A invasão russa da Ucrânia trouxe a urgência de países discutirem seus planos energéticos em meio às mudanças climáticas. A Rússia é um dos principais produtores de gás natural do mundo, e mais de 70% de sua produção é exportada para a Europa. Com sanções e planos para cortar as importações russas, muitos países tiveram que se colocar a pergunta: voltar ao carvão para compensar a escassez de gás ou apostar em energias renováveis? As respostas têm sido variadas.
15%
da energia da Colômbia vem doe gás natural, segundo dados do Ministério de Minas e Energia
Na Colômbia, onde o gás é produzido e consumido nacionalmente, o governo nacional considera o combustível como uma energia de transição — um recurso a ser explorado até que seja alcançada a produção de energia 100% renovável. O gás natural tem uma participação relativamente baixa na matriz energética do país e representou apenas 15% do total em 2019, de acordo com o Plano Nacional de Energia 2020-2050. Mas esse plano o coloca como um recurso cada vez mais importante para o país.
A ideia não é nova, nem veio da Colômbia. O gás natural emite entre 50% e 60% menos CO2 do que o carvão. Além disso, quando utilizado em veículos, ele gera apenas 1% da matéria particulada que outros combustíveis emitem. Isto, em países onde a energia é fortemente baseada no carvão, ganhou a reputação de ser uma energia supostamente mais limpa e, portanto, útil para as transições energéticas.
Mas o gás natural também emite metano, que é cerca de 80 vezes mais potente que o CO2 no efeito sobre o aquecimento global, em seus primeiros 20 anos após a liberação. Para alguns especialistas, a aceitação da Colômbia do discurso do gás como um combustível de transição poderia, portanto, ser uma armadilha.
Como aponta Felipe Corral, pesquisador de transição energética da Universidade Técnica de Berlim, há evidências de que, se a humanidade quer atingir o objetivo de manter o aumento da temperatura global dentro de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais até o final do século, deve deixar os combustíveis fósseis, entre eles o gás natural, no solo.
Mais especificamente, um estudo publicado na Nature em 2021 estimou que para se ter 50% de chances de atingir essa meta, 60% do petróleo e gás metano do mundo não poderão ser extraídos até 2050.
Bloqueio ou backup?
A segunda razão por que usar o gás como combustível de transição é perigoso, diz Patricio Calles Almeida, pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo, é que essa estratégia reduz a possibilidade de se apostar em alternativas renováveis, já que ambas competem pelos mesmos recursos. Além disso, acrescenta ele, o gás natural não deve ser discutido como um combustível de transição na Colômbia quando, segundo seu Ministério de Minas e Energia, as reservas do país são apenas suficientes para mais 7,7 anos.
A resposta, em parte, vem de Luz Stella Murgas, presidente da Associação Colombiana de Gás Natural (Naturgas), entidade que reúne 29 empresas que representam 98% do mercado de gás natural na Colômbia. Ela acredita que o gás não deve apenas acompanhar a transição até que a energia seja toda renovável, mas também garantir a segurança quando esse ponto for alcançado.
Para conseguir isso, a Colômbia teria de explorar potenciais reservas de gás, que incluiriam projetos offshore no Mar do Caribe e, em menor escala, exploração continental, especialmente nos departamentos de Córdoba e Sucre. Para entender melhor, Murgas explica que isto permitiria à Colômbia ter gás por até 100 anos. Mas também por essa época, o país deveria ser neutro em carbono — sem mencionar os dilemas socioambientais que o desenvolvimento desses projetos podem trazer.
Com relação ao fracking (a extração de combustíveis do subsolo) — sobre o qual Murgas diz que nenhuma decisão será tomada até que mais informações de projetos-piloto estejam disponíveis — as preocupações são evidentes.
Amarilys Llanos, da Alianza Colombia Libre de Fracking, diz que a organização está preocupada com o impacto que esses projetos podem ter sobre a água. Em Cesar, departamento colombiano onde ela vive, não apenas um projeto-piloto está previsto para ser realizado, mas a Agência Nacional de Hidrocarbonetos concedeu um contrato à multinacional americana ConocoPhillips para seu desenvolvimento.
“Além disso, poderia haver emissões de metano provenientes de vazamentos, cuja pegada poderia ser ainda maior”, acrescenta ela.
Quanto aos projetos offshore, Calles Almeida vê tanto um problema quanto um risco. O problema é que esses poderiam competir com o potencial das energias renováveis na própria região do Caribe. “Estaria dando incentivos fiscais ao gás e não à energia mais limpa e barata”, diz ele. “O risco é que, como esses projetos seriam realizados no mar, no território de ninguém, não haveria uma licença social para monitorá-los”.
Mas Murgas comenta que, pelo menos para a Naturgas, o plano é trabalhar para garantir que nenhum conflito desse tipo ocorra com a expansão do uso gás. Além de pensar em investimentos no setor de energias renováveis, a associação assinou um acordo de neutralidade de carbono com o governo na COP26 para reduzir ou compensar as emissões.
“Existem projetos de eficiência energética, de economia circular, e muitos [produtores] estão entrando na questão dos créditos de carbono”, acrescenta Murgas. Quanto à captura e armazenamento de carbono, Murgas diz que essas são tecnologias que primeiro teriam que ser levadas para a Colômbia.
Último empurrão ao gás natural
O governo de Iván Duque se refere habitualmente ao gás natural como um combustível de transição na Colômbia, uma ponte necessária entre outros combustíveis fósseis e energias renováveis. No entanto, a administração está interessada em não simplesmente manter o nível de atualmente, mas aumentar sua produção e demanda.
“Houve várias tentativas de nos fazer precisar do gás natural”, diz José Antonio Vega, também pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo. “Ele gera investimentos em infraestrutura para sua produção e distribuição e, quando não tivermos mais gás — porque as reservas atuais são escassas —, há uma desculpa para o fracking“. Ele acrescenta que o governo também tem bloqueado as energias alternativas.
Na Lei de Transição de Energia da Colômbia, aprovada em 2021, o primeiro artigo fala de “fortalecer os serviços públicos de eletricidade e gás combustível”, o que também inclui o gás liquefeito de petróleo (GLP). Enquanto isso, a Lei 2128, também criada no ano passado, promove o uso de gás combustível na Colômbia. Para Vega, o documento tem várias inconsistências, especialmente quanto às mudanças climáticas.
Não é lógico aumentar a demanda por gás natural porque é ‘mais limpo’. Isso está sendo feito para se continuar usando o gás para produzir outros combustíveis fósseis.
Uma delas — mas não a única, diz ele — é a que determina que as cidades com sistemas de transporte de massa devem garantir que pelo menos 30% da frota opere com motores movidos a gás natural. Isto poderia desencorajar governos locais de investir na mobilidade elétrica ou contrariar planos de transporte público elétrico, como o já existente em Bogotá.
Vega também aponta para o Roteiro de Hidrogênio da Colômbia. No plano, o governo Duque se propõe a produzir hidrogênio azul (cujo combustível pode ser o gás natural), para supostamente abrir caminho para o hidrogênio verde (uma energia mais limpa, produzida com água). Além disso, um documento recente sobre a transição energética do Conpes, órgão consultivo do governo colombiano, repete o discurso: o de expandir a demanda de gás natural como combustível de transição.
Transição energética para quem?
Outro receio de Llanos, se houver luz verde ao gás natural, é que a história do carvão se repita no país: uma situação em que os municípios produtores de energia sequer têm garantias de serviço a partir dessa energia.
Seus receios vão em linha com as conclusões de um artigo publicado em 2019 na revista Política Energética: “Nem para a energia, nem para a Colômbia”. Após analisar 40 anos de planejamento energético do país, os pesquisadores mostraram que os sucessivos governos tiveram dificuldade em integrar as relações entre energia, meio ambiente e sociedade. A prioridade sempre foi pensar na energia para a exportação e como uma fonte de renda. Muito desse pensamento ocorre no papel, mas continua a falhar na prática, e muitas redes ainda não se estendem a áreas isoladas e economicamente subdesenvolvidas.
A situação é clara para a Llanos. “Na Colômbia, o maior consumidor de gás natural é a indústria de combustíveis fósseis”, diz ele. “Portanto, não parece lógico que estejamos aumentando a demanda de gás porque ele é ‘mais limpo’. Ao invés disso, é continuar usando-o para produzir outros combustíveis fósseis”.