cair para menos de 4 milhões de barris por dia até 2035 — 60% menos que os níveis anteriores à pandemia. Isto significaria que entre 66% e 81% das reservas de petróleo comprovadas e possíveis não serão utilizadas antes de 2035. O impacto fiscal seria enorme: os exportadores regionais de petróleo poderiam perder até US$ 3 trilhões em royalties até 2035 se uma forte ação climática global se materializar.

Transição energética justa

 Essas estimativas ilustram a importância de os governos elaborarem políticas para identificar e gerenciar os riscos fiscais associados à transição para economias com emissões líquidas nulas.

Um problema fiscal


De 2013 a 2018, em média 8% das receitas públicas no Equador, 6,6% em Trinidad e Tobago, e 5,4% no México, dependeram da exploração de petróleo e gás natural

Os ministérios das finanças podem desempenhar um papel estratégico no gerenciamento desses riscos. Eles podem desenhar planos fiscais para gerir as receitas possivelmente menores de hidrocarbonetos. Também podem identificar e mitigar os riscos de ativos irrecuperáveis na infraestrutura e na indústria. Podem ainda elaborar políticas para reduzir os impactos sociais e ajudar o setor financeiro a internalizar os riscos climáticos nas tomadas de decisões. A chamada transição justa é, portanto, crucial para garantir que as políticas relacionadas ao clima não exacerbem a desigualdade e a pobreza.

Na África do Sul, foram feitos esforços para administrar os riscos dos ativos irrecuperáveis. A Agência Francesa de Desenvolvimento e o Banco Sul-Africano de Desenvolvimento realizaram uma avaliação que analisou esses riscos, incluindo uma queda significativa nos preços dos combustíveis fósseis e quaisquer investimentos que possam aumentar a exposição a ativos irrecuperáveis.

O caso da África do Sul sugere que os governos podem trabalhar para evitar ou atrasar investimentos que poderiam aumentar a exposição do país ao risco de ativos irrecuperáveis e planejar uma retirada progressiva das atividades mais expostas à transição energética.

A falta de uma abordagem holística impede uma transição ordenada

O fechamento de unidades de combustíveis fósseis muito rapidamente pode aumentar a conta de energia do país, reduzir a capacidade do governo de financiar programas e afetar trabalhadores e comunidades. Por outro lado, um plano muito lento — com grandes investimentos em infraestrutura e suposições excessivamente otimistas para futuras exportações de hidrocarbonetos — levaria a uma transição mais abrupta com mais falências, maior endividamento e inadimplência.

Olhando para o futuro, uma tarefa-chave para os formuladores de políticas, destacada na estratégia do BID para o setor extrativo, é alinhar os objetivos dos países: fiscais, da mineração e energia e do clima. A falta de uma abordagem holística impede uma transição ordenada. Como os governos concebem estratégias de descarbonização de longo prazo e realizam investimentos para apoiar a recuperação da pandemia, a demanda futura de petróleo e as perspectivas para a produção interna precisarão ser cuidadosamente consideradas. Para reduzir o risco de encalhamento de ativos nesta década e suas prováveis consequências fiscais e políticas, uma transição justa e ordenada deve começar hoje.

Este artigo foi originalmente publicado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento.