O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador — popularmente conhecido como AMLO — apresentou uma proposta controversa para anular a reforma energética de 2013 introduzida por seu antecessor, Enrique Peña Nieto.
A reforma encabeçada por Peña Nieto permitia que empresas privadas e estrangeiras participassem, pela primeira vez em quase 80 anos, do setor de energia, da mesma forma como já funciona para as empresas estatais.
A proposta de AMLO para a Lei da Indústria Elétrica, a ser votada pelo Senado mexicano nos próximos meses, devolveria o controle de planejar o setor ao poder público e, assim, concentraria a geração e comercialização de energia nas mãos da concessionária estatal, a Comissão Federal de Eletricidade (CFE). Essa ação faz parte de uma estratégia mais ampla de seu governo para alcançar a independência energética nos próximos anos.
Contudo, a reforma tem atraído críticas de todos os lados. Opositores temem a criação de um monopólio energético estatal e, além disso, a lei pode priorizar os combustíveis fósseis e impedir o crescimento de energias renováveis — algo que empresas privadas têm buscado impulsionar. A reforma proposta por AMLO também ameaça os compromissos climáticos do México.
Sendo assim, o que explica o interesse de AMLO por reafirmar o controle estatal sobre o setor energético mexicano e que implicações isso tem para a economia e o clima?
Por que fazer uma contra-reforma?
AMLO havia declarado que o petróleo do México não pertence ao governo, nem ao Estado, mas “ao povo”. Ele tem sido chamado de “nacionalista de recursos”, algo semelhante aos antigos líderes populistas Lázaro Cárdenas e Adolfo López Mateos, ambos governantes que nacionalizaram a empresa estatal de energia Petróleos Mexicanos (Pemex) na década de 1930, retomando o controle da empresa que antes estava nas mãos da Shell.
AMLO teve uma vitória esmagadora nas eleições de 2018 em uma onda de indignação pública contra casos de corrupção no governo de Peña Nieto. Entre eles, inclusive, um caso envolvia a Pemex, após sua privatização em 2015, um dos pilares da reforma energética proposta pelo ex-presidente.
Desde então, o próprio Peña Nieto tem sido acusado de corrupção pelo ex-presidente da Pemex, Emilio Lozoya, que permanece em prisão preventiva por seus negócios com a gigante do setor de infraestrutura Odebrecht. Peña Nieto não respondeu às acusações.
A prática atual do México de importar seu próprio petróleo, após refinado no exterior, é como vender laranjas para mercados estrangeiros e depois comprar o suco de laranja deles, disse AMLO. Por isso, ele está revitalizando seis refinarias de petróleo do México e investindo em uma nova, Dos Bocas.
Para o atual presidente, o fracasso do país em reter o valor agregado no setor petrolífero ocorre por causa da “mentalidade tecnocrática corrupta” que prevaleceu entre as lideranças políticas por 40 anos.
O que diz a reforma de AMLO?
A proposta de AMLO se baseia em três premissas principais: empoderar a CFE como única vendedora de energia aos usuários finais; privilegiar a energia gerada pela CFE no sistema elétrico em detrimento daquela de empresas privadas; e centralizar atividades como o planejamento e a direção da transição energética dentro da estatal.
Empoderar a CFE: Atualmente, a CFE é a única fornecedora de eletricidade para pequenos e médios consumidores. Isto inclui indivíduos e pequenas empresas. Os grandes consumidores, como as indústrias têm a possibilidade de comprar energia de outros fornecedores, incluindo dos que geram energias renováveis.
Se a CFE se tornar a única vendedora de energia, grandes consumidores não terão mais a opção de gerar sua própria energia ou comprá-la de produtores privados. Na situação atual, produtores independentes contribuem com 27% do fornecimento total de eletricidade no México, enquanto o auto-abastecimento representa 15%, de acordo com dados da CFE.
Centralização: A centralização das atividades também tem importantes implicações políticas e jurídicas. Hoje, a Comissão Reguladora de Energia (CRE), fortalecida pela reforma de 2013, atua como controlador do setor, regulando atividades como geração, transmissão e distribuição, juntamente com transporte, armazenamento e distribuição de petróleo e gás.
Com a reforma atual, a CRE deixaria de existir como órgão independente e passaria a ser integrada à Secretaria de Energia. O Centro Nacional de Controle Energético, que garante a distribuição e as tarifas nacionais de eletricidade, entretanto, seria incorporado à CFE.
Segundo o ex-comissário da CRE, Montserrat Ramiro, isto tornaria a empresa estatal auto-reguladora: “O Estado já tem liderança por meio de vários instrumentos, tais como reguladores, que podem garantir os interesses dos consumidores a longo prazo. Centralizar tudo na CFE tira a liderança do Estado”, disse Ramiro em uma entrevista recente.
Tal acordo institucional também violaria os termos do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, na sigla em inglês), que orienta a política econômica norte-americana.
Distribuição: A reforma também procura mudar a forma como o mercado atacadista distribui a energia que a CFE e as empresas privadas geram. Atualmente, o principal critério é o preço: a energia mais barata é favorecida. Entre as fontes mais baratas de eletricidade, estão os parques eólicos e solares privados. Como a eletricidade produzida pela CFE é gerada principalmente por petróleo e carvão, ela é mais cara e sai perdendo.
Com a reforma proposta, a energia da CFE proveniente de hidrelétrica, carvão e a única usina nuclear do país teriam prioridade na distribuição de energia, juntamente com a termelétrica, que no México opera principalmente com óleo combustível — um produto residual do refino de petróleo e carvão. Ambos são altamente poluentes e prejudiciais à saúde humana, além de terem custos mais altos. Na sequência, vêm as energias renováveis e, depois, o gás. Consequentemente, a CFE controlaria 54% do mercado elétrico, e as corporações privadas, 46%.
Quais são as implicações climáticas da reforma?
Críticos afirmam que a reforma proposta por AMLO traria consequências ambientais negativas, como a poluição, e aumentaria os custos do Estado. Há também o risco de as empresas afetadas pedirem arbitragens internacionais — em que o litígio é decidido por um árbitro privado — de milhões de dólares como resultado da mudança de política.
“O problemático é acreditar que essa discussão questiona se [a geração e o fornecimento de energia] são públicos ou privados. O problema são as soluções propostas pela reforma”, disse Pablo Ramírez, especialista em energia e mudança climática do Greenpeace México.
“Há muitas contradições que são problemáticas. A reforma é ambígua e deixa espaço para interpretação em muitos aspectos. Eles têm uma preocupante confusão conceitual entre o que é limpo e o que é renovável, entre segurança e soberania”, acrescentou.
Sob o modelo proposto, as emissões de CO2 emitidas pelo setor energético do México atingiriam um bilhão de toneladas até 2050, mais que o dobro das 486 milhões de toneladas projetadas sob as leis existentes, de acordo com um estudo realizado pelo Instituto Alemão de Pesquisa Econômica.
Eles têm uma preocupante confusão conceitual entre o que é limpo e o que é renovável, entre segurança e soberania
Esses números sugerem que o México não atingiria suas metas voluntárias de redução da poluição, estabelecidas no Acordo de Paris.
Além disso, a fim de manter os preços da eletricidade baixos, como o governo prometeu, os subsídios para quase metade dos clientes da CFE precisariam aumentar.
Mas em termos de custos, uma análise do Instituto Mexicano para a Competitividade calculou que, para garantir a geração de sua meta de 54% de eletricidade entre 2022-2028, a CFE teria que gastar entre US$ 19,7 bilhões (R$ 101 bilhões) e US$ 24,8 bilhões (R$ 127 bilhões) nesse mesmo período. Isto significa um aumento expressivo dos US$ 4,5 bilhões (R$ 23 bilhões) que a CFE gasta atualmente na compra de energia de empresas privadas para satisfazer a demanda, que cresce 4% ao ano.
A CFE rejeita essas projeções e afirma, sem evidências, que a reforma não prejudicará o meio ambiente e que ela traria uma economia de milhões de dólares para o país.
O que a reforma significa para as energias renováveis?
A transição energética do México está paralisada desde 2019, já que o governo suspendeu os leilões de eletricidade organizados por Peña Nieto. Com eles, empresas privadas faziam ofertas de energia a baixo custo e de construção de usinas eólicas, solares ou geotérmicas.
Estas oportunidades atraíram grandes investimentos entre 2016 e 2018 e reduziram os custos de geração. Entretanto, também houve supostas violações dos direitos humanos nas comunidades onde foram instalados parques eólicos e solares.
A geração de eletricidade a partir de combustíveis fósseis representava 76,4% da matriz energética em janeiro do ano passado, seguida pela energia eólica (7%), hidrelétrica (6,66%), solar (4,4%), nuclear (3,87%), geotérmica (1,55%) e biomassa (0,07%), de acordo com o Observatório Mexicano de Transição Energética.
Acorrentamos o país a um modelo obsoleto de refinarias, gasodutos, usinas hidrelétricas
O novo plano governamental também não incentiva formas alternativas de geração de eletricidade, tais como as viabilizadas por meio de cooperativas ou empresas comunitárias.
“A manutenção de eletricidade barata vai contra a política ambiental, porque a transição que precisamos exige uma redução no consumo”, disse Israel Solorio, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México. “A energia barata não contribui para a ideia de transição energética”.
Ramírez criticou a falta de uma visão de longo prazo de AMLO. “O destino do setor está sendo traçado para as próximas décadas, e isso é o mais preocupante. Acorrentamos o país a um modelo obsoleto de refinarias, gasodutos, usinas hidrelétricas. As medidas contempladas não ajudam em nada e têm limitações muito importantes”, disse.
A reforma vai ser aprovada?
O Congresso do México aprovou a Lei da Indústria Elétrica em fevereiro de 2021, com 289 votos a favor, em grande parte do partido Morena, de AMLO. Outros 152 votos foram contra, entre eles do Partido Ação Nacional (PAN) e do Partido Revolucionário Institucional (PRI), os dois maiores partidos de oposição.
A votação do Senado sobre a lei pode ser pautada logo após as consultas públicas sobre a reforma, que serão encerradas em 28 de fevereiro. AMLO fez recentemente uma turnê nacional tentando explicar a lei e promover seus benefícios aos mexicanos.
Apesar de seus esforços, o sucesso do governo não é de forma alguma garantido. Morena e seus aliados não têm representatividade no Senado para garantir a aprovação da lei. Entretanto, a determinação de AMLO de supervisionar a reforma pode significar fazê-la avançar por meios unilaterais.